quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Desigualdade fragiliza a democracia brasileira, Clovis Rossi, FSP

democracia brasileira —objeto de múltiplas análises nos últimos anos —  goza de saúde relativamente boa, mas é uma das seis que conheceram retrocessos de 2017 para 2018. É o que mostra o Relatório Anual da Democracia, estudo centralizado no Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo (Suécia).
Participam do projeto mais de 3 mil acadêmicos e especialistas, que avaliam a democracia em 178 países.
No ranking geral, o Brasil é o 56º colocado, o que significa que está no terço superior da tabela.
Mas é pouco para o país mais rico da América Latina, porque, entre outras razões há seis países latino-americanos à frente do Brasil: Costa Rica (um impressionante 6º lugar), Chile (18º), Uruguai (21º), Argentina (42º), Panamá (47º) e Peru (49º).

Crianças brincam próximo a lixo na favela da Mangueira, no Rio - Felipe Dana - 10.set.17/Associated Press
Aqui, cabe fazer a ressalva de praxe: esse tipo de ranking precisa sempre ser tomado com uma pitada de sal porque, em ciências humanas, entra sempre a subjetividade. Não parece muito razoável colocar Panamá ou Peru à frente do Brasil no quesito democracia.
O que talvez explique essa colocação relativamente ruim do Brasil é a observação de que “o relatório identificou inquietantes tendências em vários países chaves, como Brasil, Índia, Polônia, Rússia, Turquia e Estados Unidos”. No caso dos EUA, é evidente que a administraçãoTrump explica a inquietação dos pesquisadores, que, de resto, levou esse antigo defensor da democracia a um modesto 31º lugar.
No caso do Brasil, a democracia capenga em dois dos cinco grandes itens em que se divide o ranking: o de igualdade e o que o estudo chama de “Componente Deliberativo".
É o processo pelo qual “um raciocínio lógico, focado no bem comum, motiva decisões políticas, em contraste com apelos emocionais, interesses paroquiais ou coerção”. O relatório diz mais: “Democracia requer mais que a agregação de preferências existentes. Deveria haver também um diálogo respeitoso em todos os níveis entre participantes informados e competentes que estejam abertos à persuasão".
No ambiente conflagrado que 11 de cada 10 analistas vêm apontando no Brasil, é inevitável que o país acaba em posição péssima nesse capítulo do ranking (104º lugar ou seja na parte inferior da tabela).
No outro item em que o Brasil capenga (o da igualdade), dispensam-se maiores explicações: a desigualdade no país é uma chaga crônica, o que leva o Brasil ao 108º lugar no ranking (sempre entre 178 países).
Em dois dos outros itens do ranking, o país se sai relativamente bem ou, pelo menos, bem melhor do que na classificação geral: é o 44º no Índice de Democracia Eleitoral e é o 45º no de Participação.
Trocando em miúdos: o processo eleitoral é razoavelmente aceitável no Brasil, aos olhos dos pesquisadores.
No quesito Participação, mede-se principalmente a organização da sociedade civil, os mecanismos de democracia direta (plebiscitos e referendos), participação e representatividade junto aos governos locais (prefeituras no caso do Brasil) e regionais (estados).
Curioso, neste último ponto, é que a posição do Brasil é muito boa tanto no que se refere aos governos locais (16º lugar) quanto nos regionais (21º).
Por fim, no quinto ponto que o relatório abrange (o chamado Componente Liberal), o Brasil fica em posição pior do que no conjunto do ranking: é 74º, quando, no geral, é o 56º.
O Componente Liberal mede, por exemplo, o grau de igualdade ante as leis e os freios que tanto o Judiciário como o Legislativo impõem ou não ao Executivo.
Tudo somado, o ranking da Universidade de Gotemburgo incomoda menos pela posição em que o país se encontra, por ser previsível, e mais pelo fato de que está listado entre os seis que mais retrocedem no quesito democracia. Pior: na companhia do Brasil, estão a Turquia de Recep Tayyp Erdogan, conhecido pelo crescente autoritarismo, e os Estados Unidos de Donald Trump (os outros três são Polônia, Croácia e Romênia).
Dispensável dizer que nos primeiros lugares do ranking estão os suspeitos de sempre, pela ordem: Noruega, Suécia, Estônia, Suíça e Dinamarca. Surpreende a Costa Rica no 6º lugar e Portugal no 10º.
Vale, pois, torcer para que se realize a profecia de Chico Buarque de Holanda em seu “Fado Tropical": “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:/Ainda vai tornar-se um imenso Portugal".
Clóvis Rossi
Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Sistema Único de Saúde: Ser ou não ser?, Antonio Nucifora, FSP



Presidenciáveis deveriam propor uma agenda de eficiência ao SUS


Nas últimas semanas, há muito debate sobre a necessidade de reformar o Sistema Único Saúde (SUS).  Em 2018 o Brasil celebra 30 anos de sua criação. Durante esses, o SUS contribuiu para melhorar os indicadores de saúde da população e reduzir as desigualdades na distribuição e acesso dos recursos de saúde em todo o país. A expectativa de vida ao nascer dos brasileiros aumentou aproximadamente 9 anos, a taxa de mortalidade materna foi reduzida pela metade e a taxa de mortalidade infantil caiu mais de 70%.
Os avanços são indiscutíveis. Entretanto, persistem desafios esmagadores. O SUS é frequentemente apontado como superlotado, de baixa qualidade e com escassez de profissionais de saúde. A explicação frequente é que o governo não gasta suficiente com saúde, o que exacerba as fragilidades de um sistema diretamente responsável pela saúde de mais de 170 milhões de brasileiros. Porém, um recente estudo do Banco Mundial aponta para um claro escopo para o SUS alcançar melhores resultados, com o montante atual de gastos públicos.  Então, gastar mais ou gastar melhor?
O gasto total com saúde no Brasil (9,1% do PIB) é comparável à média dos países da OCDE (9%) e superior à média de seus pares estruturais e regionais (6,7% e 7,2%, respetivamente).  No entanto, ao contrário da maioria de seus pares, menos da metade do gasto total em saúde no Brasil é gasto público. Portanto, é possível argumentar nos dois sentidos: que os gastos com serviços de saúde já são muito altos ou que os gastos públicos são relativamente baixos.
O que está claro, no entanto, é que existem desafios significativos na aplicação dos recursos públicos no SUS.  Utilizando técnica de fronteira de produção, outro estudo do Banco Mundial estimou em 37% as ineficiências na Atenção Primária à Saúde (APS) e 71% na Média e Alta Complexidade (MAC).  O estudo aponta que o SUS poderia aumentar em 64% o número de consultas médicas na APS, mais que dobrar o número de procedimentos ambulatoriais (consultas com especialistas, por exemplo) e realizar 80% mais internações sem aumentar o volume de gastos.  Esses resultados significam que o SUS poderia alcançar mais e melhores resultados mesmo sem mais recursos, o que é particularmente importante no contexto dos graves desafios fiscais enfrentados pelo país.


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Corredor da UTI (Unidade de terapia intensiva) da Santa Casa de São Paulo - Joel Silva/Folhapress
A análise do Banco Mundial demonstra que escala é um dos principais fatores para explicar a ineficiência do SUS, isso tanto para prover serviços de APS como serviços de MAC.  Na MAC, por exemplo, os municípios com menos de 5.000 habitantes têm desempenho quatro vezes pior que os municípios com mais de 100 mil habitantes.  Apenas os municípios com mais de 20 mil habitantes alcançam a média nacional de eficiência tanto na APS como na MAC. Porém, de acordo com o IBGE, aproximadamente 80% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes!
Outro grande problema do SUS é o número de hospitais de pequeno porte, com menos de 50 leitos.  Esses hospitais estão presentes na maioria dos municípios brasileiros (98% dos hospitais nos municípios com menos de 5.000 habitantes têm menos de 50 leitos).  E operam com baixo volume de procedimentos (consultas, internações, etc.) o que, de um lado, resulta em ineficiências pela falta de economia de escala e, de outro, em piores resultados (taxas de mortalidade hospitalar mais altas).  A situação do setor hospitalar brasileiro é alarmante: 80% dos hospitais brasileiros têm menos de 100 leitos, quando a literatura especializada recomenda pelo menos 250 leitos; a taxa média de ocupação dos leitos no Brasil é 45% (37% para leitos agudos), muito abaixo da média entre os países da OCDE, 71%, e muito abaixo da taxa de ocupação recomendada, entre 75% e 85%).
Uma outra fonte de ineficiência são os desafios relacionados à disponibilidade, distribuição e desempenho da força de trabalho em saúde.  O número de profissionais de saúde disponíveis, particularmente os médicos, é menor do que observado em países com nível similar de desenvolvimento e bem abaixo da média entre os países da OCDE.  Além da relativa escassez, os médicos estão concentrados nos grandes centros urbanos do país.  Uma alternativa a essa escassez relativa, seria permitir que outros profissionais, como enfermeiros, exerçam papel mais destacado na prestação dos cuidados à saúde.
Embora a regulamentação nacional autorize os enfermeiros a realizar consultas e prescrever determinados medicamentos e exames em unidades básicas de saúde, há resistência profissional e institucional contra essas práticas. Estudo da Organização Mundial da Saúde de 2006 apontou que a maioria dos municípios brasileiros poderia aumentar o nível de cobertura pré-natal adotando um processo de produção mais intensivo em profissionais de enfermagem do que em médicos.
Outros fatores que afetam a eficiência do SUS são: (i) a organização da prestação de serviços que fornece cuidados de cura para condições agudas com coordenação limitada entre provedores e níveis de atenção - os serviços hospitalares de atendimento e diagnóstico são distribuídos de maneira desigual; (ii) os mecanismos de pagamento dos prestadores não se baseiam nos custos reais da prestação dos serviços e frequentemente não estão relacionados com os diagnósticos dos pacientes ou ajustados pela gravidade dos casos; e (iii) novas tecnologias são frequentemente incorporadas de maneira ad hoc, particularmente através de processos judiciais, sem avaliação de custo-eficácia.
O Brasil, como a maioria dos países ao redor do mundo, enfrenta desafios relativos à sustentabilidade do seu sistema de saúde (público e privado).  Na maioria dos países, o Brasil incluído, os gastos em saúde crescem a taxas superiores às taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB). Mantido o padrão atual de crescimento nominal dos gastos, os gastos com o SUS alcançarão R$700 bilhões em 2030, isso sem levar em conta o aumento do peso das doenças crônicas e o envelhecimento populacional
Ganhos de eficiência poderiam mitigar essa tendência e proporcionar o espaço fiscal necessário para a consolidação do SUS, viabilizando investimentos em áreas fundamentais como a ampliação da APS, melhorias na qualidade do atendimento e acesso a serviços especializados, para citar apenas alguns desafios imediatos. O Banco Mundial estima que a melhoria da eficiência do SUS poderá resultar em ganhos acumulados de aproximadamente R$ 989 bilhões até 2030.
No Brasil, a discussão sobre a sustentabilidade do SUS passa necessariamente por reconhecer que existe escopo para alcançar melhores resultados com o atual nível de gastos.  Para lidar com a expansão necessária na demanda por serviços de saúde, esperada a partir da transição demográfica e mudanças no perfil epidemiológico da população, o SUS precisa de reformas estratégicas, para assegurar a racionalização da atenção hospitalar (para maximizar escala, qualidade e eficiência), melhorar o desempenho da força de trabalho em saúde (com expansão da oferta de profissionais e a introdução de incentivos para aumentar a produtividade) e integrar melhor os vários níveis de atenção e provedores de serviços (através da criação de redes integradas de atenção à saúde). Os presidenciáveis deveriam propor uma agenda de eficiência ao SUS, e buscar soluções para melhorar e consolidar o ‘SUS real’, o SUS do cotidiano de usuários e gestores. 
Esta coluna foi preparada em colaboração com o meu colega Edson Araujo, economista sênior do departamento de saúde do Banco Mundial.
Antonio Nucifora
Economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil, já trabalhou para a instituição na Europa, na África e no Oriente Médio.


comentários

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  1. GUILHERME TORRES
    Fazer hospitais ineficientes em cada cidade gera voto e dá oportunidades para corruptos ganharem dinheiro, então não espere que essa "estratégia" seja substituída por reforçar o atendimento primário e concentrar hospitais para melhor eficiência do sistema. A desculpa já está até dada: "vc não quer hospital porque não gosta de pobre", ser populista é fácil e lucrativo.
  2. EDILSON BORGES
    economista comentar sobre saúde me dá calafrios. um hospital existe, lá nos cafundós, prá atender os desinfelizes que precisam, nos cafundós, de atendimento. levar os pacientes prum grande centro, ou demora, ou afasta da família, ou tudo isso junto com otras cositas más. enfim, são apenas números, né mesmo?