terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Lava Jato deveria dar o exemplo e devolver auxílio-moradia - RANIER BRAGON




FOLHA DE SP - 13/02

Respostas escapistas se chocam com discurso de passar o Brasil a limpo  


Por mais que equívocos possam ser apontados, a Lava Jato é a mais simbólica cruzada judicial anticorrupção da história do Brasil.

Justamente por isso soa estarrecedor que alguns de seus condutores se escondam atrás de respostas escapistas para justificar o injustificável.

Os juízes Sergio Moro, Marcelo Bretas, Leandro Paulsen e Victor Laus e o procurador Deltan Dallagnol, todos da linha de frente da Lava Jato, recebem R$ 4.378 de auxílio-moradia mesmo tendo casa própria.

Eles já têm um dos maiores contracheques da República, algo em torno de R$ 30 mil ao mês. Além do auxílio-moradia, são tantos os penduricalhos que só com muito esforço um magistrado ou procurador em igual nível conseguirá receber abaixo do teto constitucional de R$ 33,7 mil.

Vá ao site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e clique em "remuneração de magistrados". Moro, por exemplo, teve em dezembro salário bruto de R$ 41 mil, engordado por auxílio-moradia (R$ 4.378), auxílio-alimentação (R$ 884), gratificação por exercício cumulativo (R$ 4.181) e "gratificação por encargo, curso/concurso" (R$ 2.656).

Laus, um dos desembargadores que majoraram a pena de Lula em um terço, teve em dezembro salário de R$ 106 mil, encorpado principalmente por R$ 59,6 mil da tal "gratificação por encargo, curso/concurso".

A resposta padrão de todos é que, com base em liminar de Luiz Fux, o CNJ não veda o auxílio a quem tem casa. Moro foi além e disse que, mesmo discutível, o benefício compensa a falta de reajuste salarial. Se os sabidamente mal remunerados policiais ou professores, por exemplo, tentassem uma pedalada dessas, seriam merecidamente recriminados.

O que dizer de juízes que recebem os mais altos salários da República?

Se usarem o mesmo rigor destinado a seus alvos, os líderes da Lava Jato devem não só abrir mão do auxílio, mas devolver aos cofres públicos tudo que receberam desde 2014, acrescido de um necessário mea-culpa.


Foi o elitismo de Winston Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo - JOÃO PEREIRA COUTINHO


FOLHA DE SP - 13/02

Filme é simpático para o mundo de 2018, mas trai as "horas sombrias" de 1940


Concordo com Elio Gaspari, em coluna para esta Folha: o filme "O Destino de uma Nação" demoniza a figura de Lord Halifax. Injusto. Em 1940, Halifax estava disposto a negociar a paz com Hitler?

Era uma opção perfeitamente racional: com a França de joelhos e os EUA ainda longe de entrar na dança, sem falar do pacto germano-soviético que mantinha a União Soviética na jaula (pormenor que os camaradas sempre esquecem), só um louco não contemplaria essa opção.

O próprio Churchill, antes da decisão final, ponderou todos os cenários. Mas recusou-os. Por quê?

Sim, porque entendeu que a rendição seria o primeiro passo para Hitler rasgar qualquer acordo (como rasgou com Stálin) e transformar a Inglaterra num "estado escravo".

Mas o filme sugere uma outra razão e a cena do metrô é exemplar: ali vemos Churchill viajando com o povo e percebendo que os seus compatriotas queriam continuar a lutar. Até o fim.

Essa cena não é apenas uma "licença cinematográfica", como escreve Elio Gaspari. É uma mentira histórica e intelectual em vários sentidos da expressão.

Primeiro, porque não aconteceu. Segundo, porque não podia acontecer. E, terceiro, porque contamina a lucidez e a resiliência de Churchill com um toque de populismo assaz nefasto.

Eu sei, eu sei: nas "ultrademocracias" em que vivemos, a palavra "elitismo" ganhou má fama. Como defender a velha ideia platônica de que a política deve ser exercida pelos melhores, mesmo que os melhores não sejam imediatamente reconhecidos pelas massas?

Acontece que a decisão de Churchill em recusar qualquer compromisso com Hitler foi uma decisão "elitista", sim, por dois motivos.

Para começar, porque foi uma decisão solitária, ou quase, à imagem do seu percurso na década de 1930. Nesses "wilderness years" (anos desérticos, desoladores), os seus discursos antinazistas recebiam as gargalhadas dos restantes membros do Parlamento.

Os "apaziguadores", como Lord Halifax ou Neville Chamberlain, não eram a exceção; eram a regra. Como explica John Lukacs nesse livrinho divino que Elio Gaspari recomenda ("Cinco Dias em Londres"), os argumentos favoráveis ao "apaziguamento" batiam sempre nas mesmas teclas: a humilhação da Alemanha com o Tratado de Versalhes; as memórias dolorosas da Primeira Guerra Mundial (no fundo, quem desejava uma Segunda?); e, claro, o antibolchevismo de Hitler (Moscou assustava mais do que Berlim).

Para Churchill, nenhum desses argumentos convencia: o nazismo era uma mistura de ressentimento e desumanidade contrária à tradição liberal inglesa e a uma certa ideia de "civilização ocidental", com as suas raízes intelectuais em Jerusalém, Atenas e Roma. E que tradição era essa?

O elitismo de Churchill também a explica: a tradição que ele aprendeu, não no metrô com os "homens comuns", mas nos livros da sua formação, sobretudo durante os anos como soldado em finais do século 19. A lista é extensa: Aristóteles, Cícero, Adam Smith, Macaulay, Edward Gibbon.

Bem sei que a lista só tem "dead white males". Mas foram esses homens brancos e mortos que ensinaram ao jovem Winston a importância do império da lei sobre os caprichos dos homens, a essencial dignidade da vida humana e um amor pela liberdade que os nazistas ameaçavam com sua "tirania monstruosa".

Foi com esse patrimônio intelectual que Churchill enfrentou o Gabinete de Guerra e o convenceu a lutar. Mas a verdadeira tarefa hercúlea, ao contrário do que o filme mostra, foi levar os ingleses a acreditar no "espírito heroico" de uma nação e na missão civilizacional que ela enfrentava. Não foi o povo que convenceu Churchill de nada. O desafio foi precisamente o inverso.

Em ensaio magistral, intitulado "Winston Churchill em 1940", o filósofo Isaiah Berlin resumiu o gênio do premiê britânico: a sua "imaginação histórica".

Traduzindo: quando olhamos para os fatos, o senso comum talvez estivesse do lado de Halifax. Mas Churchill tinha algo superior: uma capacidade quase poética para idealizar uma realidade que ainda não existia. Uma realidade feita de coragem, sacrifício e vitória que levou os ingleses a acreditar.

Foi o elitismo de Churchill que derrotou Hitler, não o seu populismo. O filme de Joe Wright é simpático para o mundo igualitário de 2018, mas é uma traição às "horas sombrias" de 1940.

A bomba venezuelana - MÍRIAM LEITÃO, O Globo


O GLOBO - 13/02

A viagem de ontem do presidente Michel Temer a Boa Vista marcou o início da federalização do problema que antes estava entregue apenas à Roraima. A decisão de criar uma força-tarefa e baixar uma MP para enfrentar a crise veio da constatação de que a questão dos venezuelanos assumiu dimensão muito grande e que é preciso uma atuação conjunta de vários órgãos federais, sob o comando das Forças Armadas.

A força-tarefa vai oferecer serviço médico, alimentação e triagem na fronteira com a entrega de documentos provisórios. O governo hesitou nos últimos meses, entre agir ou não. O temor é que quanto mais efetiva for a ajuda, maior o incentivo a vir para o Brasil. Só que o peso da crise estava todo sobre Roraima. Esta é a primeira crise migratória que o Brasil enfrenta.

A economia venezuelana apresenta números de país em guerra. De 2012, ainda no governo de Hugo Chávez, até o final de 2018, o PIB per capita terá encolhido 50%, pelos cálculos da consultoria Econométrica. Este será o quinto ano de queda. Isso jamais aconteceu no país, mesmo durante os dois conflitos do século XIX, a guerra da independência e o tumulto civil conhecido como a Guerra Federal, conta o economista venezuelano Ángel García Banchs, sócio da Econométrica, que há seis meses deixou o país para ir morar na Espanha. Hiperinflação, que pode ter sido de 3.000% no ano passado, desemprego em massa e desabastecimento crônico estão produzindo a maior onda de refugiados venezuelanos da história. A Colômbia, primeiro destino, está restringindo a entrada. O Brasil vem recebendo cada vez mais.

Uma pesquisa feita em Boa Vista, no final do ano passado pelo Instituto Unama, perguntou a 626 pessoas se o entrevistado “considera o povo venezuelano amigo do brasileiro", 61% disseram “não", chegando a 70% na faixa de renda acima de cinco salários mínimos. A maioria admite que nem conversa com os refugiados e responsabiliza os venezuelanos pelos problemas de Boa Vista. Eles dizem que o estado brasileiro não deveria ajudá-los financeiramente e 66% pensam que não deveria ser permitida a entrada de novas pessoas do país vizinho.

O economista venezuelano explica que a economia não apenas está encolhendo; ela cai em queda livre.

— Em 2017, o PIB encolheu 13%, pelas previsões, e vai cair algo como 15% neste ano. É um dado de guerra, e é assim que a situação vai terminar, com a mais primitiva de todas as soluções. A saída para o problema não será interna — diz García.

O governo de Maduro antecipou as eleições presidenciais para 22 de abril. A oposição não sabe se concorrerá. O calendário eleitoral pode estar por trás do movimento recente do governo de reacender a discussão territorial com a vizinha Guiana. A questão vem desde o século XIX, quando a área foi adquirida pela Grã-Bretanha. Recentemente, a Exxon encontrou petróleo no litoral da Guiana. Como este é o único assunto que une governo e oposição, o Brasil teme o conflito na nossa fronteira.

A Econométrica apura um índice de escassez no país. A taxa estava em 55% em janeiro. Faltam, principalmente, alimentos. No caso de azeites e óleos, o desabastecimento chega a 89%; nos peixes, a taxa está em 87%. A falta de pães, cereais, leite, queijo e ovos é de 80%. A Venezuela importa praticamente tudo, e está faltando dólares. As reservas internacionais estão em queda. O país atrasa pagamentos de dívidas desde o ano passado e tem hoje menos de US$ 10 bi em caixa. A produção de petróleo, que responde por mais de 90% dos ingressos internacionais do país, caiu 20% no ano passado, uma redução de 300 mil barris. A estatal PDVSA atrasou pagamentos e fornecedores deixaram de prestar serviços ou fecharam as portas. O país, assim, passou a conviver com o êxodo de seus cidadãos.

— Primeiro, foram os profissionais mais talentosos e bem preparados. Agora, estão indo pessoas de todas as idades e formações. Algo como 6 milhões de venezuelanos devem deixar o país neste ano, gente que foge da fome e busca abrigo nos países da região, especialmente na Colômbia. O problema não é só da Venezuela, é tão grande que se tornou um tema internacional — diz García. A Venezuela tem 31 milhões de habitantes.

Essa é a bomba que está armada na fronteira com o Brasil.

(COM MARCELO LOUREIRO)