segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

‘Farra’ do crédito de veículos gerou rombo de R$ 22,8 bi para bancos


Vendas. Em 2010 e 2011, com o governo incentivando o consumo, instituições financeiras ampliaram os empréstimos para a compra de veículos com prazos que chegavam a 100 meses; dos R$ 209 bi emprestados, R$ 38 bi trouxeram algum tipo de problema

Fernando Nakagawa / BRASÍLIA, O Estado de S. Paulo
12 Fevereiro 2018 | 05h00
O custo da festa do crédito fácil para veículos do começo da década foi alto para as instituições financeiras. Dados inéditos do Banco Central mostram que o setor teve problemas para receber R$ 38,1 bilhões em financiamentos concedidos em 2010 e 2011, quando era possível comprar um carro zero, sem entrada, parcelado em até cem vezes. Bancos já desistiram de cobrar R$ 22,8 bilhões e reconheceram o valor como prejuízo, mas o setor ainda trabalha para receber outros R$ 15,3 bilhões emprestados naquela época.
Após o estouro da crise financeira global em 2008, o governo reagiu para tentar amenizar a maré negativa do exterior. Queda de impostos, redução de juros e liberação de dinheiro aos bancos fizeram parte da receita que permitiu ao País passar os primeiros anos da crise com poucos arranhões. Enquanto o mundo colhia cacos, o Brasil dava sinais de vigor e o setor de veículos virou símbolo do Brasil que consumia cada vez mais. 
Crescimento.
Crescimento. Crédito mais fácil impulsionou mercado de veículos no início da década Foto: Sérgio Castro/Estadão
Tanta confiança mudou profundamente a economia. Enquanto consumidores estavam cada vez mais seguros sobre o futuro, montadoras anunciavam bilhões em novos projetos e bancos afrouxavam parâmetros no crédito. Assim, a concessão de financiamentos para veículos atingiu patamar nunca mais alcançado: R$ 105,3 bilhões emprestados em 2010 e outros R$ 102,5 bilhões em 2011. No ano passado, esse valor foi de R$ 87,3 bilhões. Os bancos liberaram em média R$ 3.339,66 a cada segundo em novos financiamentos naquele período.
Essa avalanche de crédito chegou em condições inéditas. Clientes sem histórico bancário conseguiam financiar um carro zero sem entrada e com prazo que superava oito anos. Para convencer indecisos, concessionárias e montadoras investiam pesado em publicidade e o IPI zero dos veículos populares era o grande chamariz.
O preço dessa festa apareceu agora. Dos R$ 209 bilhões emprestados em 12,32 milhões de operações aprovadas em 2010 e 2011, bancos enfrentaram algum tipo de problema com o recebimento de R$ 22,8 bilhões em 2,24 milhões de financiamentos. Ou seja, operações classificadas como “problemáticas” pelo próprio BC corresponderam a 18,2% de todas as que foram feitas.
“Tudo o que se fabricou, vendeu. Com a chegada dos novos consumidores, motivados pela emoção e que não tinham experiência com financiamentos, é óbvio que se esperava um aumento da inadimplência”, diz o presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras, Luiz Montenegro. “Eu prefiro olhar isso como um profundo aprendizado.”
Nesse boom do crédito, o ápice dos problemas parece ter ocorrido em abril de 2011. Dos financiamentos com prazo superior a 60 meses concedidos naquele mês, 34% registraram problemas. Para comparação, o mesmo indicador ficou em 4,6% nos empréstimos de 2016 e não alcança nem 1% do crédito para veículos de 2017.
Freio. Diante da situação, o BC anunciou medidas para tentar conter a expansão do crédito: passou a exigir mais capital para que bancos emprestassem em 2010 e criou novas exigências para financiamentos mais longos em 2011. A reação e o início dos problemas nos próprios bancos serviram como um freio de arrumação forçado: prazos foram encurtados e voltou-se a exigir entrada para a compra do carro.
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Mário Mendonça, estudou a evolução do mercado de crédito para veículos nos últimos anos e avalia que os incentivo do governo ao consumo e crédito foram a razão dos problemas. “Esse artificialismo gerou a inadimplência porque as operações não eram sustentáveis”, avalia. “Esse aumento do endividamento acabou sendo ajustado algum tempo depois, quando a inadimplência disparou”. 
Nas instituições financeiras, há reconhecimento de que houve exagero na época. Executivos do setor dizem que a régua para aprovar financiamentos “estava frouxa demais”. O resultado apareceu meses à frente, quando o setor teve de aumentar a provisão contra calotes. Representantes do setor dizem, porém, que todos os problemas relevantes gerados nessa época já saíram dos balanços e o mercado voltou a operar normalmente. 
Apesar dessa normalidade defendida pelos bancos, ainda há consumidores com carnê a pagar daquela época. Para esses clientes, problemas continuam surgindo. O último dado do BC, de setembro de 2017, indicava 251 financiamentos concedidos em 2010 e 2011 com atraso de 30 dias nos pagamentos. Esse é o primeiro passo para o calote.
Aprendizado. “Zero km com zero entrada e zero IPI”. A placa colorida com tantos zeros instalada em uma concessionária atraiu Jefferson Silva. Era 2011 e o gráfico fez as contas. O resultado foi comemorado: com o salário, dava para comprar um carro novinho.
“Nem pesquisei muito. Entrei em duas concessionárias e fechei negócio na terceira”, lembra.
Sem nenhum real de entrada, Silva saiu da revenda dirigindo um Celta 1.0 preto com ar quente, direção hidráulica, travas e vidros elétricos. Por tudo isso, se comprometeu com 70 parcelas mensais de R$ 819,03. O contrato mostrava uma dívida de R$ 57.332,10, mas a chave era de um carro que, zero, valia R$ 32 mil.
O carro era perfeito para o trajeto de mais de 40 quilômetros entre a casa na zona leste da capital paulista, até o trabalho, na zona sul. “Era bem mais rápido.” Ele levava pouco mais de uma hora no trajeto que ultrapassava duas horas no transporte público. “Também percebi, rapidamente, que estava em uma encrenca. Só de gasolina gastava quase R$ 600 por mês. Não imaginava tudo isso”, conta Silva.
O grande baque ocorreu três meses depois, quando ele se envolveu em um acidente. Felizmente, não se machucou. Mas o que doeu foi a conta de R$ 2,2 mil para pagar a franquia do seguro. “Quando você compra um carro, acha que é só entrar e pagar a prestação. Não era.” 
O gráfico apertou as contas e continuou pagando a dívida por três anos. Após a 37.ª parcela, jogou a tolha. Tentou a internet, mas não conseguiu vender o carro. Tentou transferir a dívida e pediu R$ 3,5 mil a quem se comprometesse a pagar as 33 parcelas restantes. Não houve interessado. No fim, o único caminho foi uma revenda de carros usados. 
Pelo Celta 2011 que havia consumido R$ 30.304 do gráfico, a concessionária ofereceu exatos R$ 19,5 mil. “Liguei no banco para ver quanto era para quitar a dívida e eles pediram R$ 19 mil. Fechei negócio e fiquei com R$ 500 no bolso”, lamenta. “Foi como se eu tivesse alugado aquele carro por três anos.” 
Apesar da reclamação, há quem diga que Silva teve sorte. “Ninguém conseguia vender porque começaram a aparecer carros com dívida de R$ 30 mil, mas que valiam metade. Isso fez com que o mercado de usados despencasse”, lembra o presidente da Associação dos Revendedores de Veículos Automotores de São Paulo, George Assad Chahade. “Essa bolha deixou um monte de micos na mão dos clientes que não estavam preparados.” 
Hoje, Silva olha com alívio para o passado e diz que está mais cauteloso com o dinheiro. Além do trabalho como gráfico, também é motorista de aplicativo nas horas vagas e, apesar da vontade, teme entrar em um novo financiamento. Por isso, paga R$ 1,4 mil por mês pelo carro. Dessa vez, alugado de verdade.

Preso preventivamente desde abril de 2015, Vaccari recorre ao Supremo, OESP



O ex-tesoureiro do PT, condenado a 24 anos pelo Tribunal da Lava Jato sem trânsito julgado, está encarcerado por medida cautelar






Luiz Vassallo
12 Fevereiro 2018 | 17h20

O ex-tesoureiro do PT João Vaccari. Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Chegou às mãos do relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, Luiz Edson Fachin, no dia 8 de fevereiro, um habeas corpus da defesa do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto. O advogado Luiz Flávio Borges D’Urso quer que a prisão preventiva do petista, que já dura dois anos e 10 meses, seja revogada. Vaccari foi absolvido duas vezes e e teve sua pena de 10 anos mais do que dobrada, para 24, pelo Tribunal da Lava Jato. Ainda restam à defesa embargos no âmbito do TRF-4 antes que os desembargadores determinem a execução da pena.
“Primeiro, essa prisão é injusta, por conta da desnecessidade da prisão preventiva, e também a ausência do trânsito em julgado, cuja execução provisória é inconstitucional. A defesa do Sr Vaccari continua a lutar contra essa grande injustiça que ele ainda suporta.”, ressalta o defensor do petista.

O ex-tesoureiro do PT foi preso no dia 15 de abril de 2015, por decisão do juiz federal Sérgio Moro, na 12ª fase da Operação Lava Jato. Ao mandar prendê-lo, o magistrado viu risco de o dirigente petista, “em tal posição de poder e de influência política”, persistir na prática de crimes “ou mesmo perturbar as investigações e a instrução” da ação penal da qual é réu sob a acusação de corrupção e lavagem de dinheiro.
Passados quase três anos, o petista foi absolvido duas vezes e condenado uma vez em segunda instância. Na primeira sentença favorável, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região o livrou de uma pena de 15 anos proferida por Moro, e também de um dos mandados de prisão.
Na segunda vez em que foi absolvido, em setembro de 2017, o presidente da 8ª Turma, Leandro Paulsen, destacou que a absolvição de Vaccari não afeta a sua prisão preventiva, porquanto está determinada em outra das nove ações penais que tramitam contra ele.
Já em outra ação penal julgada pela Corte, os desembargadores aumentaram de 10 para 24 anos a pena do tesoureiro do PT. O desembargador Leandro Paulsen, que absolveu Vaccari nas duas apelações criminais julgadas anteriormente, esclareceu que “neste processo, pela primeira vez, há declarações de delatores, depoimentos de testemunhas, depoimentos de corréus que à época não haviam celebrado qualquer acordo com o Ministério Público Federal e, especialmente, provas de corroboração apontando, acima de qualquer dúvida razoável, no sentido de que Vaccari é autor de crimes de corrupção especificamente descritos na inicial acusatória”.
A ação na qual Vaccari viu sua pena ser aumentada trata das propinas pagas pelo Grupo Keppel em contratos celebrados com a empresa Sete Brasil Participações para o fornecimento de sondas para utilização pela Petrobras na exploração do petróleo na camada do pré-sal. Parte dos pagamentos teria ocorrido por transferências em contas secretas no exterior e outra parte iria para o Partido dos Trabalhadores.
O petista ainda está condenado a 6 anos e 8 meses (setembro de 2016), de 10 anos (fevereiro de 2017) e de 4 anos e 6 meses (junho de 2017) pelo juiz federal Sérgio Moro.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Não se pode viver lá no sol, Marcelo Rubens Paiva, OESP


Joaquim, de quase 4 anos, passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa

Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo
10 Fevereiro 2018 | 02h00
Escritor tira férias para escrever. Dessa vez, tirei férias para não fazer nada. Não tínhamos TV, mas Wi-Fi. Víamos estrelas no céu e streaming às noites. Não entrei em redes sociais, nem chequei e-mails. Minha companhia foi a família. E 900 páginas de Vida e Destino (Vassily Grossman).
Estávamos numa praia com rio, muitos moradores locais, PFs, uma padoca, uma venda, duas sorveterias. Única obrigação era passear às tardes com meu filho mais velho, que convocava: “Vamos dar uma volta ao redor do mundo”.
A ida demorou sete horas, num congestionamento não detectado pelo Waze. Três acidentes interromperam o tráfego na Mogi-Bertioga e Rio-Santos. 
Eu, a mulher, Joaquim, quase 4 anos, e Sebastião, um e meio, com biscoitos de polvilho, doces, frutas e água, sem rádio ou sinal de celular, precisávamos de música. Só havia um CD: Transa. Que sorte... Caetano Veloso entrou com tudo na nossa rotina casualmente. 
Transa, de 1972, é tão complexo e completo, que é possível numa viagem de carro escutar diversas vezes. A família, especialmente Tião, foi tragada pelo disco de uma tristeza construtiva, positiva. Que é sobre saudade, solidão, orgulho, prestar homenagens, repensar a vida, reconsiderar planos, buscar entender o desconhecido dentro e fora de nós: “You don’t know me, better never get to know me, fell so lonely... There is nothing you can show me from behind the wall...”.
A história dele é tão sensacional quanto o conteúdo. Caetano, com Gil, expulso do Brasil, depois de dois meses preso, em que lhe rasparam os cabelos, chegou a Londres com pouco dinheiro, sem falar inglês direito, tímido, Curioso, apavorado. Vivera o terror de não saber se seria morto ou torturado no minuto seguinte. 
Caetano dedica páginas de Verdade Tropical a ele. Conta que militares, depois de mostrarem uma lista de artistas que estava colaborando com o regime, facilitariam a vida dele se fizesse um disco em homenagem à Transamazônica, projeto-símbolo da ditadura.
Ao chegar a Londres, fez Transa. Disco com Asa Branca (Luiz Gonzaga), Gregório de Matos (Triste Bahia), e o genial e esquecido e elegante sambista showman Monsueto Menezes (Mora na Filosofia), o Marvin Gaye do samba brasileiro; Caetano o gravaria novamente em Araçá Azul.
Afoxé, capoeira, Abaeté, bairros baianos, cantos de samba de roda, afros, em três sessões de gravação, como se fossem um show, uma jam session, sob a direção do absoluto Jards Macalé. Caetano chamou da Bahia Moacir Albuquerque para fazer “um contrabaixo baiano”. Tutti Moreno e Áureo de Sousa, que estavam em Londres, na bateria e percussão. 
Ralph Mace, um ex-executivo da Phillips, produziu. E mudou a carreira do baiano, ao pedir para o próprio tocar violão, que ninguém melhor que ele, que se achava um instrumentista inferior, levava suas músicas. Caetano diz que é dos seus discos favoritos, apesar de nunca os escutar.
Não parou de tocar nas vitrolas dos meus anos 1970. Eu tocava e cantava no violão a maioria das músicas em rodas e fogueiras. Uma casa em que morei com uma turma mais da pesada preferia o próximo, o maravilhoso Araçá Azul, o disco mais experimental do Caetano.
No carro, Joaquim o escutou em silêncio, concentrado. Tião, quando acabava uma música, reclamava até começar a próxima. Não reclamaram das quase sete horas de viagem e desconforto. Fomos tragados pelo clima do disco. Minha mulher o definiu bem: “Gosto, porque Caetano é atirado”.
Na casa da praia, para colocá-los para dormir, fui de Caetano. Todos os discos estão no YouTube. Fui de Terra Canto de Um Povo de Um Lugar. Como visitamos a Aldeia Rio Silveiras da Serra do Mar, de índios guaranis, em que Joaquim ganhou um arco e flecha do pajé, mostrei Um Índio. Há mais de 30 anos, eu tocava todas elas no violão.
A poética sociológica (“que gostava de política em 1966 e agora dança num frenético Dancing Days” explica uma década) e a metafísica com exaltação da natureza tropical domou Joaquim. Passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa, com letras intrigantes que não ouso interromper. Captei uma que dizia “e o sooool, não pode comer lá no sol, não pode viver lá no sol, e nada, a festa acabou...”. Ele faz 4 anos semana que vem!

Tião, hoje, só dorme se ouvirmos De Conversa / Cravo e Canela (primeira faixa de Araçá Azul), uma maluquice que Caetano fez com Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
Me lembrei de como Caetano é importante a todos nós. Mace pedira para ele ficar em Londres, que sua carreira bombaria lá. Estava convocado para fazer a trilha de Irmão SolIrmã Lua, de Zeffirelli. 
Mas, assim que teve uma brecha, voltou ao Brasil dos mesmos militares que o aterrorizaram, a nós, à nossa cultura, ao trópico. 
Como deficiente, defendo o lugar de fala. Mas como, quando se escuta Tigresa, não ceder a um homem o direito de falar sobre uma mulher que conta que “com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher, que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor, e espalhado muito prazer e muita dor, mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar, porque ela vai ser o que quis”.