Joaquim, de quase 4 anos, passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa
Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo
10 Fevereiro 2018 | 02h00
Escritor tira férias para escrever. Dessa vez, tirei férias para não fazer nada. Não tínhamos TV, mas Wi-Fi. Víamos estrelas no céu e streaming às noites. Não entrei em redes sociais, nem chequei e-mails. Minha companhia foi a família. E 900 páginas de Vida e Destino (Vassily Grossman).
Estávamos numa praia com rio, muitos moradores locais, PFs, uma padoca, uma venda, duas sorveterias. Única obrigação era passear às tardes com meu filho mais velho, que convocava: “Vamos dar uma volta ao redor do mundo”.
A ida demorou sete horas, num congestionamento não detectado pelo Waze. Três acidentes interromperam o tráfego na Mogi-Bertioga e Rio-Santos.
Eu, a mulher, Joaquim, quase 4 anos, e Sebastião, um e meio, com biscoitos de polvilho, doces, frutas e água, sem rádio ou sinal de celular, precisávamos de música. Só havia um CD: Transa. Que sorte... Caetano Veloso entrou com tudo na nossa rotina casualmente.
Transa, de 1972, é tão complexo e completo, que é possível numa viagem de carro escutar diversas vezes. A família, especialmente Tião, foi tragada pelo disco de uma tristeza construtiva, positiva. Que é sobre saudade, solidão, orgulho, prestar homenagens, repensar a vida, reconsiderar planos, buscar entender o desconhecido dentro e fora de nós: “You don’t know me, better never get to know me, fell so lonely... There is nothing you can show me from behind the wall...”.
A história dele é tão sensacional quanto o conteúdo. Caetano, com Gil, expulso do Brasil, depois de dois meses preso, em que lhe rasparam os cabelos, chegou a Londres com pouco dinheiro, sem falar inglês direito, tímido, Curioso, apavorado. Vivera o terror de não saber se seria morto ou torturado no minuto seguinte.
Caetano dedica páginas de Verdade Tropical a ele. Conta que militares, depois de mostrarem uma lista de artistas que estava colaborando com o regime, facilitariam a vida dele se fizesse um disco em homenagem à Transamazônica, projeto-símbolo da ditadura.
Ao chegar a Londres, fez Transa. Disco com Asa Branca (Luiz Gonzaga), Gregório de Matos (Triste Bahia), e o genial e esquecido e elegante sambista showman Monsueto Menezes (Mora na Filosofia), o Marvin Gaye do samba brasileiro; Caetano o gravaria novamente em Araçá Azul.
Afoxé, capoeira, Abaeté, bairros baianos, cantos de samba de roda, afros, em três sessões de gravação, como se fossem um show, uma jam session, sob a direção do absoluto Jards Macalé. Caetano chamou da Bahia Moacir Albuquerque para fazer “um contrabaixo baiano”. Tutti Moreno e Áureo de Sousa, que estavam em Londres, na bateria e percussão.
Ralph Mace, um ex-executivo da Phillips, produziu. E mudou a carreira do baiano, ao pedir para o próprio tocar violão, que ninguém melhor que ele, que se achava um instrumentista inferior, levava suas músicas. Caetano diz que é dos seus discos favoritos, apesar de nunca os escutar.
Não parou de tocar nas vitrolas dos meus anos 1970. Eu tocava e cantava no violão a maioria das músicas em rodas e fogueiras. Uma casa em que morei com uma turma mais da pesada preferia o próximo, o maravilhoso Araçá Azul, o disco mais experimental do Caetano.
No carro, Joaquim o escutou em silêncio, concentrado. Tião, quando acabava uma música, reclamava até começar a próxima. Não reclamaram das quase sete horas de viagem e desconforto. Fomos tragados pelo clima do disco. Minha mulher o definiu bem: “Gosto, porque Caetano é atirado”.
Na casa da praia, para colocá-los para dormir, fui de Caetano. Todos os discos estão no YouTube. Fui de Terra e Canto de Um Povo de Um Lugar. Como visitamos a Aldeia Rio Silveiras da Serra do Mar, de índios guaranis, em que Joaquim ganhou um arco e flecha do pajé, mostrei Um Índio. Há mais de 30 anos, eu tocava todas elas no violão.
A poética sociológica (“que gostava de política em 1966 e agora dança num frenético Dancing Days” explica uma década) e a metafísica com exaltação da natureza tropical domou Joaquim. Passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa, com letras intrigantes que não ouso interromper. Captei uma que dizia “e o sooool, não pode comer lá no sol, não pode viver lá no sol, e nada, a festa acabou...”. Ele faz 4 anos semana que vem!
Tião, hoje, só dorme se ouvirmos De Conversa / Cravo e Canela (primeira faixa de Araçá Azul), uma maluquice que Caetano fez com Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
Me lembrei de como Caetano é importante a todos nós. Mace pedira para ele ficar em Londres, que sua carreira bombaria lá. Estava convocado para fazer a trilha de Irmão Sol, Irmã Lua, de Zeffirelli.
Mas, assim que teve uma brecha, voltou ao Brasil dos mesmos militares que o aterrorizaram, a nós, à nossa cultura, ao trópico.
Como deficiente, defendo o lugar de fala. Mas como, quando se escuta Tigresa, não ceder a um homem o direito de falar sobre uma mulher que conta que “com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher, que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor, e espalhado muito prazer e muita dor, mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar, porque ela vai ser o que quis”.
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