sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Dinheirama disponível - CELSO MING, OESP


ESTADÃO - 19/08

A enorme abundância de dólares deveria ser encarada como janela de oportunidades, mas ela está sendo desperdiçada


Há pouco mais de dois anos, certo número de analistas da economia brasileira previa a iminência de uma tempestade perfeita.

Entre os estragos que se diziam inevitáveis não estavam apenas o tamanho do rombo das contas públicas e a depressão que se viram depois, mas, também, a forte valorização do dólar nos mercados que se seguiria ao aumento dos juros em preparação pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos).

De lá para cá, o sistema produtivo brasileiro entrou em parafuso, como todos sabemos, o desemprego alcança hoje 11,3% da força de trabalho, a renda do brasileiro está sendo dilapidada e as desgraças vão se sucedendo por opções equivocadas. No entanto, não aconteceu a tão temida operação de enxugamento de liquidez a ser colocada em prática pelo Fed. Se tivesse acontecido, produziria certo sumiço de dólares no mercado de câmbio do Brasil e a alta das cotações da moeda estrangeira.



Essa operação vem sendo sucessivamente adiada, à espera de melhores condições para isso. Quarta-feira, a ata da última reunião do Fed mostrou forte divergência entre seus membros. Há os que argumentam que o nível de desemprego está perto de cair e que essa seria a senha para iniciar o processo de alta de juros. E há os que advertem não só que uma alta dos juros derrubaria ainda mais a inflação que hoje vai girando abaixo da meta de 2,0% ao ano mas, também, que a retomada da atividade econômica dos Estados Unidos continua frágil e não deveria ser restringida por um aperto monetário.

O adiamento do processo de alta dos juros nos Estados Unidos deixa enormes disponibilidades de recursos nos mercados internacionais de câmbio, agora ainda mais incrementadas pela atuação de outros bancos centrais. O Banco Central Europeu, por exemplo, continua injetando recursos não só para enfrentar a recessão, mas, também, os problemas novos produzidos pelo Brexit, a decisão dos ingleses de abandonar a União Europeia. Pelo mesmo motivo, o Banco da Inglaterra (banco central) também afrouxou sua política monetária. Mas há mais bancos centrais poderosos no mesmo caminho, como o Banco do Japão e o Banco Nacional da Suíça.

Muitos por aqui encaram essa impressionante liquidez global como problema, na medida em que injeta mais moeda estrangeira no câmbio interno e concorre para valorização do real (baixa do dólar), situação que derruba a competitividade do produto brasileiro e, assim, prejudica a indústria.

No entanto, essa enorme abundância de dólares deveria ser encarada como janela de oportunidades a ser aproveitada pelo Brasil. E, todavia, ela está sendo desperdiçada.

Poderia servir para atrair capitais de investimento, especialmente para projetos de infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e saneamento), mas os leilões de concessão estão emperrados, pela falta de regras confiáveis de jogo e pela falta de projetos claros. Quando os bancos centrais afinal voltarem a enxugar essa dinheirama, ficará bem mais difícil encontrar financiamento para os investimentos de que o Brasil tanto precisa.

CONFIRA:




Aí está a evolução da produção agrícola pelos números do IBGE.

Recuperação

Na semana passada, Conab e IBGE apontaram queda de 9,8% na atual safra de grãos em consequência da estiagem no Centro-Oeste. Mas nesta quinta-feira, 18, o secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Néri Geller, declarou que o governo espera ampla recuperação. Para ele, a próxima safra atingirá 210 milhões de toneladas de grãos, cerca de 12% acima da anterior. A próxima safra começará a ser semeada em setembro e outubro, quando começar a estação das chuvas.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

STF patrocina inconcebível fragilização da Ficha Limpa - EDITORIAL O GLOBO


O Globo - 17/08

Veredicto dado pela maioria da Corte subordina o enquadramento de governadores e prefeitos na lei à aprovação por dois terços de assembleias e câmaras


Há meandros da política e das interpretações jurídicas muito tortuosos. Quando se conectam os dois, então, podem surgir situações preocupantes. Na política brasileira, a corrupção é, já há algum tempo, um inimigo a ser vencido. E, neste embate, a aprovação da Lei da Ficha Limpa, em 2011, a partir de um movimento popular sustentado por centenas de milhares de assinaturas de eleitores, foi uma vitória memorável.

Por meio da nova lei, a Justiça Eleitoral passou a poder barrar a candidatura de condenados em segunda instância, não sendo mais necessário aguardar o “transitado em julgado”, ou seja, a validação do veredicto na última instância.

Muitos se valeram do preceito constitucional da “presunção de inocência” para driblar outra imposição da Carta — que o candidato deve ser probo e de reputação ilibada. Com a eternização de processos conseguida por meio de incontáveis recursos, gente com prontuário e processo judicial confirmado em segundo julgamento se elegia e passava a se proteger sob as imunidades concedidas aos representantes do povo. Grande golpe.

A questão parecia vencida, mas, há pouco, uma interpretação surpreendente da maioria do Supremo desidratou parte da Ficha Limpa. Entendeu a Corte, ao julgar um processo, que a condenação de prefeitos e governadores por tribunais de contas, até agora suficiente para enquadrá-los na legislação saneadora aprovada em 2011, precisará, para isso, ser sancionada por no mínimo dois terços das respectivas Casas Legislativas.

Ora, na prática, o STF torna impune boa parte de prefeitos e governadores, os quais, dada a prática usual do fisiologismo no relacionamento entre Executivo e Legislativo, costumam controlar assembleias e câmaras.

Há, no caso, uma discussão de tecnicalidades sobre “contas de gestão” — de responsabilidade direta de governador e prefeito — e “contas de governo”, relacionadas à execução do Orçamento, conforme planos e programas do Executivo.

Mas o que importa, para a sociedade, é que, como disse o ministro da Corte Luís Roberto Barroso, voto vencido neste julgamento, a responsabilidade de julgá-las seja dos tribunais de contas.

Se a Lei da Ficha Limpa não puder ser acionada contra políticos maus administradores — de má-fé ou não —, porque eles controlam câmaras e assembleias ou, tão grave quanto, sequer deixam o parecer do tribunal ser apreciado por deputados e vereadores, parcela ponderável da eficácia da legislação terá sido revogada pelo STF.

No entendimento acertado de Barroso, ninguém pode dizer: “Eu sou ladrão, mas tenho maioria da Câmara Municipal.” Pois poderá, caso o entendimento não seja revisto.

Para isso, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral deverá impetrar um “embargo de declaração” junto à Corte. É a chance de o Supremo recolocar em vigor a Ficha Limpa, que ele próprio declarou constitucional em 2012.

Caminhos para a privatização - JERSON KELMAN


O Globo - 17/08


É preciso garantir aos operadores de saneamento, públicos ou privados, regras simples e seguras para atualização tarifária e para a recuperação dos investimentos


A manchete do GLOBO de domingo afirma que a “União quer privatizar tratamento de esgoto” e que para isso o “BNDES vai discutir modelos para o setor com os estados”. A intenção governamental é boa porque estamos muito atrasados nesse setor, mesmo quando comparados a países com renda per capita semelhante à nossa. Um bom exemplo do potencial dessa política é a Sabesp, que tem empreendido Parcerias-Público-Privadas com ganhos de produtividade. Além disso, capitais privados são particularmente bem-vindos em tempos de escassez de recursos fiscais. Contudo, para que essa iniciativa prospere, será necessário resolver os três problemas enunciados a seguir.

É preciso garantir aos operadores de saneamento — públicos ou privados — regras simples e seguras para atualização tarifária e para a recuperação dos investimentos na hipótese de rompimento dos respectivos contratos. Nesse sentido, é importante manter registro dos valores prudentemente investidos nas obras, que devem ser continuamente ajustados para considerar a incorporação de novas instalações e a depreciação das existentes. Como se trata do montante a ser indenizado ao operador de saneamento na hipótese de interrupção ou fim da prestação do serviço, não surpreende que o ambiente para investimentos no saneamento dependa diretamente da capacidade técnica, independência decisória e autonomia administrativa da correspondente agência, que tem a responsabilidade de cuidar da contabilidade regulatória. Lamentavelmente, a maioria das agências hoje existentes, em particular as municipais, não se enquadra nesse figurino e, por uma questão de escala, jamais se enquadrará.

É preciso compatibilizar a legislação ambiental, que exige soluções imediatas, com a do saneamento, que admite soluções gradativas. Por exemplo, o afastamento do esgoto de onde as pessoas vivem, mesmo quando não seja possível o correspondente tratamento. A atual diferença de enfoque resulta em riscos para as empresas prestadoras de serviço e para seus funcionários, que chegam a ser acusados de crimes ambientais quando solucionam provisoriamente algum problema que não admite imediata implementação de solução definitiva.

Como se sabe, a legislação ambiental foi concebida para impedir que pessoas físicas ou jurídicas, motivadas por interesses particulares, causem externalidades ambientais prejudiciais ao interesse coletivo. Trata-se de tipologia que não se adéqua a uma empresa de saneamento, que atua para mitigar a poluição causada pela sociedade, e não por ela própria. Confundir “a solução” com “o problema” afugenta do setor profissionais e empresas competentes, que poderiam dar significativas contribuições ao progresso do saneamento.

É preciso garantir o correto funcionamento das estruturas já existentes e das que ainda serão construídas, em vez de construir novas obras, frequentemente efêmeras. Idealmente, o serviço de saneamento deveria operar como se fosse uma indústria de produção de lodo. Primeiro, a carga poluidora intrínseca à condição humana é diluída numa grande quantidade de água para possibilitar o transporte por tubulações subterrâneas. Depois, o esgoto que chega à estação de tratamento passa por uma combinação de processos físicos, químicos e biológicos para inverter o processo. Isto é, para voltar a concentrar a carga poluidora num volume relativamente pequeno, chamado de “lodo”. Portanto, quanto mais lodo se produz para deposição final em aterro sanitário ou para uso como insumo energético, menor é a carga poluidora lançada nos corpos hídricos. Como qualquer indústria, seria de se esperar que houvesse grande controle sobre o lodo, que é o resultado final da produção. Mas não é isso o que se observa. Ao contrário, em geral há muita pompa na inauguração das obras de saneamento e insuficiente avaliação dos resultados ao longo das correspondentes vidas úteis. O que explica o grande número de estruturas disfuncionais espalhadas pelo país. Isso tem que mudar.