domingo, 7 de agosto de 2016

Zygmunt Bauman: 'Três décadas de orgia consumista resultaram em uma sensação de urgência sem fim'




A frouxidão de nossa era está novamente sob escrutínio do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Criador do conceito de modernidade líquida, que acusa a fragilidade das relações atuais, ele se volta às angústias destes “dias de interregno”: quando os velhos jeitos de agir já não servem, mas os novos não foram inventados. “Trinta anos de orgia consumista resultaram em um estado de emergência sem fim”, diz – e indica uma saída: “O que pensávamos ser o futuro está em débito conosco. Para superar a crise, temos de ‘voltar ao passado’, a um modo de vida imprudentemente abandonado”
Maria Fernanda Rodrigues,
O Estado de S. Paulo
06 Agosto 2016 | 16h00
Zygmunt Bauman presenciou os principais acontecimentos do século 20 e na virada do milênio criou uma teoria que levaria seu nome para além do campo da sociologia e o tornaria um escritor best-seller – sobre a liquidez da sociedade, das relações, do nosso tempo. Um dos principais pensadores da modernidade, este polonês prestes a completar 91 anos não perde um debate, e tudo que o inquieta é transformado em livro. Fecundo autor, já escreveu cerca de 70 títulos – entre os mais de 30 publicados no Brasil, todos pela Zahar, estão Modernidade LíquidaAmor Líquido e o mais recente A Riqueza de Poucos Beneficia Todos Nós? Ele está lançando agora Babel – Entre a Incerteza e a Esperança, mas, nesta entrevista concedida aoAliás, já anuncia uma nova obra para 2017, Retrotopia, e comenta sobre Strangers at Our Door, de 2016 e ainda inédito aqui.
Babel fala do interregno – termo usado por Bauman e pelo jornalista Ezio Mauro, seu interlocutor na obra – em que estamos vivendo. Um tempo entre o que não existe mais e o que não existe ainda. De incertezas e instabilidade. Para eles, não há, no momento, movimento político que ajude a minar o velho mundo e esteja preparado para herdá-lo. Um período em que testemunhamos uma guinada conservadora geral, a instalação do medo devido a ameaças terroristas constantes – a ponto de um grupo de espanhóis confundir uma flashmob com um ataque e entrar em pânico – e as crises diversas – econômica, política, migratória, e, sobretudo da democracia que, depois de muito esforço para derrotar ditaduras, ainda precisa lutar diariamente por sua supremacia e para provar sua legitimidade, como apontam os autores. A seguir, trechos da entrevista de Bauman, professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds. 
Quando o sr. criou o conceito de modernidade líquida, vivíamos tempos melhores ou piores? O conceito ainda se aplica hoje ou já caminhamos para um outro tempo? Que interregno é esse que estamos vivendo e o que acontece depois?
Como medir a relativa excelência do nosso estilo de vida? Em que aspectos, por quais critérios? E quem são os “nós” cuja vida queremos analisar? Entre os diferentes setores da sociedade nem o ritmo e nem as direções tomadas são coordenadas (pense no fabuloso crescimento da renda e da riqueza dos 1% que estão no topo da hierarquia social frente à estagnação ou mesmo piora do nível de vida dos restantes 99%, e a outrora confiante classe média se juntando ao ‘proletariado’ ortodoxo para formar uma nova categoria, do ‘precariado’ – notória pela posição social frágil e suas perspectivas indefinidas). No geral, podemos dizer que 15 anos depois da publicação de Modernidade Líquida, a nova era, ainda incipiente e pouco percebida em meio a 30 anos de orgia consumista, de gastar dinheiro não ganho e de viver o pouco tempo que resta em novos bairros já moribundos está chegando à sua total fruição: estamos vivendo à sombra de suas consequências. E isso significa incerteza existencial, medo do futuro, uma perpétua ansiedade e uma sensação de urgência sem fim, com a primeira geração do pós-guerra sentindo a queda do nível de bem-estar social conseguido por seus pais e, na vida pública, a perda total de confiança na capacidade dos governos cumprirem suas promessas e o dever de proteger os direitos dos cidadãos e atender aos seus interesses. O fim desta confiança engendra, por outro lado, um ambiente em que ‘ninguém assume o controle’, em que os assuntos do estado e seus sujeitos estão em queda livre, e prever com alguma certeza que caminho seguir, sem falar em controlar o curso dos acontecimentos, transcende a capacidade humana individual e coletiva. O ‘interregno’ significa que velhas maneiras de agir não dão mais resultado, contudo, as novas ainda precisam ser encontradas ou inventadas. Ou: tudo pode acontecer, mas nada pode ser feito e visto com certeza.
De repente, parece que o mundo virou de ponta-cabeça: ameaças terroristas, crises econômicas, sociais e migratórias – e uma guinada conservadora está em curso. Como chegamos até aqui? Isso foi uma surpresa? 
A probabilidade dos fenômenos que você mencionou foi sugerida – na verdade, inferida – pelos sintomas que se acumulam da cada vez mais ampla separação, beirando o divórcio, do poder (ou seja, a capacidade de realizar as coisas) e da política (a capacidade de decidir quais coisas necessitam ser feitas). Essas duas condições indispensáveis para uma ação efetiva até mais ou menos 50 anos atrás caminhavam de mãos dadas no Estado-nação, mas se separaram e seguiram destinos diferentes: enquanto o poder em grande medida ficou ‘globalizado’ – e se tornou ‘extraterritorial’, livre de controles, direção e orientação por instituições políticas – a política permaneceu como antes, local, confinada ao território do Estado e impotente diante da influência importante dos poderes que não se submetem a controles e que são os que importam na escala global. Hoje, os poderes emancipados do monitoramento e da supervisão política enfrentam políticos pé no chão e sofrendo o contínuo, e até agora incurável, déficit de poder. Vivemos uma crise institucional permanente. Os instrumentos de ação coletiva herdados dos nossos ancestrais e cujo fim foi servir à causa da independência de estados territorialmente soberanos não são mais adequados nesta situação de interdependência mundial criada pela globalização do poder.
A atual crise da democracia, e, portanto, a crise das instituições democráticas, como o sr. coloca, são importantes tópicos de ‘Babel’. O senhor diz que os governos democráticos são instáveis porque tudo está fora de controle, e que a democracia não é autossuficiente. Qual é a real ameaça que enfrentamos? E qual é a origem desta crise?
Uma advertência: ‘crise de democracia’ é uma abreviação, uma noção limitada. Em países com constituições democráticas, a crise de um Estado-nação territorialmente confinado é culpa (afirmação fácil, mas não muito competente) de seus órgãos e características definidos constitucionalmente, com a divisão de poderes, liberdade de expressão, equilíbrio de poderes, direitos das minorias, para citar alguns. Mas se a democracia está ‘em crise’ é porque o Estado-nação territorialmente soberano (concebido em 1648 pelo Tratado de Westfalia e cuja fórmula é cuius regio eius religio – os súditos obedecem ao governante) está em crise, incapaz de atacar e enfrentar, sem falar em solucionar, problemas gerados pela nova interdependência da humanidade. Houvesse um governo autoritário ou ditatorial substituindo um regime democrático, os órgãos políticos resultantes não estariam livres da fragilidade dos órgãos de governos democráticos que ele substituiu e pela qual a democracia hoje é acusada. Quero acrescentar que o veredicto atribuído a Winston Churchill (“democracia é o pior dos sistemas políticos, à exceção de todos os outros”) continua verdadeiro até hoje. Para não dar confusão, acho que é aconselhável evitar atribuir responsabilidades pela impotência observada hoje dos Estados territorialmente soberanos e, em vez disso, analisar a incongruência fundamental do nosso tempo ansiando por uma revisão radical das ideias e uma reformulação das formas de coabitação da humanidade na Terra. Segundo Ulrich Beck, essa incongruência deriva do fato de que nós todos, gostemos ou não, já estamos inseridos numa situação cosmopolita, mas não nos preparamos seriamente para a tarefa extremamente urgente de desenvolver e assimilar a consciência cosmopolita.
No Brasil existe um grupo pedindo a volta dos militares ao poder e outro dizendo que o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff é golpe político. Na Turquia, os militares tentaram tomar o poder. De onde vem essa vontade de “ordem”? O quão prejudicial isso pode ser para o atual estado das coisas? Enquanto isso, Trump conquista legitimamente mais e mais eleitores. O que sua vitória pode representar para o mundo? E o que sua ascensão nos diz sobre os EUA de hoje?
O problema não é o número crescente, em vários países, de pretendentes a regimes autoritários, mas do ainda mais rápido crescimento de seus devotados apoiadores. Não é uma questão sobre os que querem o poder (eles sempre serão muitos, já que a demanda popular por eles é abundante), mas sobre a ampliação da demanda pelos serviços que eles falsamente prometem que constitui indiscutivelmente o mais perigoso dos desafios futuros que enfrentaremos. Aproveito para citar, neste aspecto, um fragmento do meu recente livro Strangers At Our Doors: “Numa flagrante violação da intenção e das promessas modernas de substituir as incertezas do destino por uma ordem coerente das coisas, sem ambiguidades, orientada por princípios morais de justiça e responsabilidade – assegurando assim uma correspondência estrita entre as aflições dos humanos e suas opções comportamentais –, os humanos hoje veem-se expostos a uma sociedade repleta de riscos, mas vazia de certezas e garantias. A primeira causa é a transcendental ‘individualização’, codinome dos que representam para a imaginada insistência da ‘sociedade’ em subsidiar a tarefa de resolver os problemas gerados pela incerteza existencial com recursos eminentemente inadequados exigidos dos próprios indivíduos. (...) Como Byung-Chul Han sugere, nossa ‘sociedade de desempenho’ se especializou numa mudança no campo da manufatura e no expurgo de ‘depressivos e desajustados’. Eles são simultaneamente vítimas e cúmplices do seu fracasso e da depressão que ao mesmo tempo é causa e consequência. (...) Com os poderes do alto lavando as mãos e rejeitando seu dever de tornar a vida das pessoas suportável, as incertezas da existência humana são privatizadas, a responsabilidade para enfrentá-las tem de ser arcada pelo frágil indivíduo, enquanto as opressões e calamidades existenciais são descartadas como tarefas tipo ‘faça você mesmo’ a serem executadas pelo indivíduo que padece. (...) Para o indivíduo que se vê abandonado e desalojado com a retirada do Estado, a ‘individualização’ pressagia uma nova precariedade da condição existencial: uma situação ruim que se torna cada vez pior.” Agora este é um contexto psicossocial em que a ânsia de um homem forte (ou mulher) que proponha ‘me deem o poder absoluto e eu o libertarei das tormentas de riscos que você não consegue enfrentar e das decisões que não consegue tomar’, só se expande.
Onde estão nossas utopias? Estamos perdendo nossa capacidade de sonhar? 
Acho que uma mudança transcendental é provável. Ao sonharmos com uma sociedade mais acolhedora e uma vida decente e significativa, avançamos gradativamente da utopia (lugar ainda inexistente, mas à espera no futuro) para o que chamo de ‘retrotopia’ (‘volta ao passado’, ao modo de vida que foi exageradamente, irrefletidamente e imprudentemente abandonado). Trato disso no meu novo livro, Retrotopia
, a ser publicado pela Polity Books em 2017. Podemos concluir que passado e futuro estão nesse quadro intercambiando suas respectivas virtudes e vícios. Agora é o futuro que parece ter chegado ao tempo de ser ridicularizado, sendo primeiro condenado pela falta de confiança e dificuldade de manejar e que está em débito. E agora o passado é o credor – um crédito merecido porque neste caso a escolha ainda é livre e o investimento é na esperança na qual ainda se acredita.
O senhor é otimista com relação ao futuro próximo do mundo? A esperança é mesmo imortal, como o senhor afirma em ‘Babel’?
Procuro seguir o preceito de Antonio Gramsci: ser pessimista a curto prazo e otimista a longo prazo. Afinal, esta não é a primeira crise na história da humanidade. De alguma maneira, as pessoas encontraram meios para superá-las no passado. Eles podem (e é essa capacidade que nos torna humanos) repetir a façanha mais uma vez. A única preocupação é: quantas pessoas pagarão com suas vidas desperdiçadas e oportunidades perdidas até que isto ocorra? /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

MAIS CONTEÚDO SOBRE:

Flexibilização da CLT, Celso Ming , OESP

Flexibilização da CLT

Há mais de 1,7 mil novas normas, regulamentações e súmulas que semeiam confusão
Celso Ming
07 Agosto 2016 | 05h00
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tem 73 anos, está envelhecida e esclerosada, mas não é o maior problema das relações de trabalho no Brasil.
“O maior problema é a insegurança jurídica”, reconhece o ministro do Trabalho, Reinaldo Nogueira. A todo momento, a Justiça do Trabalho pode inventar determinações. Há mais de 1,7 mil novas normas, regulamentações e súmulas que semeiam confusão. Cada especialista tem lá sua interpretação para a solução de um conflito, sempre sujeita a questionamentos na Justiça do Trabalho. O empregador nunca consegue medir nem seu custo nem seu passivo trabalhista. E essas incertezas são a principal razão por que, quando podem, as empresas evitam contratação de pessoal.
O governo Temer avisou que está comprometido com a elaboração de um projeto de modernização das leis trabalhistas, a ser enviado ao Congresso possivelmente ainda este ano. Como afirma o ministro, o objetivo não é mudar a CLT; é apenas reunir a CLT e as normas em vigor e dar-lhes coerência, num único código. 
Publicidade
ctv-hau-acoesjusticajun2016
Uma das propostas é dar mais força à negociação coletiva. As lideranças sindicais veem a ideia com desconfiança. Temem que, uma vez aceita, atropele direitos trabalhistas e que a proposta de flexibilização seja “armadilha vendida como solução para os problemas do emprego”. O ministro garante que não.
“O acordo coletivo não pode prevalecer sobre a lei. Não estão em questão, por exemplo, o direito à jornada de 44 horas semanais, nem as férias previstas em lei, nem o pagamento do 13.º salário. Mas o acordo coletivo pode decidir se as 44 horas se distribuirão por cinco ou por seis dias úteis da semana. Direito não se revoga; se aprimora.”
Os especialistas veem na reforma das leis trabalhistas outras prioridades. O especialista em Economia do Trabalho e professor da USP José Pastore entende que o principal objetivo da flexibilização das leis trabalhistas é “tirar o medo do empresário de empregar”. Em outras palavras, deve atacar a insegurança jurídica que hoje prevalece. “A rigidez da lei favorece os questionamentos na Justiça e isso custa muito para as empresas e para o País”. Só neste ano (até fim de junho) foram ajuizados 1.156.434 reclamações trabalhistas (veja o gráfico). 
Para o também economista e professor da USP Hélio Zylbersztajn, a mais importante consequência da valorização da negociação a médio e longo prazos é restringir a intervenção da Justiça do Trabalho. Ao contrário do que acontece aqui, em todo o mundo a negociação começa dentro da empresa. “O diálogo melhorará a relação entre capital e mão de obra.” Assim, a empresa pode entender os problemas dos trabalhadores e até mesmo reduzir custos.
Um exemplo que ilustra bem esse argumento é o artigo 134 da CLT. Lá está dito algo que hoje não faz sentido: apenas funcionários de 18 a 49 anos podem parcelar o período de férias. “Se a negociação resolver esse problema, o trabalhador ficará mais satisfeito e pode aumentar sua produtividade”, conclui Zylbersztajn./ COM RAQUEL BRANDÃO

MAIS CONTEÚDO SOBRE:

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Saudades de Zé Dirceu - ROSÂNGELA BITTAR

VALOR ECONÔMICO - 03/08

Na reta final do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, as forças políticas, tanto as prováveis vencedoras, como as derrotadas certas, começam a dar espaço à inquietude difusa. Por isso, talvez, deixem aflorar sentimentos menores que, de uma maneira não surpreendente, porém constrangedora, se expressam nos dois lados da luta.

Destacaram-se os condutores do processo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, e o presidente do Senado, Renan Calheiros. Acertaram uma data para o julgamento final que entra pelo mês de setembro e isso não tem outra explicação racional a não ser atrapalhar a viagem do presidente Michel Temer ao exterior, para estrear no G20. Ontem ensaiaram um recuo, e não se conhece ainda o calendário prevalente.

Além do referendo internacional que o novo presidente do Brasil poderia ganhar nesse encontro (aqui leia-se a obrigatória ressalva da confirmação das previsões na votação do impeachment) Renan e Lewandowski, com sua decisão, impediram também o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de estrear a cadeira de presidente da República em exercício, em substituição a Temer que não tem vice.

As pressões e contrapressões no Congresso, para aproveitar os estertores do poder de barganha máximo que já tiveram com um governo, revelam desde o exibicionismo tonitroante de alguns relatores de projetos de interesse do governo à arrogância brega de velhos fregueses da fisiologia enraizada.

Mas o máximo da disfunção ainda deve está por vir, correndo ao seu encontro o ex-presidente Lula, a presidente Dilma e os petistas da linha de frente contra o impeachment no Congresso. Esses fazem jus à dramática situação do partido-perdido, o PT, cujo desgaste se torna superlativo nesse fim de jornada. Também estão à deriva, e quem não parou de falar, prefere a inconsequência.

Resolveram retomar as derrotadas teses de golpe na defesa final da presidente e nos votos em separado, além de abraçar a proposta de degola geral e irrestrita que Dilma pretende fazer em carta à Nação, na qual proporá um plebiscito convocando eleições gerais para que deputados, senadores, governadores, presidente interino e quem mais tiver mandato venham ao seu encontro no abismo.

Não se suportam mais sequer as piadas, O advogado da presidente foi levar as alegações finais ao protocolo e soube que, no registro sequencial, a última documentação tinha o número 170. Preferiu não esperar dois minutinhos para entrar alguém com um documento qualquer. Apôs à defesa de Dilma o 171.

Dilma tenta mostrar uma força que não tem, está esticando a corda ao máximo, e o país, suas instituições estáveis, todos, estão tendo uma paciência imensa com a presidente. Ela até parece querer, às vezes, uma reação mais truculenta, talvez para justificar a pirraça e os argumentos do golpismo. Ainda dá tempo?

Dilma resolveu, também, liquidar seu único defensor, o PT, e diante da delação da Andrade Gutierrez que revelou ter sido cobrada por tesoureiros de sua campanha em 2014, a presidente ateou o fogo ao amigo. Ela não sabia, pergunte ao PT.

Mas as empresas não temem quem está fora do poder, e delação é mesmo para dizer a verdade. Assim, nominaram dois de seus braços direitos, Edinho Silva e Giles Azevedo, como os pedintes, tirando-lhe o direito à negação.

No comportamento do ex-presidente Lula, a palavra mais adequada para definir este momento do salve-se se puder é choque. Foi estarrecedor, não só para juristas, acadêmicos, políticos, diplomatas mas, sobretudo para os ainda fiéis e esperançosos no resgate do PT, seu recurso à Organização das Nações Unidas, contra o Brasil.

Lula não está afastado da vida política, como pensam muitos. Foi durante um discurso político que se defendeu, semana passada, do processo por obstrução da justiça, aberto em Brasília. Ao saber do fato, pediu que provassem que o apartamento do Guarujá e o Sítio de Atibaia são dele. Desinformado até sobre o teor da acusação daquele momento, deixou seguir o baile.

Ele pode até não ser candidato em 2018 - ontem assegurou que será - mas tem andado por aí falando ao PT e a quem mais quiser ouvi-lo. Se não for, apoiará algum outro que possa dar nova vida ao partido. Para Lula não tem outra solução, é a política. Ou alguém o imagina em casa, em tempo integral, ou voltando a ser metalúrgico? Continuará político.

Mas passava pela cabeça de um adversário ou mesmo de um aliado que o presidente da República do Brasil por oito anos, que fez a sucessora que governou plenamente por seis anos, portanto 14 longos anos com as rédeas institucionais, tivesse a inacreditável ideia de denunciar o Brasil à ONU por ser um Estado que não garante seus direitos?

Seria esdrúxulo se não fosse muito sério. O que salva a Nação do ridículo maior é que a linguagem da diplomacia filtra tudo. No máximo do máximo, se a ONU julgar procedente a representação de Lula e seus advogados e políticos amigos conselheiros, dirá o quê? "Brasil, envide esforços para...."

Os assessores de Lula e os assessores de Dilma acham que ainda podem enfrentar um cenário desses só no gogó. Quantos petistas têm repetido nas últimas semanas a frase inacreditável: "Ah, que saudades do Zé Dirceu". Está na cadeia, é verdade, mas tinha senso, inteligência, organização, estratégia política, eixo, responsabilidade partidária. Um reconhecimento tardio, no contraste da adversidade.

Michel Temer, o presidente interino, não passou incólume pela tormenta, mas foi quem mais escapou do ridículo. O auge de sua baixa performance, por enquanto, foi ter ido buscar o filho na escola. Francamente, para um garoto de 7 anos, recém-chegado a uma cidade estranha, numa escola bilíngue no meio do cerrado, no primeiro dia de aula, em onde não conhece ninguém e não tem um só amigo, o mínimo era ser buscado pelo pai e pela mãe. Sendo ele presidente interino, deputado distrital ou jovem professor de relações humanas.

Depois, a imprensa não foi convocada, ou obrigada a registrar a cena. Foi porque quis, os personagens não mandam na pauta da imprensa que os registras, é ela que escolhe reportar o que acha que é notícia.

Se Temer ficasse só nisso, então, viva!

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília.