domingo, 17 de abril de 2016

É a economia, querida, OESP


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Celso Ming
Apesar das pedaladas, das coisas mal explicadas que envolveram a compra da refinaria de Pasadena; dos supostos desvios de finalidade na nomeação de ministro e de tanta coisa mais, o processo de impeachment não prosperaria se a economia não fosse o desastre que se vê.
A fundamentação jurídica apresentada pela acusação é a denúncia por crime de responsabilidade, em consequência das chamadas pedaladas fiscais. No entanto, a verdadeira natureza do processo de impeachment é rigorosamente política.
Por trás de tudo está a jamais vista destruição de riqueza e de esperanças produzida pela política econômica experimentalista dos últimos 12 anos. É a maior recessão da história econômica do País. Deverá acumular um murchamento do PIB de quase 8% em dois anos. Nesse período, a renda per capita cairá pelo menos 10%. Como a renda do Zé Mané está menos protegida do que a do José Safra, a tal distribuição de renda que o governo proporcionou nos últimos 13 anos, tão alardeada pelo governo Dilma, está desmilinguindo. Junte a isso o desemprego, que caminha para 10% da força de trabalho, e a aflição diária do trabalhador ameaçado de ver, de um dia para outro, o salário derreter, e se verá que o estrago é bem maior.
Tudo começou em 2005, quando a futura presidente Dilma, na condição de ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, fez ostensiva oposição ao então ministro da Fazenda Antonio Palocci, que defendia uma política fiscal responsável como precondição de governança. Dilma declarou guerra aberta: “Esse plano de ajuste é rudimentar”, declarou.
Não foi um posicionamento eventual. Já era manifestação do que pensava e do que viria depois. 
Quando assumiu a Presidência, em 2011, Dilma rejeitou todas as propostas que colocariam em prática uma política orçamentária que fortalecesse os fundamentos da economia. Eram plataformas que ela considerava neoliberais e, por isso, inaceitáveis. Em seu lugar, adotou experimentos heterodoxos que se basearam em forte expansão das despesas públicas, derrubada dos juros no grito e maquiagem das contas públicas.
Em 2011 colocou em marcha a chamada Nova Matriz Macroeconômica baseada num keynesianismo tosco e em princípios capengas de política anticíclica. As tarifas públicas ficaram achatadas por anos e quase quebraram a Petrobrás e o sistema elétrico. O governo Dilma adotou políticas seletivas de desoneração tributária que sangraram o Tesouro em mais de R$ 100 bilhões por ano e instituiu medidas de redução e isenção tributária para a venda de veículos, aparelhos domésticos e materiais de construção. A política industrial caracterizou-se pela criação de reservas de mercado, especialmente para equipamentos de petróleo; distribuição de créditos subsidiados aos tais “futuros campeões nacionais”; ou, então, em isenções tributárias para os setores com mais influência em Brasília.


 
 
Esse conjunto de experimentos subentendia que os interessados em concessões de serviços públicos não devessem contar com uma remuneração adequada, porque já eram beneficiados por “um negócio destituído de riscos”, como alardeava o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin, o mesmo que criou e intensificou a prática de contabilidade criativa para esconder o rombo das contas públicas. 
Tudo isso e muito mais foi produzido por aqui. A enorme desarrumação da casa pouco ou nada tem a ver com a crise externa, como a presidente Dilma vinha dizendo. Nem tampouco foi inventada e exagerada pela Rede Globo e pelo resto da imprensa burguesa. É coisa nossa e das más escolhas de política econômica, que desembocaram no impeachment e no desastre político cujo desfecho está para acontecer.

Não é golpe. É a economia, querida.

Alegria no meio do caos, OESP


 - Atualizado: 17 Abril 2016 | 06h 47

Em tempos de crises política e econômica, é possível preservar a felicidade? Autores de um recém-lançado livro sobre o tema, Mario Sergio Cortella, Frei Betto e Leonardo Boff explicam que sim, pela escuta e conciliação – conceitos difíceis no Brasil de hoje, mas que apontam a única saída possível

Não anda fácil ser feliz no Brasil, e está assim não é de hoje. Há uma paralisia política que parece se arrastar desde as eleições, um Congresso retrógrado em que os parlamentares (60% deles investigados por crimes) se ouriçam pra próxima boquinha, o FMI citando um poeta pra anunciar que “ventos gelados” carregarão o desemprego no País às alturas, e que a economia acumulará rombos pelo menos até 2020. Pra onde correr?
Nem pro boteco adianta, porque lá também o assunto é crise – econômica, política, a angustiante sensação de que o País parou. Dá pra ser feliz no meio disso tudo? Que fazer com os inevitáveis convites a discussões, recolher-se ou confrontar? A satisfação de atacar quem pensa diferente (“fascista!”, “petralha!”, “coxinha!”) nos faz mais felizes? Quem responde são pensadores que conhecem o impacto de questões como essas no dia a dia dos brasileiros – material e espiritual. Um é ex-monge carmelita descalço, outro é frade dominicano, e o terceiro é teólogo. Mário Sérgio Cortella, Frei Betto e Leonardo Boff, três religiosos, três filósofos, todos autores de dezenas de livros, e que se uniram para escrever sobre um tema que – de Freud a São Tomás de Aquino, todos concordam – está na raiz das decisões humanas.
No mês passado, os três lançaram juntos o livro Felicidade, Foi-se Embora?(Vozes), que apresenta reflexões sobre ser feliz que ajudam a manter a sanidade no atual momento do País. Ex-secretário de Educação de São Paulo e discípulo de Paulo Freire, Cortella ressalta a importância de evitar a cegueira das convicções, quaisquer que sejam. Frei Betto, assessor durante 22 anos da Pastoral Operária do ABC e de outros inúmeros movimentos sociais, fala da inutilidade da alienação durante as crises. E Leonardo Boff, um dos mais destacados teólogos brasileiros, professor emérito de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, defende a importância da escuta, mesmo em meio à gritaria.
Em tempos de um Brasil dividido por muros reais e metafóricos que nos impedem de ouvir o lado de lá, os três religiosos oferecem, nesta entrevista ao Aliás, ideias que remetem à – para eles – única saída possível: a conciliação.
Como preservar a felicidade em dias de crise política e recessão econômica?
Mario Sergio Cortella: Sendo a felicidade uma ocorrência eventual, e não estado contínuo, os tempos atuais podem dificultar sua eclosão nos momentos favoráveis. Mas não é impeditivo que nos felicitemos quando a ocasião desponta.
Frei Betto: Em tempos de crise e de recessão muitos prazeres se tornam difíceis a muitas pessoas, como ir ao restaurante, comprar roupas, viajar. Porém, a felicidade não resulta da soma dos prazeres. É um estado de espírito que nos impregna de bem-estar interior, de plenitude de alma, e isso brota do sentido que imprimimos às nossas vidas. Portanto, em tempos de crise são felizes os militantes da utopia.
Leonardo Boff: Ser feliz num mundo infeliz exige arte e conhecimento da condição humana, que é sempre contraditória. Antes de mais nada cabe responder: a política está na minha vida ou minha vida está na política? Creio que devemos optar pela segunda resposta: a política está na minha vida com a consciência de que tudo é político, mas o político não é tudo. Há outras dimensões da vida, como o abraço da pessoa amada, o olhar encantado da paisagem à minha frente. Esses fatos me enchem de enternecimento e me fazem discretamente feliz, apesar da infelicidade da política.
Em dias de divisão no País, a satisfação que muitos sentem ao atacar quem pensa diferente os torna mais felizes?
MSC: Alegria e euforia esgotam a essência da felicidade. Afinal, até drogas podem induzir a um inintencional estado eufórico. Por isso, a satisfação pelo sofrimento alheio está mais no campo da distorção da integridade do que no virtuoso prazer advindo de vencer sem humilhar e de derrotar sem ofender.
FB: Quem ataca “o outro lado” com o fígado não é feliz. Quem ofende, ridiculariza, segrega, não é feliz, pois só é feliz quem se dispõe a fazer os outros felizes. Como escreveu Shakespeare, “o ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra”.
LB: O ser humano é uma equação nunca resolvida. Somos ao mesmo tempo dementes e sapientes, seres de amor e de ódio, de abraço e de rejeição. Devemos equilibrar a coexistência dos opostos, dar mais lugar ao amor que ao ódio, mais à dimensão de luz que à de sombras. Ser feliz depende da capacidade de realizar esse equilíbrio e não se deixar tomar pelos demônios que nos habitam. No ódio nunca há felicidade.
No seu livro, há a noção de felicidade como partilha. Nos distanciamos desse conceito?
MSC: Como lembra a canção, é impossível ser feliz sozinho, pois a felicidade é transbordamento vital que requer a partilha daquilo que vai além da borda para as pessoas que conosco convivem. Em última instância, a felicidade como partilha é o que impede que fraturemos a ideia de fraternidade.
FB: Felicidade é partilhar. Daí a etimologia do vocábulo companheiro – compartir o pão. O egoísta, o individualista são infelizes fechados em seu casulo, como lagartas condenadas a rastejar em sua mesquinhez. Aristóteles diz que para ser feliz é preciso ter amizades. E isso requer tolerância e respeito à diferença, sem fazer dela divergência.
LB: A partilha não é algo que podemos ter ou não ter. Ela é fundamental, somos todos interdependentes e parte de redes de conexões, um ajudando o outro e partilhando os meios de vida. Foi a partilha que nos permitiu dar o salto da animalidade à humanidade. Quando nossos ancestrais antropoides saíam em busca de alimento, o traziam para o grupo e o partilhavam, ao contrário do que faz a maioria dos animais. A sociedade humana está fundada na partilha de todos com todos, pelo bem comum. Porque isso não ocorre, especialmente nas sociedades capitalistas, nas quais cada um quer ser feliz individualmente, elas são sociedades rompidas, com inomináveis injustiças sociais, como vemos hoje. Não temos só fome de pão e de bens materiais, mas muito mais fome de beleza, de amar e de ser amados. Isso não se compra nem se vende no mercado, mas se constrói a partir do coração.
Há casos de familiares e amigos que brigaram, ou evitam falar de política. Se a discordância é grande, é melhor não discutir e proteger os vínculos? E como fazer quando decidir debater?
MSC: Se a discordância, saudável quando a intenção é crescer reciprocamente, se transforma em dilapidação da harmonia, o melhor é adiar até que haja condições mais favoráveis. Mas se a decisão for conversar, um final feliz só acontece quando, ao final de um debate, os envolvidos estão melhores nas argumentações e mais fundamentados nas convicções. Por isso, é preciso, antes de começar, verificar qual a intenção do debate e se quem nele se envolve está disposto a alterar pontos de vista. Do contrário, nem comece.
FB: Melhor evitar o tema do que cortar vínculos afetivos, especialmente quando os interlocutores não têm condições de debater em nível racional e resvalam para o emocional. Prefiro perder o tema a perder a amizade. Caso opte por debater, é preciso, como em jogo de cartas, definir antes as regras básicas – vamos conversar racionalmente. Um e outro expõem seus argumentos. Caso o racional seja inundado pelo emocional, poremos ponto final.
LB: A amizade é um valor maior do que qualquer ideologia. As pessoas têm de ser tolerantes ou não abordar temas que criem tensões. Mas se decidirem falar, primeiramente, devemos escutar o outro sem logo interrompê-lo. Em seguida usar mais a argumentação que a comoção. Mais do que querer convencer o outro, se esforce para tornar clara sua posição. E nunca esqueça de colocar uma pitada de humor, pois ele distende as exaltações.
Muitos falaram em “deixar o país”. É uma forma de preservar a felicidade?
MSC: Há uma sábia máxima: o melhor lugar é ser feliz. Por isso, a felicidade longe de casa é estranha à concepção de “casa”, isto é, o lugar onde vivo. Se for longe de casa, de nada adianta mudar de casa, pois vou junto.
FB: A felicidade ou está em nosso coração ou não está em lugar nenhum. Ninguém foge de si mesmo. “Deixar o país” é, a meu ver, ficar ainda mais infeliz, pois nós somos também a terra em que nascemos. E se afastar dela é sempre uma amputação da alma.
LB: A fuga é ilusória, pensando que circunstâncias exteriores definem o nível de nossa felicidade. Essa pessoa é alienada de si mesmo, não se conhece suficientemente. Se não nos guiarmos pela aceitação do outro, podem nos colocar no Jardim do Éden e ainda assim seremos infelizes.
Um trecho do livro diz que “para muitas pessoas o sentido da existência se dá no amargor”. Crises são propícias à multiplicação de pessoas assim?
MSC: Pessoas que elegem a amargura como seu estado usual de espírito encontram nesse consolo a possibilidade de justificarem a inação e a atitude inerte. É sempre mais fácil amaldiçoar a escuridão do que procurar acender velas.
FB: Quem faz da amargura o sentido da existência está condenado ao inferno sartriano. É um infeliz que faz infeliz quem o rodeia. E que deleita-se com o sofrimento alheio. Assim, é impossível ser feliz. Vive armado e não amado.
LB: As pessoas são amargas porque não aceitam coisas que vão contra seus desejos. Os psicólogos dizem que essas pessoas estão rejeitando dimensões de si mesmas que não acolhem com naturalidade.
Quando é saudável se isolar? Como saber se é o momento de se recolher?
MSC: Machado de Assis lembrava que “nem sempre recuar é fugir”. Em muitas situações os recuos ou o recolhimento é movimento estratégico para impedir ou reduzir perdas. O momento do recolhimento é aquele em que a convivência conflitiva transforma-se mais em um encargo do que em um patrimônio.
FB: Eu me recolho 120 dias por ano para orar, meditar e escrever. O isolamento faz bem à alma, pois favorece o encontro consigo mesmo e, no caso de quem tem fé, com Deus.
LB: Em política sempre é bom manter certa distância porque ela é o lugar natural do enfrentamento de opiniões. Se há pessoas fanatizadas demais por seu candidato é melhor ter compaixão e silenciar. O silêncio às vezes coloca o outro em constrangimento que o leva a mudar de assunto.
Hoje todos têm muitas certezas. Mas nem por isso parecem mais felizes. Em que medida convicções são importantes para a felicidade?
MSC: Um ser humano saudável é aquele que tem suas convicções como raízes e não como âncoras. A raiz alimenta, enquanto a âncora imobiliza. Por isso, quando me nutro em minhas convicções, em vez de nelas me prender, os momentos de felicidade são mais afloráveis.
FB: Cada um deve ter suas convicções e o direito de expressá-las. Mas isso em clima de tolerância, atitude de escuta, respeito à opinião diferente. Desconfio de quem demonstra “muitas certezas”. Em geral são pessoas inseguras e, como tais, agressivas. E de baixa autoestima.
LB: Creio que vale sempre ser verdadeiro e transparente, ouvir mais do que falar. E procurar tirar lições de nossos fracassos e das divergências, com humildade.
As muitas notícias negativas que aparecem em crises podem minar a felicidade? É preferível se alienar para se preservar?
MSC: Alienação não é trilha para a felicidade. A “santa ignorância” é expressão de robotização e inconsciência, o que pode gerar ilusão, muito diversa da felicidade como vibração intensa e concreta na vivência.
FB: Inútil bancar o avestruz e enfiar a cabeça na areia. O importante é saber lidar com as notícias e situações conflitivas sem perder a paz de espírito.
LB: O silêncio é sempre ouro. Ele permite escutar o próprio coração. O excesso de notícias geralmente embaralha a cabeça e não raro excita a curiosidade vã que não ajuda em nada. Bem dizem os homens do Tao oriental: quem sabe não fala, quem não sabe fala. É sempre útil o nobre silêncio.
Caso perdure o ambiente ruim, pode haver reflexo na saúde das pessoas?
MSC: Somos, cada uma e cada um, uma totalidade integrada. Tudo que afeta e perturba nossa harmonia, pode nos adoecer. A única forma de dificultar a somatização negativa é a consciência clara do que é que de fato nos atinge e procurar meios de driblar aquilo que, sendo difícil, não é por isso invencível.
FB: Quem se deixa impregnar de raiva corre o risco de somatizar tais energias negativas e adoecer. Para se equilibrar em qualquer situação de conflito sugiro o que me salvou nos quatro anos de prisão na ditadura militar: meditação. Ela, sim, nos torna mais felizes. E me faz feliz ter imprimido à minha vida um sentido altruísta, na busca de um Brasil e de um mundo melhores. Sei que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.
LB: A Terra como casa comum e nossa mãe, nas palavras sábias do papa Francisco, está doente porque nós estamos doentes. Mantemos com ela uma relação de exploração ilimitada e a maltratamos na água, ar e solo. Com o Brasil ocorre o mesmo: tornamo-nos uma sociedade doente. Mas, na medida em que tomamos consciência das relações sociais injustas, marcadas pela corrupção e por um Estado de negociatas, sentimos que devemos mudar. As manifestações desde 2013 nos passam esta mensagem: não queremos mais o Brasil que herdamos. Queremos outro Brasil, de sociedade participativa e menos desigual, que nos permita ser um pouco felizes nesta curta passagem pela vida.

Minúscula política, OESP


 - Atualizado: 16 Abril 2016 | 16h 00

Para sociólogo, o pensamento arcaico que marca, define e desestabiliza o processo político brasileiro contamina tudo: favorece partidos sem ideais, barra a alternância de poder e só estimula a troca de favores. No processo de impeachment da presidente Dilma assistimos ao grande momento dos insignificantes, que melhor fariam se não aparecessem. Já os grandes nomes, em outros tempos chamados ‘pais da pátria’, não são convocados a agir

O modo tumultuado e desencontrado como tem sido enfrentada a questão da proposta de impeachment da Presidente da República acaba revelando peculiaridades ocultas, mas decisivas, do nosso sistema político. Diferente do que ocorre em outros países, de sistemas íntegros e articulados, o nosso é mais uma aleatória combinação de concepções impolíticas. No próprio dia em que a comissão da Câmara aprovou a proposta de admissibilidade do impedimento, houve momentos em que não se sabia se se tratava de uma disputa de torcidas de futebol ou de uma disputa propriamente partidária. Aliás, o futebol é no Brasil o grande e impróprio parâmetro da política. O impeachment de Dilma Roussef está sendo votado na perspectiva da transitoriedade própria das Copas do Mundo. Depois que passar, passou.
Uma superposição de camadas de arcaísmos vários define as referências do processo político brasileiro. Os oradores dirigiam a palavra a suas províncias e povoados. Não se manifestavam como corpo político da nação. Alguns aludiram a suas religiões, ainda que indiretamente. O que também é estranho. O Estado brasileiro não é nem pode ser confessional. Religião é assunto privado. A religião do Estado é a cidadania. Falaram para o eleitor oculto, em vez de representá-lo.
Já tivemos um regime parlamentarista no Império e, na República, no curto período de redução dos poderes do presidente João Goulart, em 1961-1963. No entanto, de maneira quase imperceptível, um parlamentarismo tosco persiste entre nós. É o que se vê na invocação de suposta incompetência e mesmo de incapacidade para governar para remover a Presidente e transferir o poder ao seu sucessor legítimo e constitucional. Ao questionar essa legitimidade, ela própria e seu partido revelam a mesma mentalidade desse parlamentarismo arcaico e subsistente.
 
 
Foi o PT aliás, que difundiu entre seus militantes a ideia da possibilidade de depor o governante quando este se conduzisse em desacordo com o ideário das facções eleitoralmente majoritárias, mas socialmente minoritárias. Um frade petista, de grande destaque e de grande responsabilidade no apoio católico ao Partido dos Trabalhadores e à irresistível ascensão política de Lula, logo depois da posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência, assinava suas mensagens com um enfático “Fora FHC”. Uma concepção golpista e totalitária de que legítimo era o partido dele e não o dos outros, o partido do “Eles” dos discursos petistas, porque negação e recusa do princípio de que um regime democrático se baseia na possibilidade da rotação dos partidos no poder.
Há uma mentalidade ditatorial subjacente a palavras de ordem desse tipo. Não é estranho que o mesmo religioso lamentasse nos primeiros anos do governo Lula que o PT estava no governo, mas não estava no poder. Que poder é esse? O poder absoluto que criminaliza o ato legítimo de cidadãos que, como no caso atual, apoiados na Constituição da República, pedem que se apure atos de governo em desacordo com a lei e, em decorrência, julgue a Câmara a admissibilidade do impedimento da governante? Aparentemente, sabemos pouco o que é o impeachment. Vai bem que conste da Constituição e das leis, vai bem se aplicado aos outros, mas é golpe se aplicado a “nós”.
O elenco de rótulos para negar a legitimidade do impeachment, medida constitucional, é um desdobramento dessa mentalidade absolutista e arcaica. O dedo notório de “fábricas” de estereótipos negativos, de ambos os lados, mostra que o povo propriamente dito, nas concepções deste momento adverso, repete e grita palavras de ordem que mobilizam desfigurando o real, coisa de marqueteiros que manipulam a opinião pública com os mesmos critérios com que manipulam gostos e apetites dos que desfilam nos corredores do supermercado.
De certo modo, tudo isso nos mostra que o impeachment, mesmo que justificado e eventualmente necessário, no fundo, é irrelevante. Porque o País se governa por si mesmo. Lula esteve muito perto de ser impedido em 2005, quando do escândalo do mensalão. Quando se deu conta disso, tornou-se abúlico e indeciso, sem a segurança dos discursos firmes e enfáticos das portas de fábricas do ABC ou do aplauso das multidões proletárias congregadas no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. No entanto, nem por isso o país parou. Nos tumultuados anos entre a morte de Getúlio Vargas e a deposição de João Goulart, as evidências da crise econômica e da crise política eram muitas. Ainda assim, o País não parou. Só foi parar com a eleição de Jânio Quadros e sua sucessão pelo vice-presidente, quando o Brasil ficou sem um projeto político, coisa que voltou a ocorrer nos dois mandatos de Dilma Roussef, quando a política de coalizão a fez negociar o mandato e a governação com os escalões inferiores de partidos políticos irrelevantes porque frágeis. Os mesmos que, em boa parte, vão decidir o seu destino.
Ainda que as multidões sejam capazes de manifestações impressionantes como as da Avenida Paulista, neste 2016, em favor do impeachment ou contra ele, passado o momento da disputa, tudo voltará à rotina da indiferença. Multidão não é governo nem tem mandato. No outro extremo, longe das metrópoles, a multidão silenciosa dos que não se manifestam nas avenidas das capitais está por trás dos deputados indecisos, os que esperam um sinal que lhes venha dos ermos e lonjuras para votar de acordo com a peculiar concepção de mandato político que os leva ritualmente às urnas quando as eleições são convocadas. Essa gente silenciosa poderá decidir tanto o destino da Presidente quanto o destino das oposições, quanto o destino do Brasil. Os que ainda vivem no mundo da troca política de favores, do toma lá dá cá, das muitíssimas migalhas e farelos que caem da mesa do poder e dos poderosos, terão neste domingo sua vez e hora. Não será o vermelho nem o azul, nem o verde nem o amarelo, que decidirão nossos caminhos daqui para a frente. Será o cinzento da definição de última hora. O minúsculo e não o maiúsculo.
Em boa parte, porque não temos no Brasil, propriamente, um sistema partidário, que represente efetivamente a diversidade de correntes ideológicas. Nem mesmo temos o que, com segurança, poderíamos definir como ideologias ou correntes partidárias modernas e comparáveis, para que os eleitores possam fazer o que é propriamente uma escolha entre alternativas. As esquerdas, de verdade, estão fragmentadas e diluídas em extensa diversidade de querelas e não propriamente de orientações filosóficas. Já a unidade do partido majoritário, que é o PMDB, é tão somente a da convergência de interesses para assegurar o vínculo entre governos locais e o cofre do governo central. Se a dona do cofre perde a chave, saem atrás de quem a chave terá.
Por isso, há aqui dois grandes partidos, o partido do poder e o partido que está fora do poder. Já no Império era assim: Conservadores e Liberais, que se alternavam no poder sob a diáfana proteção do Poder Moderador de Dom Pedro II. Foi a única vez em que os partidos tiveram a certeza da alternância do poder, não sendo, portanto, necessário o golpe de Estado para promovê-la. A República Velha inaugurou o ciclo do partido único sob o disfarce do binarismo partidário. Os excluídos acabarão com esse sistema na Revolução de Outubro de 1930. O que nos levará à ditadura para impor o projeto político de nação que a República oligárquica inviabilizara, que terminará com a deposição de Vargas e, no retorno de 1950, seu suicídio em 1954. Um novo regime binário nascerá com o golpe de 1964, sob condição de que apenas um partido governaria.
A abertura política de 1985 supostamente se fez para assegurar a pluralidade dos partidos e a alternância do poder. A irresistível ascensão política do PT à Presidência trouxe no bojo, novamente, o bloqueio dessa alternância, através dos vários mecanismos de corrupção e de dominação, como o Bolsa Família, que sob disfarce eleitoral e democrático, fecharam as portas à troca cíclica de partidos no poder. Era inevitável que o movimento pendular da política brasileira, entre alternar o mando político e bloqueá-lo, levasse a uma solução drástica para remoção do partido da Presidência, nela mantido por meios que, do ponto de vista formal, parecem abusivos. Por acaso, o recurso encontrado foi o do impeachment. Independente das múltiplas motivações que movem a roda da História no sentido de excluir do poder o Partido dos Trabalhadores, o que explica as ocorrências de agora é a dinâmica política do retorno cíclico da possibilidade da renovação do poder, algo que está fora das cogitações explícitas dos que agitam bandeiras nas ruas e dos que agitam cartazes no Parlamento.
A alternância que se abre com a sucessão que decorrerá do impeachment, se aprovado, é alternância minada pelo fascínio do poder, o mesmo fascínio que capturou Lula, privando-o da lucidez que teve em diferentes momentos da história política brasileira: quando seus poderosos e ambiciosos coadjuvantes imaginavam que estavam indo, ele já estava voltando. Foi assim no caso do mensalão. Mas não está sendo assim no caso presente. Atraído pelo olhar fatal da serpente do poder, ele se equivoca fazendo campanha eleitoral para 2018, quando a prioridade histórica é agora completamente outra, a da salvação nacional.

Não erra sozinho. Os partidos não estão recorrendo aos notáveis da política brasileira, aqueles cujo carisma lhes permitiria a palavra de bom senso que era tão própria dos que, no período colonial, eram chamados de “pais da pátria”. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso, que tem tomado a palavra mesmo quando não lha dão, e de Marina Silva, da Rede, que tem falado mesmo quando não é convidada a fazê-lo, não se vê o protagonismo explícito e necessário de Olívio Dutra, do PT, de Cristovam Buarque, do PPS, de Pedro Simon e de Jarbas Vasconcelos, do PMDB e de tantos mais cujo magistério ajudaria o país a escapar da armadilha de achar que estamos apenas decidindo, antes do tempo, a eleição de 2018.