VITOR HUGO BRANDALISE - O ESTADO DE S.PAULO
17 Abril 2016 | 06h 00 - Atualizado: 17 Abril 2016 | 06h
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Em tempos de crises política e econômica, é
possível preservar a felicidade? Autores de um recém-lançado livro sobre o
tema, Mario Sergio Cortella, Frei Betto e Leonardo Boff explicam que sim, pela
escuta e conciliação – conceitos difíceis no Brasil de hoje, mas que apontam a
única saída possível
Não anda fácil ser feliz no Brasil, e está assim não é de hoje.
Há uma paralisia política que parece se arrastar desde as eleições, um
Congresso retrógrado em que os parlamentares (60% deles investigados por
crimes) se ouriçam pra próxima boquinha, o FMI citando um poeta pra anunciar
que “ventos gelados” carregarão o desemprego no País às alturas, e que a
economia acumulará rombos pelo menos até 2020. Pra onde correr?
Nem pro boteco adianta, porque lá também o assunto é crise –
econômica, política, a angustiante sensação de que o País parou. Dá pra ser
feliz no meio disso tudo? Que fazer com os inevitáveis convites a discussões,
recolher-se ou confrontar? A satisfação de atacar quem pensa diferente
(“fascista!”, “petralha!”, “coxinha!”) nos faz mais felizes? Quem responde são
pensadores que conhecem o impacto de questões como essas no dia a dia dos
brasileiros – material e espiritual. Um é ex-monge carmelita descalço, outro é
frade dominicano, e o terceiro é teólogo. Mário Sérgio Cortella, Frei Betto e
Leonardo Boff, três religiosos, três filósofos, todos autores de dezenas de
livros, e que se uniram para escrever sobre um tema que – de Freud a São Tomás
de Aquino, todos concordam – está na raiz das decisões humanas.
No mês passado, os três lançaram juntos o livro Felicidade, Foi-se Embora?(Vozes),
que apresenta reflexões sobre ser feliz que ajudam a manter a sanidade no atual
momento do País. Ex-secretário de Educação de São Paulo e discípulo de Paulo
Freire, Cortella ressalta a importância de evitar a cegueira das convicções,
quaisquer que sejam. Frei Betto, assessor durante 22 anos da Pastoral Operária
do ABC e de outros inúmeros movimentos sociais, fala da inutilidade da
alienação durante as crises. E Leonardo Boff, um dos mais destacados teólogos
brasileiros, professor emérito de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, defende a importância da escuta,
mesmo em meio à gritaria.
Em tempos de um Brasil dividido por muros reais e metafóricos
que nos impedem de ouvir o lado de lá, os três religiosos oferecem, nesta
entrevista ao Aliás, ideias que remetem à – para eles
– única saída possível: a conciliação.
Como
preservar a felicidade em dias de crise política e recessão econômica?
Mario
Sergio Cortella: Sendo a felicidade uma ocorrência eventual, e
não estado contínuo, os tempos atuais podem dificultar sua eclosão nos momentos
favoráveis. Mas não é impeditivo que nos felicitemos quando a ocasião desponta.
Frei Betto: Em tempos de crise e de recessão muitos
prazeres se tornam difíceis a muitas pessoas, como ir ao restaurante, comprar
roupas, viajar. Porém, a felicidade não resulta da soma dos prazeres. É um
estado de espírito que nos impregna de bem-estar interior, de plenitude de
alma, e isso brota do sentido que imprimimos às nossas vidas. Portanto, em
tempos de crise são felizes os militantes da utopia.
Leonardo
Boff: Ser feliz
num mundo infeliz exige arte e conhecimento da condição humana, que é sempre
contraditória. Antes de mais nada cabe responder: a política está na minha vida
ou minha vida está na política? Creio que devemos optar pela segunda resposta:
a política está na minha vida com a consciência de que tudo é político, mas o
político não é tudo. Há outras dimensões da vida, como o abraço da pessoa
amada, o olhar encantado da paisagem à minha frente. Esses fatos me enchem de
enternecimento e me fazem discretamente feliz, apesar da infelicidade da
política.
Em dias de
divisão no País, a satisfação que muitos sentem ao atacar quem pensa
diferente os torna mais felizes?
MSC: Alegria e euforia esgotam a essência da
felicidade. Afinal, até drogas podem induzir a um inintencional estado
eufórico. Por isso, a satisfação pelo sofrimento alheio está mais no campo da
distorção da integridade do que no virtuoso prazer advindo de vencer sem
humilhar e de derrotar sem ofender.
FB: Quem ataca “o outro lado” com o
fígado não é feliz. Quem ofende, ridiculariza, segrega, não é feliz, pois só é
feliz quem se dispõe a fazer os outros felizes. Como escreveu Shakespeare, “o
ódio é um veneno que se toma esperando que o outro morra”.
LB: O ser humano é uma equação nunca resolvida.
Somos ao mesmo tempo dementes e sapientes, seres de amor e de ódio, de abraço e
de rejeição. Devemos equilibrar a coexistência dos opostos, dar mais lugar ao
amor que ao ódio, mais à dimensão de luz que à de sombras. Ser feliz depende da
capacidade de realizar esse equilíbrio e não se deixar tomar pelos demônios que
nos habitam. No ódio nunca há felicidade.
No seu
livro, há a noção de felicidade como partilha. Nos distanciamos desse
conceito?
MSC: Como lembra a canção, é impossível ser feliz
sozinho, pois a felicidade é transbordamento vital que requer a partilha
daquilo que vai além da borda para as pessoas que conosco convivem. Em última
instância, a felicidade como partilha é o que impede que fraturemos a ideia de
fraternidade.
FB: Felicidade é partilhar. Daí a etimologia do
vocábulo companheiro – compartir o pão. O egoísta, o individualista são
infelizes fechados em seu casulo, como lagartas condenadas a rastejar em sua
mesquinhez. Aristóteles diz que para ser feliz é preciso ter amizades. E isso
requer tolerância e respeito à diferença, sem fazer dela divergência.
LB: A partilha não é algo que podemos ter ou não
ter. Ela é fundamental, somos todos interdependentes e parte de redes de
conexões, um ajudando o outro e partilhando os meios de vida. Foi a partilha
que nos permitiu dar o salto da animalidade à humanidade. Quando nossos
ancestrais antropoides saíam em busca de alimento, o traziam para o grupo e o
partilhavam, ao contrário do que faz a maioria dos animais. A sociedade humana
está fundada na partilha de todos com todos, pelo bem comum. Porque isso não
ocorre, especialmente nas sociedades capitalistas, nas quais cada um quer ser
feliz individualmente, elas são sociedades rompidas, com inomináveis injustiças
sociais, como vemos hoje. Não temos só fome de pão e de bens materiais, mas
muito mais fome de beleza, de amar e de ser amados. Isso não se compra nem se
vende no mercado, mas se constrói a partir do coração.
Há casos
de familiares e amigos que brigaram, ou evitam falar de política. Se a
discordância é grande, é melhor não discutir e proteger os vínculos?
E como fazer quando decidir debater?
MSC: Se a discordância, saudável quando a intenção
é crescer reciprocamente, se transforma em dilapidação da harmonia, o melhor é
adiar até que haja condições mais favoráveis. Mas se a decisão for conversar,
um final feliz só acontece quando, ao final de um debate, os envolvidos estão
melhores nas argumentações e mais fundamentados nas convicções. Por isso, é
preciso, antes de começar, verificar qual a intenção do debate e se quem nele
se envolve está disposto a alterar pontos de vista. Do contrário, nem comece.
FB: Melhor evitar o tema do que cortar vínculos
afetivos, especialmente quando os interlocutores não têm condições de debater
em nível racional e resvalam para o emocional. Prefiro perder o tema a perder a
amizade. Caso opte por debater, é preciso, como em jogo de cartas, definir
antes as regras básicas – vamos conversar racionalmente. Um e outro expõem seus
argumentos. Caso o racional seja inundado pelo emocional, poremos ponto final.
LB: A amizade é um valor maior do que qualquer
ideologia. As pessoas têm de ser tolerantes ou não abordar temas que criem
tensões. Mas se decidirem falar, primeiramente, devemos escutar o outro sem
logo interrompê-lo. Em seguida usar mais a argumentação que a comoção. Mais do
que querer convencer o outro, se esforce para tornar clara sua posição. E nunca
esqueça de colocar uma pitada de humor, pois ele distende as exaltações.
Muitos
falaram em “deixar o país”. É uma forma de preservar a felicidade?
MSC: Há uma sábia máxima: o melhor lugar é ser
feliz. Por isso, a felicidade longe de casa é estranha à concepção de “casa”,
isto é, o lugar onde vivo. Se for longe de casa, de nada adianta mudar de casa,
pois vou junto.
FB: A felicidade ou está em nosso coração ou não
está em lugar nenhum. Ninguém foge de si mesmo. “Deixar o país” é, a meu ver,
ficar ainda mais infeliz, pois nós somos também a terra em que nascemos. E se
afastar dela é sempre uma amputação da alma.
LB: A fuga é ilusória, pensando que circunstâncias
exteriores definem o nível de nossa felicidade. Essa pessoa é alienada de si
mesmo, não se conhece suficientemente. Se não nos guiarmos pela aceitação do
outro, podem nos colocar no Jardim do Éden e ainda assim seremos infelizes.
Um trecho
do livro diz que “para muitas pessoas o sentido da existência se dá no
amargor”. Crises são propícias à multiplicação de pessoas assim?
MSC: Pessoas que elegem a amargura como seu estado
usual de espírito encontram nesse consolo a possibilidade de justificarem a
inação e a atitude inerte. É sempre mais fácil amaldiçoar a escuridão do que procurar
acender velas.
FB: Quem faz da amargura o sentido da existência
está condenado ao inferno sartriano. É um infeliz que faz infeliz quem o
rodeia. E que deleita-se com o sofrimento alheio. Assim, é impossível ser
feliz. Vive armado e não amado.
LB: As pessoas são amargas porque não aceitam
coisas que vão contra seus desejos. Os psicólogos dizem que essas pessoas estão
rejeitando dimensões de si mesmas que não acolhem com naturalidade.
Quando é
saudável se isolar? Como saber se é o momento de se recolher?
MSC: Machado de Assis lembrava que “nem sempre
recuar é fugir”. Em muitas situações os recuos ou o recolhimento é movimento
estratégico para impedir ou reduzir perdas. O momento do recolhimento é aquele
em que a convivência conflitiva transforma-se mais em um encargo do que em um
patrimônio.
FB: Eu me recolho 120 dias por ano para orar,
meditar e escrever. O isolamento faz bem à alma, pois favorece o encontro
consigo mesmo e, no caso de quem tem fé, com Deus.
LB: Em política sempre é bom manter
certa distância porque ela é o lugar natural do enfrentamento de opiniões. Se
há pessoas fanatizadas demais por seu candidato é melhor ter compaixão e
silenciar. O silêncio às vezes coloca o outro em constrangimento que o leva a
mudar de assunto.
Hoje todos
têm muitas certezas. Mas nem por isso parecem mais felizes. Em que medida
convicções são importantes para a felicidade?
MSC: Um ser humano saudável é aquele que tem suas
convicções como raízes e não como âncoras. A raiz alimenta, enquanto a âncora
imobiliza. Por isso, quando me nutro em minhas convicções, em vez de nelas me
prender, os momentos de felicidade são mais afloráveis.
FB: Cada um deve ter suas convicções e
o direito de expressá-las. Mas isso em clima de tolerância, atitude de escuta,
respeito à opinião diferente. Desconfio de quem demonstra “muitas certezas”. Em
geral são pessoas inseguras e, como tais, agressivas. E de baixa autoestima.
LB: Creio que vale sempre ser
verdadeiro e transparente, ouvir mais do que falar. E procurar tirar lições de
nossos fracassos e das divergências, com humildade.
As muitas
notícias negativas que aparecem em crises podem minar a felicidade? É preferível se
alienar para se preservar?
MSC: Alienação não é trilha para a
felicidade. A “santa ignorância” é expressão de robotização e inconsciência, o
que pode gerar ilusão, muito diversa da felicidade como vibração intensa e
concreta na vivência.
FB: Inútil bancar o avestruz e enfiar
a cabeça na areia. O importante é saber lidar com as notícias e situações
conflitivas sem perder a paz de espírito.
LB: O silêncio é sempre ouro. Ele
permite escutar o próprio coração. O excesso de notícias geralmente embaralha a
cabeça e não raro excita a curiosidade vã que não ajuda em nada. Bem dizem os
homens do Tao oriental: quem sabe não fala, quem não sabe fala. É sempre útil o
nobre silêncio.
Caso
perdure o ambiente ruim, pode haver reflexo na saúde das pessoas?
MSC: Somos, cada uma e cada um, uma
totalidade integrada. Tudo que afeta e perturba nossa harmonia, pode nos
adoecer. A única forma de dificultar a somatização negativa é a consciência
clara do que é que de fato nos atinge e procurar meios de driblar aquilo que,
sendo difícil, não é por isso invencível.
FB: Quem se deixa impregnar de raiva
corre o risco de somatizar tais energias negativas e adoecer. Para se
equilibrar em qualquer situação de conflito sugiro o que me salvou nos quatro
anos de prisão na ditadura militar: meditação. Ela, sim, nos torna mais
felizes. E me faz feliz ter imprimido à minha vida um sentido altruísta, na
busca de um Brasil e de um mundo melhores. Sei que não participarei da
colheita, mas faço questão de morrer semente.
LB: A Terra como casa comum e nossa
mãe, nas palavras sábias do papa Francisco, está doente porque nós estamos
doentes. Mantemos com ela uma relação de exploração ilimitada e a maltratamos
na água, ar e solo. Com o Brasil ocorre o mesmo: tornamo-nos uma sociedade
doente. Mas, na medida em que tomamos consciência das relações sociais
injustas, marcadas pela corrupção e por um Estado de negociatas, sentimos que
devemos mudar. As manifestações desde 2013 nos passam esta mensagem: não
queremos mais o Brasil que herdamos. Queremos outro Brasil, de sociedade
participativa e menos desigual, que nos permita ser um pouco felizes nesta
curta passagem pela vida.