JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S.PAULO
16 Abril 2016 | 16h 00 - Atualizado: 16 Abril 2016 | 16h
00
Para sociólogo, o pensamento arcaico que
marca, define e desestabiliza o processo político brasileiro contamina tudo:
favorece partidos sem ideais, barra a alternância de poder e só estimula a
troca de favores. No processo de impeachment da presidente Dilma assistimos ao
grande momento dos insignificantes, que melhor fariam se não aparecessem. Já os
grandes nomes, em outros tempos chamados ‘pais da pátria’, não são convocados a
agir
O modo tumultuado e desencontrado como tem sido enfrentada a
questão da proposta de impeachment da Presidente da República acaba revelando
peculiaridades ocultas, mas decisivas, do nosso sistema político. Diferente do
que ocorre em outros países, de sistemas íntegros e articulados, o nosso é mais
uma aleatória combinação de concepções impolíticas. No próprio dia em que a
comissão da Câmara aprovou a proposta de admissibilidade do impedimento, houve
momentos em que não se sabia se se tratava de uma disputa de torcidas de
futebol ou de uma disputa propriamente partidária. Aliás, o futebol é no Brasil
o grande e impróprio parâmetro da política. O impeachment de Dilma Roussef está
sendo votado na perspectiva da transitoriedade própria das Copas do Mundo.
Depois que passar, passou.
Uma superposição de camadas de arcaísmos vários define as
referências do processo político brasileiro. Os oradores dirigiam a palavra a
suas províncias e povoados. Não se manifestavam como corpo político da nação.
Alguns aludiram a suas religiões, ainda que indiretamente. O que também é
estranho. O Estado brasileiro não é nem pode ser confessional. Religião é
assunto privado. A religião do Estado é a cidadania. Falaram para o eleitor
oculto, em vez de representá-lo.
Já tivemos um regime parlamentarista no Império e, na República,
no curto período de redução dos poderes do presidente João Goulart, em
1961-1963. No entanto, de maneira quase imperceptível, um parlamentarismo tosco
persiste entre nós. É o que se vê na invocação de suposta incompetência e mesmo
de incapacidade para governar para remover a Presidente e transferir o poder ao
seu sucessor legítimo e constitucional. Ao questionar essa legitimidade, ela
própria e seu partido revelam a mesma mentalidade desse parlamentarismo arcaico
e subsistente.
Foi o PT aliás, que difundiu entre seus militantes a ideia da
possibilidade de depor o governante quando este se conduzisse em desacordo com
o ideário das facções eleitoralmente majoritárias, mas socialmente
minoritárias. Um frade petista, de grande destaque e de grande responsabilidade
no apoio católico ao Partido dos Trabalhadores e à irresistível ascensão
política de Lula, logo depois da posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência,
assinava suas mensagens com um enfático “Fora FHC”. Uma concepção golpista e
totalitária de que legítimo era o partido dele e não o dos outros, o partido do
“Eles” dos discursos petistas, porque negação e recusa do princípio de que um
regime democrático se baseia na possibilidade da rotação dos partidos no poder.
Há uma mentalidade ditatorial subjacente a palavras de ordem
desse tipo. Não é estranho que o mesmo religioso lamentasse nos primeiros anos
do governo Lula que o PT estava no governo, mas não estava no poder. Que poder
é esse? O poder absoluto que criminaliza o ato legítimo de cidadãos que, como
no caso atual, apoiados na Constituição da República, pedem que se apure atos
de governo em desacordo com a lei e, em decorrência, julgue a Câmara a admissibilidade
do impedimento da governante? Aparentemente, sabemos pouco o que é o
impeachment. Vai bem que conste da Constituição e das leis, vai bem se aplicado
aos outros, mas é golpe se aplicado a “nós”.
O elenco de rótulos para negar a legitimidade do impeachment,
medida constitucional, é um desdobramento dessa mentalidade absolutista e
arcaica. O dedo notório de “fábricas” de estereótipos negativos, de ambos os
lados, mostra que o povo propriamente dito, nas concepções deste momento
adverso, repete e grita palavras de ordem que mobilizam desfigurando o real,
coisa de marqueteiros que manipulam a opinião pública com os mesmos critérios
com que manipulam gostos e apetites dos que desfilam nos corredores do
supermercado.
De certo modo, tudo isso nos mostra que o impeachment, mesmo que
justificado e eventualmente necessário, no fundo, é irrelevante. Porque o País
se governa por si mesmo. Lula esteve muito perto de ser impedido em 2005,
quando do escândalo do mensalão. Quando se deu conta disso, tornou-se abúlico e
indeciso, sem a segurança dos discursos firmes e enfáticos das portas de
fábricas do ABC ou do aplauso das multidões proletárias congregadas no Estádio
de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. No entanto, nem por isso o país
parou. Nos tumultuados anos entre a morte de Getúlio Vargas e a deposição de
João Goulart, as evidências da crise econômica e da crise política eram muitas.
Ainda assim, o País não parou. Só foi parar com a eleição de Jânio Quadros e
sua sucessão pelo vice-presidente, quando o Brasil ficou sem um projeto
político, coisa que voltou a ocorrer nos dois mandatos de Dilma Roussef, quando
a política de coalizão a fez negociar o mandato e a governação com os escalões
inferiores de partidos políticos irrelevantes porque frágeis. Os mesmos que, em
boa parte, vão decidir o seu destino.
Ainda que as multidões sejam capazes de manifestações
impressionantes como as da Avenida Paulista, neste 2016, em favor do
impeachment ou contra ele, passado o momento da disputa, tudo voltará à rotina
da indiferença. Multidão não é governo nem tem mandato. No outro extremo, longe
das metrópoles, a multidão silenciosa dos que não se manifestam nas avenidas
das capitais está por trás dos deputados indecisos, os que esperam um sinal que
lhes venha dos ermos e lonjuras para votar de acordo com a peculiar concepção
de mandato político que os leva ritualmente às urnas quando as eleições são
convocadas. Essa gente silenciosa poderá decidir tanto o destino da Presidente
quanto o destino das oposições, quanto o destino do Brasil. Os que ainda vivem
no mundo da troca política de favores, do toma lá dá cá, das muitíssimas
migalhas e farelos que caem da mesa do poder e dos poderosos, terão neste
domingo sua vez e hora. Não será o vermelho nem o azul, nem o verde nem o amarelo,
que decidirão nossos caminhos daqui para a frente. Será o cinzento da definição
de última hora. O minúsculo e não o maiúsculo.
Em boa parte, porque não temos no Brasil, propriamente, um
sistema partidário, que represente efetivamente a diversidade de correntes
ideológicas. Nem mesmo temos o que, com segurança, poderíamos definir como
ideologias ou correntes partidárias modernas e comparáveis, para que os
eleitores possam fazer o que é propriamente uma escolha entre alternativas. As
esquerdas, de verdade, estão fragmentadas e diluídas em extensa diversidade de
querelas e não propriamente de orientações filosóficas. Já a unidade do partido
majoritário, que é o PMDB, é tão somente a da convergência de interesses para
assegurar o vínculo entre governos locais e o cofre do governo central. Se a
dona do cofre perde a chave, saem atrás de quem a chave terá.
Por isso, há aqui dois grandes partidos, o partido do poder e o
partido que está fora do poder. Já no Império era assim: Conservadores e
Liberais, que se alternavam no poder sob a diáfana proteção do Poder Moderador
de Dom Pedro II. Foi a única vez em que os partidos tiveram a certeza da
alternância do poder, não sendo, portanto, necessário o golpe de Estado para
promovê-la. A República Velha inaugurou o ciclo do partido único sob o disfarce
do binarismo partidário. Os excluídos acabarão com esse sistema na Revolução de
Outubro de 1930. O que nos levará à ditadura para impor o projeto político de
nação que a República oligárquica inviabilizara, que terminará com a deposição
de Vargas e, no retorno de 1950, seu suicídio em 1954. Um novo regime binário
nascerá com o golpe de 1964, sob condição de que apenas um partido governaria.
A abertura política de 1985 supostamente se fez para assegurar a
pluralidade dos partidos e a alternância do poder. A irresistível ascensão
política do PT à Presidência trouxe no bojo, novamente, o bloqueio dessa
alternância, através dos vários mecanismos de corrupção e de dominação, como o
Bolsa Família, que sob disfarce eleitoral e democrático, fecharam as portas à
troca cíclica de partidos no poder. Era inevitável que o movimento pendular da
política brasileira, entre alternar o mando político e bloqueá-lo, levasse a
uma solução drástica para remoção do partido da Presidência, nela mantido por
meios que, do ponto de vista formal, parecem abusivos. Por acaso, o recurso
encontrado foi o do impeachment. Independente das múltiplas motivações que
movem a roda da História no sentido de excluir do poder o Partido dos
Trabalhadores, o que explica as ocorrências de agora é a dinâmica política do
retorno cíclico da possibilidade da renovação do poder, algo que está fora das
cogitações explícitas dos que agitam bandeiras nas ruas e dos que agitam
cartazes no Parlamento.
A alternância que se abre com a sucessão que decorrerá do
impeachment, se aprovado, é alternância minada pelo fascínio do poder, o mesmo
fascínio que capturou Lula, privando-o da lucidez que teve em diferentes
momentos da história política brasileira: quando seus poderosos e ambiciosos
coadjuvantes imaginavam que estavam indo, ele já estava voltando. Foi assim no
caso do mensalão. Mas não está sendo assim no caso presente. Atraído pelo olhar
fatal da serpente do poder, ele se equivoca fazendo campanha eleitoral para
2018, quando a prioridade histórica é agora completamente outra, a da salvação
nacional.
Não erra sozinho. Os partidos não estão recorrendo aos notáveis
da política brasileira, aqueles cujo carisma lhes permitiria a palavra de bom
senso que era tão própria dos que, no período colonial, eram chamados de “pais
da pátria”. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso, que tem tomado a palavra
mesmo quando não lha dão, e de Marina Silva, da Rede, que tem falado mesmo
quando não é convidada a fazê-lo, não se vê o protagonismo explícito e
necessário de Olívio Dutra, do PT, de Cristovam Buarque, do PPS, de Pedro Simon
e de Jarbas Vasconcelos, do PMDB e de tantos mais cujo magistério ajudaria o
país a escapar da armadilha de achar que estamos apenas decidindo, antes do
tempo, a eleição de 2018.