quarta-feira, 10 de junho de 2015

Um país chamado favela: resgatando a senzala


Renato Meirelles e Celso Athayde escreveram um livro pequeno, bonito, que tem precisamente este efeito: Um país chamado favela. “Antes de tudo, temos a impressão de que a favela, mais do que outros núcleos de moradia, é um lugar vivo, orgânico, que tem coração, que respira, composto pela síntese de suas gentes, suas histórias e suas culturas. A comunidade é esse lugar pensante que ocupa determinado território.” (152) Como é realmente a vida na favela? Para já, os residentes hoje preferem falar em comunidade, o que permite compreender justamente esta organicidade. Mas como a imagem que se divulga é a da grande mídia, cola a etiqueta geral de “tráfico, polícia, milícia.” (12)
Já era mais do que tempo de termos uma análise sistemática, econômica, social, cultural, de dentro da própria favela, sem a simplicidade do pesquisador de prancheta. Os autores apresentam de forma aberta no datafavela.com.br uma a visão integral, facilitando inclusive a apropriação do conhecimento pelas próprias comunidades, como um espelho para elas. Descobrimos que no fim de 2013 50% dos domicílios de favelas contavam com conexão à internet, e que 85% dos internautas das favelas já tinham conta no Facebook. “Consultados, os jovens foram claros em suas respostas . A internet é fundamental para quem pretende estudar, para quem quer se divertir, e também para aqueles que buscam uma vaga de emprego.”(94)
O aumento de renda é fundamental: “Se há um fator que define essas famílias é o ingresso relativamente recente no mercado de consumo. Nos últimos dez anos, muitas delas adquiriram o primeiro computador, o primeiro automóvel e o primeiro freezer. Não raro, pela primeira vez, conseguiram matricular um filho em curso universitário.” (87) Os bancos estão prestando atenção: “O cidadão do moro é considerado pelos bancos um bom pagador.”(75) Aliás, com os juros extorsivos dos crediários, “a favela, cada mais consciente, percebe que parte de seus recurso é drenada para círculos do grande capital”, e expande as empresas internas na própria favela: a Rocinha já tinha 6 mil empreendimentos em 2010, inclusive com inovações como o “empreendedorismo comunitário”. Segundo o Data Favela, 49% dos que trabalhadores têm carteira assinada.
O livro analisa em particular a “reprodução obsessiva desse estereótipo [de bandidos profissionais] que se deve, sobretudo, ao roteiro do noticiário policial espetacularizado. Na falta de conhecimento profundo sobre o assunto, apela-se ao modelo raso de representação, já impresso na memória coletiva.”(135). Reencontrar a vida do cotidiano da favela, descrita nas suas várias dimensões, humaniza a visão. Com os avanços nos diversos campos, já não reduz às soluções ao “remocionismo” que já esteve tão na moda. A periferia está fortalecendo a sua inserção na cidade. “No caso de parte da elite, a mentalidade vigente não aceita que a senzala vá para dentro da casa-grande.”(132) Uma bela leitura, inteligente, que nos leva bem além das simplificações.
RenatoMeirelles e Celso Athayde, Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira – Editora Gente, São Paulo 2014


domingo, 7 de junho de 2015

Dilma precisa voltar a comandar a agenda do país, na FSP


212380
Ouvir o texto
PUBLICIDADE
Comandante da economia no período militar e conselheiro informal de vários presidentes, o economista Antonio Delfim Netto, 87, diz que o governo Dilma se "escondeu" e precisa voltar a "comandar a agenda do país".
Ele acredita que o ajuste fiscal promovido pelo ministro Joaquim Levy é apenas uma "ponte" para a retomada do crescimento e que o governo precisa atacar diversas frentes, como a flexibilização do mercado de trabalho, a reforma do ICMS e o programa de concessões. Leia a seguir trechos da entrevista.
Eduardo Knapp/Folhapress
O ex-ministro Delfim Netto em seu escritório, em São Paulo
O ex-ministro Delfim Netto em seu escritório, em São Paulo
*
Folha - Qual é a sua avaliação sobre o ajuste fiscal?
Antonio Delfim Netto - O ajuste fiscal é necessário. No ano passado, ocorreu uma deterioração fiscal muito profunda. Até dezembro de 2013, a situação era desagradável, mas não tinha gravidade. O desequilíbrio de 2014 foi deliberadamente produzido para a reeleição e atingiu seu objetivo. O PT tirou muito proveito disso, porque continuou com a maior bancada na Câmara. Era visível que precisava fazer um ajuste em 2015.
Houve estelionato eleitoral?
Não tenho dúvida, é um absurdo tentar negar. Dilma fez uma mudança na política econômica equivalente à de são Paulo na estrada de Damasco [Paulo se converteu ao cristianismo em viagem de Jerusalém a Damasco e se tornou apóstolo]. Essa é uma questão moral que abalou a credibilidade do governo, mas o importante é o conserto.
E esse conserto da economia vai no rumo certo?
O ajuste do Levy é bastante razoável. Na parte trabalhista, as reformas foram importantes e corrigiram distorções horrorosas [na concessão de pensão por morte e seguro-desemprego].
Aqui precisamos fazer um pouco de justiça ao Guido [Mantega, ex-ministro da Fazenda]. Ele fez essas medidas e queria que tivessem sido propostas em 2014. Quem não colocou em prática foi a presidente, porque o estrago eleitoral teria sido enorme.
Mas é claro que houve um equívoco na concessão de desconto na Previdência em 56 setores. A desoneração da folha de pagamento tinha lógica para o setor exportador. Agora será difícil voltar atrás.
Qual é o maior defeito do ajuste fiscal?
A rigor, o ajuste é mais eficiente quanto menos aumenta os impostos. Por maior que seja o viés ideológico, ninguém é capaz de dizer que o Estado é mais eficiente que o setor privado. Quando os impostos sobem, transferimos renda do setor privado para o governo. Ou seja, eleva a ineficiência e reduz o crescimento.
As medidas serão suficientes para o Brasil voltar a crescer?
O ajuste fiscal é apenas uma ponte para a retomada do crescimento. Com o protagonismo do Levy, o governo se afastou. No Ministério do Planejamento, estavam sendo avaliadas medidas concretas que não foram anunciadas. Só agora, em junho, que saiu a primeira medida que é o Plano Safra.
Mas o que governo pode fazer sem espaço para desonerações ou queda de juros?
Apresentar os projetos de concessões, o que só está previsto para esta semana. Flexibilizar o mercado de trabalho e se antecipar ao desemprego que está por vir, encontrando mecanismos para minimizar o custo social. Avançar na reforma do ICMS, que falta pouco para ser fechada.
O governo precisa dizer: eu existo. Propor programas factíveis que devolvam confiança a sociedade. Economia é só expectativa. Desenvolvimento é um estado de espírito. Nós vamos voltar a crescer. É preciso dar à sociedade um pouco mais de tranquilidade. Essa era a vantagem do Lula. O Lula é um promoter.
Por que o senhor acha que o governo se escondeu?
O início foi complicado, porque ficou muito visível a mudança da política econômica. Foi tão brutal que houve uma desintegração. Esse problema não é apenas econômico, mas também político. A correção de rumo não foi acompanhada pelo PT.
Sabe o que dizia Tancredo Neves? Quando a esperteza é muita, costuma comer o dono. O PT foi tão esperto que está sendo comido por sua esperteza. Vejo muita crítica ao PSDB, partido pelo qual não nutro a menor simpatia. Mas não dá para imaginar que o PT ia fazer um estrago danado e se beneficiar dele aumentando sua bancada, e depois o PSDB ia ser suficientemente idiota para aprovar as medidas.
Quanto tempo o senhor acha que a economia vai demorar para sair da recessão?
Essa recessão vai durar o quanto for necessário para recuperar a indústria. A indústria sofreu o efeito dramático da política cambial. Todos os estímulos foram incapazes de compensar o prejuízo de valorizar o câmbio para controlar a inflação. Nunca faltou demanda para produtos industriais. O que faltou foi demanda para produtos industriais feitos no Brasil.
As importações aumentaram, substituindo produtos brasileiros, e as exportações caíram. Agora isso começa a ser revertido com o novo patamar do câmbio. Sem resolver o problema da indústria, não vamos voltar a crescer. 

Pobre educação pobre


JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
06 Junho 2015 | 16h 00

Desvalorização da docência e burocratização da escola comprometem o que devia ser o eixo da sociedade moderna

Não é um triunfo da escola pública nem da luta por educação pública, laica e gratuita, objetiva e neutra, democraticamente acessível a todos, que o movimento paredista dos professores de São Paulo tenha superado a marca de mais de 82 dias de paralisação, a mais longa greve da entidade que os congrega desde 1945. A reivindicação de salários corretos pelos educadores de São Paulo, e de outros Estados em que a paralisação ocorre, é justíssima, ao menos onde o correto está proposto. Não tenho certeza, porém, de que sejam justíssimos a forma e o modo como a reivindicação é apresentada aos governantes, ao público e, sobretudo, aos alunos e suas famílias. No limite, a greve transforma o aluno de sujeito em ser adjetivo da educação. É uma das contradições desta sociedade. As contradições existem como desafios para a superação dos conflitos, e não para a sua institucionalização. Existem para quem reivindica e também para aquele a quem a reivindicação é dirigida. O gás de pimenta, como tem acontecido em vários Estados, não condimenta a paz social nem aplaina o caminho para a mesa de negociação. Do mesmo modo, emparedar os governantes com reivindicações inegociáveis não sugere a intenção de superar o conflito. Falta política na política, de ambos os lados.
Atrito: seguranças do sindicato entraram em confronto com os professores durante assembleia
Atrito: seguranças do sindicato entraram em confronto com os professores durante assembleia
A transformação do professor em caixeiro viajante do ensino para o ganho do que carece para viver como professor, e não ser reduzido a proletário da educação, nega aí o essencial do magistério. A missão civilizadora da educação só é possível na concepção da escola como comunidade de ensino e aprendizado que une em torno da causa comum professores, alunos, pais de alunos e a própria sociedade abrangente. A escola do docente enraizado, e não a do docente itinerante. Além do que não é o sindicato que deve dizer e definir o que a educação deve ser. Há aí o risco de deslocar a missão da escola para os valores do confronto empregatício e para o materialismo das disputas meramente econômicas. 
Não há edificação do espírito se o que um professor ganha é insuficiente para o que o decoro recomenda como indispensável à sua apresentação pessoal e profissional, não só a casa, a mesa e o traje, mas também o tempo livre para a poesia e a arte, o tempo para ouvir e aprender. Senão, quem educará o educador? Um professor pobre não é mais do que um pobre professor. Do mesmo modo que um aluno carente da continuidade e persistência do ensino apenas aumenta o elenco dos pobres de espírito, mesmo que a quantofrenia pedagógica neoliberal dos que tudo justificam pelas quantidades diga que haverá reposição de aulas. A greve é também neoliberal quando vai por aí. O da greve é um tempo a menos, um abatimento na biografia dos que são privados do ensino a que têm direito na hora devida. 
A adoção do modelo da greve operária nas lutas sociais, em setores que estão fora do sistema produtivo e da luta de classes, transplanta uma forma de luta por reivindicações, mesmo justas, que ficam comprometidas desde o início do movimento porque não incidem diretamente sobre a reprodução do capital. Tornam-se inócuas, como se vê nas greves descabidamente demoradas em setores como o da educação pública. A demora é indício da impropriedade. Na fábrica, a greve dá concretos prejuízos à empresa desde o primeiro minuto, o que força a outra parte a negociar ou, até, a antecipar a negociação, como tem sido frequente. O patrão do setor produtivo sabe quanto está perdendo a cada minuto. Seu capital fica paralisado. Perde porque deixa de ganhar. 
Fora do sistema produtivo, é o oposto, a greve não prejudica o “patrão”. A reprodução da ordem burocrática não é comprometida. A escola não é uma fábrica. O prejuízo recai sobre a massa dos dependentes daquele serviço, os não chamados a ter presença no litígio. Prejudica a sociedade, que não tem motivos para se mover em favor dos grevistas, como nos mostram as cartas aos jornais e as mensagens da internet. A agonia das greves de professores até hoje não lhes ensinou que deveriam estar em busca de outra forma, mais eficaz, de reivindicação, no marco da civilização, e não no marco da produção. Ao mesmo tempo, os governos têm tratado os professores do ensino público com um desdém que compromete a educação e que evidencia o quanto ela deixou de ser considerada um fator positivo de desenvolvimento social. A desvalorização da docência e a minimização da escola, hoje transformada em abrigo da mentalidade e do comportamento burocráticos inócuos, compromete o presente e o futuro da sociedade em todos os sentidos. Nessa decadência, crianças e jovens não são convidados a participar de um projeto de nação, privados da alegria de aprender para viver e viver para o outro, a alteridade faltante na greve. A greve anômica, no fim das contas, apenas acelera os danos sociais de uma omissão comprometedora de todos com aquilo que na sociedade moderna deveria ser o eixo e o instrumento, o abrigo, o lugar do sonho, do que justifica nela viver para dela ser. 
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)