País foi um dos que obteve maior progresso no combate à fome; porém, 16 milhões ainda vivem com menos de US$ 2 por dia
BRASÍLIA - O Mapa da Fome 2013, apresentado nesta manhã em Roma pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), mostra que o Brasil conseguiu reduzir a pobreza extrema - classificada com o número de pessoas que vivem com menos de US$ 1 ao dia - em 75% entre 2001 e 2012. No mesmo período, a pobreza foi reduzida em 65%. Apresentado como um dos casos mundiais de sucesso na redução da fome, o Brasil, no entanto, ainda tem mais de 16 milhões vivendo na pobreza: 8,4% da população brasileira vive com menos de US$ 2 por dia.
O relatório da FAO mostra que o Brasil segue sendo um dos países com maior progresso no combate à fome e cita a criação do programa Fome Zero, em 2003, como uma das razões para o progresso do País nessa área. Não por acaso, criado pelo então ministro do governo Lula, José Graziano, hoje diretor-geral da FAO.
De acordo com o documento, a prioridade dada pelo governo Lula ao combate à fome - citando a fala do ex-presidente de que esperava fazer com que todos os brasileiros fizessem três refeições por dia - no Fome Zero é a responsável pelos avanços.
Inicialmente concebido dentro do Ministério de Segurança Alimentar, o programa era um conjunto de ações nessa área que tinha como estrela um cartão alimentação, que permitia aos usuários apenas a compra de comida. Logo substituído pelo Bolsa Família, o Fome Zero foi transformado em um slogan de marketing englobando todas as ações do governo nessa área.
"O resultado desses esforços são demonstrados pelo sucesso do Brasil em alcançar as metas estabelecidas internacionalmente", diz o relatório, ressaltando que o Brasil investiu aproximadamente US$ 35 bilhões em ações de redução da pobreza em 2013.
A América Latina é a região onde houve maior avanço na redução da pobreza e da fome entre 1990 e 1992, especialmente na América do Sul, com os países do Caribe ainda um pouco mais lentos. O relatório mostra que o número de pessoas subnutridas na região passou de 14,4% da população para cerca de 5%. Além do Brasil, a Bolívia é citada como exemplo. Apesar de ainda ter quase 20% da população abaixo da linha da pobreza, saiu de um porcentual próximo a 40%.
No mundo todo, 805 milhões de pessoas ainda passam fome. São 100 milhões a menos do que há uma década, e 200 milhões a menos do que há 20 anos, mas ainda muito abaixo da velocidade que permitiria ao mundo cumprir a primeira meta dos objetivos do milênio, de reduzir a pobreza extrema à metade até 2015. Atualmente, apenas 63 países cumpriram a meta. Outros 15 estão no caminho e devem alcançá-la.
O relatório completo está disponível no site da FAO.
Seis repórteres da Folha mergulham fundo em três situações-limite –secas em São Paulo e no semiárido nordestino e inundações no rio Madeira– e voltam à tona com relatos preocupantes sobre o despreparo do país para enfrentar as emergências que virão
MARCELO LEITE LALO DE ALMEIDA EDUARDO GERAQUE FERNANDO CANZIAN RAFAEL GARCIA DIMMI AMORA
Com 12% a 16% da água doce disponível na Terra, o Brasil é um país rico nesse insumo que a natureza provê de graça à população e à economia. Cada habitante pode contar com mais de 43 mil m³ por ano dos mananciais, mas apenas 0,7% disso termina utilizado.
Nações como a Argélia e regiões como a Palestina, em contraste, usam quase a metade dos recursos hídricos disponíveis, e outras ainda, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, precisam obtê-los por dessalinização de água do mar.
Só em aparência, contudo, é confortável a situação brasileira. Em primeiro lugar, há o problema da distribuição: o líquido é tanto mais abundante onde menor é a população e mais preservadas são as florestas, como na Amazônia. No litoral do país, assim como nas regiões Sudeste e Nordeste (onde se concentram 70% da população), muitos centros urbanos já enfrentam dificuldades de abastecimento –agravados por secas como as que se abateram sobre São Paulo, neste ano, e sobre o semiárido nordestino em 2012/13.
Para anuviar o horizonte, sobrevêm os riscos de piora com o aquecimento global. Com as crescentes emissões de dióxido de carbono (CO₂) e de outros gases do efeito estufa decorrentes da queima de combustíveis ou por outras atividades humanas, a atmosfera terrestre retém mais calor do Sol perto da superfície. Aumenta, assim, a temperatura das massas de ar, energia que alimenta os ventos e tempestades.
Os padrões de circulação atmosférica se alteram. Algumas regiões poderão sofrer estiagens mais frequentes e graves, enquanto outras ficarão mais sujeitas a inundações. Isso, é claro, se os resultados das simulações do clima futuro feitas por modelos de computador estiverem corretas.
MAIS CALOR, MENOS CHUVA
O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), um comitê com alguns dos maiores especialistas do país em climatologia, fez projeções sobre as alterações prováveis nas várias regiões, mas com diferentes graus de confiabilidade. As mais confiáveis valem para a Amazônia (aumento de temperatura de 5°C a 6°C e queda de 40% a 45% na precipitação até o final do século, com 10% de redução nas chuvas já nos próximos cinco anos), para o semiárido, no Nordeste (respectivamente 3,5°C a 4,5°C e -40% a -50%), e para os pampas, no Sul (2,5°C a 3°C de aquecimento e 35% a 40% de aumento de chuvas).
Para as outras regiões a confiabilidade das previsões de computador foi considerada baixa. Para a mata atlântica do Sudeste, de todo modo, a previsão do PBMC é de aumento de 25% a 30% na pluviosidade e de 2,5°C a 3°C na temperatura.
Não é possível afirmar com certeza que as recentes secas no Sudeste e no Nordeste –ou as terríveis inundações de 2014 em Rondônia– tenham relação direta com a mudança global ou regional do clima. Tampouco se pode excluir que tenham. Por outro lado, é certo que esses flagelos, assim como o custo bilionário que acarretam para a sociedade e a economia, constituem uma boa amostra do que se deve esperar nas próximas décadas para o caso de o aquecimento global se agravar.
ÁGUA NO BRASIL
Durante quatro meses, uma equipe de seis repórteres, quatro artistas gráficos e dois profissionais de vídeo se debruçou sobre esses desastres naturais para tentar esmiuçá-los e traduzir sua complexidade nesta abrangente reportagem multimídia, coordenada por Marcelo Leite.
Eduardo Geraque e Fernando Canzian traçaram uma radiografia de corpo inteiro da estiagem na Região Metropolitana de São Paulo, na tentativa de entender uma doença que começou muito antes da queda nos níveis das represas do sistema Cantareira. Rafael Garcia foi enviado a Rondônia com a missão de investigar as relações, se é que existem, da devastadora enchente deste ano com as duas usinas hidrelétricas que começaram a funcionar no rio Madeira, Santo Antônio e Jirau.
Dimmi Amora visitou vários trechos da obra de transposição do rio São Francisco para verificar se o semiárido nordestino está mais perto de ver cumpridas as promessas de acabar com os efeitos da seca sobre a população pobre. Esses quatro jornalistas foram acompanhados de perto pelo repórter fotográfico Lalo de Almeida, responsável também pela gravação dos vídeos inseridos nos três capítulos a seguir.
O relato da equipe está longe de ser animador. Em todas as situações retratadas, com gente demais (São Paulo), água demais (Rondônia) ou água de menos (Nordeste), percebe-se que o Brasil ainda não despertou para a necessidade de adaptar-se a eventos extremos –sejam ou não efeito de transformações globais– que afetam a mais básica necessidade humana: água. Para beber, plantar, limpar e pescar.
É unanimidade: ninguém gosta do Minhocão. A discussão agora é o que fazer com o bicharoco
Às 18 horas, depois de uma quinta-feira quente de inverno, o barulho, o trânsito e o cenário são os mesmos de sempre. Os carros parados em fila, o céu que pouco se vê, as pilastras gigantes de concreto impregnadas de fuligem preta, uma sirene ligada ecoando a quarteirões de distância. Quatro metros e meio acima está a pista expressa que tampa toda a visão de quem está embaixo. Quem vai em cima, no entanto, também está parado no tráfego. A diferença é a vista panorâmica que se tem das centenas de apartamentos enclausurados de um lado e outro da via. Esse é o Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão. Ele fica aberto de segunda a sábado, das 6h30 às 21h30. Aos domingos e feriados, quando fecha, dá algum sossego e, de uns tempos para cá, virou ponto de lazer e local de intervenções artísticas.
“Se você pega a Avenida São João, vê que a via elevada preencheu também o interior dos apartamentos. Enfiaram a rua naquelas casas. E, abaixo, todo aquele trecho de cidade naufragou 4,5 metros, acabou virando um subsolo”, comenta o arquiteto Angelo Bucci. Dizer que o Minhocão é uma cicatriz cruzando a região central da cidade de São Paulo virou lugar-comum. A definição não é incorreta, mas talvez fosse melhor usar, à la Eduardo Galeano, “veia aberta”. Porque desde sua inauguração, em 25 de abril de 1971, e até antes dela, tudo ao redor do elevado sangra.
A mais recente controvérsia vem na esteira do novo Plano Diretor Estratégico da cidade, sancionado pelo prefeito Fernando Haddad. Em um de seus artigos, o texto determina que a via elevada seja gradativamente desativada. Para que isso ocorra, no entanto, uma lei específica precisa ser aprovada. Aí uma nova questão passou a ser debatida: afinal, o que será do Minhocão? Dois grupos organizados e reunidos em torno de associações culturais e de bairro, como a Associação Amigos do Parque Minhocão e a Ação Local Amaral Gurgel, ganharam corpo rapidamente: o primeiro imagina a via transformada num parque, como o invejado High Line de Nova York (leia ao lado); o segundo quer a desmontagem do elevado.
Na terça-feira, a discussão, antes limitada às redes sociais, tomou a Câmara Municipal durante audiência pública - da qual participaram umas 180 pessoas - para discussão do Projeto de Lei 10/2014, que propõe a criação do parque. “As posições ficaram muito polarizadas, mas o PL apresentado é apenas um ponto de partida para o debate, não a chegada”, diz o vereador Nabil Bonduki (PT), um dos propositores do projeto. “De um lado, argumenta-se com a questão da manutenção onerosa, da segurança, do barulho e, principalmente, da área abaixo da via expressa, que continuaria sendo afetada mesmo com a implantação de um parque. De outro lado, fala-se no papel que o elevado já representa como espaço público de lazer quando está fechado para a circulação de carros.”
Com seus 2,8 quilômetros de extensão, o Minhocão, construído em 14 meses, consumiu 300 mil sacos de cimento, 60 mil metros cúbicos de concreto e 2 mil toneladas de cabos de aço. Teve seu projeto desenhado em 1968, ainda na administração de Faria Lima, mas foi levado em frente no ano seguinte por Paulo Maluf, recém-nomeado prefeito. Em um vídeo no YouTube, Maluf aparece esbelto, aos 38 anos, com sua fala nasalada, apresentando a façanha na qual se jogava: “A maior obra em concreto armado de toda a América Latina, uma via elevada que parte da Praça Roosevelt e chega até o Largo Padre Péricles, na Avenida Francisco Matarazzo”. Ele estava em êxtase.
Em perspectiva histórica, uma imagem que circula no Facebook deixa claro o real tamanho da façanha malufista. Onde hoje passa o Minhocão estendia-se uma charmosa Praça Marechal de Deodoro (agora praticamente invisível), um belíssimo bulevar e trilhos do bonde. Além de causar a completa descaracterização da área, a aceleração do processo de degradação do centro e a desvalorização imediata dos imóveis - em 1974, o Estado noticiava uma primeira indenização paga a um ex-morador da região -, o elevado “é uma bandeira do elogio ao transporte individual”, define Angelo Bucci. Não à toa, as obras da hoje Linha 3-Vermelha foram preteridas em favor da via expressa.
“Em 2006, defendi a demolição total. Achava que o Minhocão era um mal na cidade e deveria ser extirpado”, lembra o urbanista Guilherme Wisnik. “Mas nos últimos oito anos muita coisa mudou. De 2010 para cá, principalmente, começou a ocorrer um movimento muito grande em prol dos espaços públicos, identificado na Virada Cultural, nas discussões geradas em torno da disputa pela Praça Roosevelt e no uso intenso do elevado como espaço de lazer aos domingos. Por isso, hoje defendo o parque, não necessariamente em toda a extensão da via, mas talvez em uma solução mista.”
Em contraponto, Angelo Bucci acredita que só o simbolismo de uma desmontagem total deixaria clara uma mudança de ares da cidade. “É uma beleza você ver o que é essa vitalidade de se apropriar de uma obra para propagar os valores opostos àqueles que a criaram”, diz. Cena impensável anos atrás, agora, quando está fechado para o tráfego, não é raro topar com uma festa lá em cima, um grupo pintando quadros e mensagens no asfalto ou, até mesmo, gente preparando churrasco ou instalando piscinas desmontáveis. “Sou da opinião de que ele deva ser desmontando porque você precisa fazer com que a configuração da cidade seja a expressão dos valores em que a comunidade acredita naquele momento. E aquilo é uma obra feita de forma violenta, sem consultas, que causou danos enormes. Eu acho que você precisa assumir um pouco o ônus de tomar uma medida dessas para não deixar dúvidas de quais são as prioridades que interessam no momento.”
Segundo Bucci, a defesa da transformação da área em um parque suspenso resulta muito da ausência de espaços verdes na cidade. “Acho que muito da beleza e do aspecto comovente dessas ações de apropriação é o contraste. É você ver aquilo seis dias por semana como uma avenida que passa dentro dos apartamentos e depois chega um domingo ou um feriado e as crianças estão andando de bicicleta. Mas se a gente imagina um futuro mais do nosso lado, em que existam mais parques e a cidade tenha mais opções de mobilidade, como já vem acontecendo, qual a razão de manter aquilo ali?”, indaga. Wisnik pondera que as cidades devem incorporar suas transformações e “fazer dos erros artefatos interessantes, sem tentar restaurar uma coisa passada que já não existe”.
Um texto em tom profético publicado no Estado um mês antes da inauguração da obra deixa claro o impacto que ela causaria. “Depois que passar a euforia da novidade, das pessoas visitando o minhocão nos fins de semana e dos passageiros se divertindo com a intimidade de quem mora nos apartamentos devassados, os técnicos e urbanistas da cidade poderão analisar, friamente, o que foi feito de uma das maiores avenidas de São Paulo. E do metrô”, dizia o jornal. Hoje, Wisnik complementa: “O crescimento das cidades no pós-guerra - e esse é um modelo norte-americano, mas adotado quase no mundo inteiro - se baseou numa concepção rodoviarista na qual as cidades foram cortadas por vias expressas. O Minhocão é o grande exemplo disso em São Paulo. Em um momento, as cidades tinham grandes quantidades de espaços públicos que foram sendo sacrificados em nome do carro. Agora, seria muito interessante sacrificar o carro em nome do espaço público”. Nesse ponto, ele e Bucci estão de acordo.
Ressurreição. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), ainda não existe um estudo oficial do impacto que a desativação do elevado causaria. Sem dados concretos, a discussão em torno do que fazer com o Minhocão se torna bastante embrionária. Mesmo porque, como lembra Nabil Bonduki, na audiência pública que tratou do futuro do elevado o grupo estava dividido, mas fechado em torno de um ponto base: a desativação do elevado. “Tem a visão antiga, que não estava presente lá, que é a de cada um por si, Deus por todos e o poder público financiando uma visão individualista de mobilidade, baseada no automóvel”, comenta.
Recentemente, as novas ciclovias da cidade causaram polêmica em Santa Cecília, bairro cortado pelo elevado. Sua implantação chegou a ser comparada ao autoritarismo com que o Minhocão foi construído. “Eu acho engraçada essa comparação. Até onde entendo, tudo está sendo feito em um processo muito coletivo e transparente. As inúmeras consultas do Plano Diretor, por exemplo. Ele foi um processo participativo incrível e nele já estavam contidas muitas dessas medidas”, diz Wisnik. O debate, todos concordam, é acirrado, pois mexe com algo já estabelecido: a opção pelo transporte individual. No entanto, ambos enxergam toda essa movimentação como um processo único de interesse pelo espaço público. “Acho que disputa e conflito são sinais de um espaço público de verdade”, comenta Wisnik.
Em quanto tempo o Minhocão será desativado? Ele vai se transformar em parque? Será completamente desmontado? Ou ainda terá algumas partes preservadas para uso de lazer? São questões em aberto. Na impressão de Bucci, Wisnik e Bonduki, o processo será longo, mas uma pedra fundamental já foi colocada. Para Bucci, “nada é mais simbólico que este momento. Quando o Minhocão foi construído, ninguém perguntou nada a ninguém. Todo esse debate já dá uma boa medida da diferença de significados”. Em resumo, podemos estar diante do início da ressurreição simbólica de uma cidade que há décadas vem sendo sangrada por triunfais monumentos ao individualismo.