terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

'Rolezinho' político, por ELIANE CANTANHÊDE, na FSP



BRASÍLIA - O Brasil oficial só acorda mesmo depois que o Carnaval passa, mas já começou a espreguiçar ontem, com a reabertura do Judiciário e do Legislativo.
De manhã, Dilma aproveitou a posse dos novos ministros para mais um discurso de defesa de sua política econômica. Logo depois, veio a balança comercial: a pior em 20 anos.
À tarde, Henrique Alves e Renan Calheiros fizeram apaixonada defesa da Câmara e do Senado, depois da leitura longa e estéril da mensagem presidencial. Henrique desmentiu que o Congresso esteja "armando bombas" para explodir as contas públicas, e Renan entrou na onda: também há "rolezinhos" no Congresso, mas não políticos, só legislativos. (E, certamente, não de turminhas da periferia, mas da turma da pesada do centro do poder.)
O presidente do STF, Joaquim Barbosa, e o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha passaram mais um dia de gato e rato. Desafiador, Cunha filou a boia dos militantes que acampam na frente do tribunal em favor dos réus (só dos petistas). Teimoso, Barbosa insiste em não assinar o encruado mandado de prisão do (ainda) deputado.
Mas a oposição também não tem o que comemorar: o ministro Marco Aurélio, relator do caso Siemens no STF, foi logo avisando, já no primeiro dia, que não vai manter sigilo desse processo, que pega os tucanos de jeito em São Paulo.
E esse foi o menor problema do governador Geraldo Alckmin quando o Brasil oficial começou a encarar 2014. Além do discurso do petista Alexandre Padilha sobre "heranças malditas", ao trocar a Saúde pela campanha paulista, Alckmin teve a notícia de que bandidos atacaram o carro em que estavam seu filho e sua neta no centro de São Paulo.
O drama é pessoal, e o risco, político. Enquanto flagelo de favelas e periferias, a violência é só estatística, mas, quando chega às áreas nobres e aos poderosos, ganha destaque. E atinge em cheio as reeleições.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Impressões


Entrevista com o fotógrafo Claudio Edinger, autor do livro 'De Bom Jesus a Milagres'

01 de fevereiro de 2014 | 17h 10

Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo
No livro De Bom Jesus a Milagres, o fotógrafo Claudio Edinger se resume: "Sou filho de alemão com russo, judeu que cresceu cercado de amigos católicos, economista apaixonado por fotografia, carioca que viveu a vida toda em São Paulo e, a partir de 1976, passou 20 anos em Nova York – sempre o estrangeiro!" Em 2001, ao voltar da temporada americana, quis fotografar o Rio para "redescobrir o que é ser brasileiro" e onde – aqui – é o seu lugar. Ali estaria a base das imagens com foco seletivo que o alçariam ao cume do mercado brasileiro de fotografia autoral. Uma obra de Edinger hoje pode valer R$ 45 mil.
 - Claudio Edinger
Claudio Edinger
Nesse caminho de procuras, ele foi se despindo do estilo documental (os judeus ortodoxos do Brooklyn, os loucos do Juqueri, os doidões do Chelsea Hotel...), dos trabalhos editoriais e publicitários, para se cobrir com o que sempre sonhou: a fotografia como arte. O sentimento de estrangeiro ajuda a iluminar o caminho percorrido. Se não havia um mundo pra ele no mundo, ele inventou um mundo – desfocado, poético, aconchegante. Primeiro usou uma câmera que produz negativos de 10 cm por 12,5 cm. Agora obtém o mesmo efeito fotografando com câmera digital e manipulando as imagens no computador, reconstruindo-as. É disso que ele trata na entrevista a seguir.
Você me dizia que a fotografia é a nova pintura e o fotógrafo, o novo pintor, se referindo à grande arte dos séculos passados. Polêmico.
A fotografia foi inventada por pintores (Daguerre, Niepce, Fox-Talbot, Bayard e Florence) para auxiliá-los em seu trabalho. Ela é filha da câmera obscura, utilizada por Rembrandt, Caravaggio, Ingres. Edgar Degas era também fotógrafo. Pois o que foi inventado para auxiliar, a partir do meio do século 19, com gênios como Matthew Brady, Muybridge, Julia Margaret Cameron, Disderi e Nadar, foi se tornando protagonista. Hoje não existe um grande museu que não tenha um importante departamento de fotografia, sem falar nos mais de cem museus de fotografia no mundo todo. Fotos de US$ 1 milhão hoje são lugar-comum. A cada dia aparecem trabalhos fotográficos autorais extraordinários, como em nenhuma outra arte. E estamos apenas começando.
Para alguns, a fotografia se distingue da pintura por ser mais fiel à realidade.
Mas que realidade? A do fotógrafo? A do fotografado? A do espectador? Realidade não existe. Pelo menos não uma só. Susan Sontag escreveu que a realidade de uma foto é mais real que a própria realidade. Ou, como disse o (filósofo inglês) Francis Bacon, a função do artista é aprofundar o mistério. O real não é real.
O alemão Andreas Gursky é o autor da foto mais cara da história: um panorama do Rio Reno vendido por US$ 4,3 milhões. Como em outros trabalhos dele, essa imagem foi inteirinha montada, juntada, manipulada, criada no computador. Aí já não é demais?
A fotografia autoral, que é a que figura nas maiores galerias, bienais, museus e leilões, divide-se em duas partes. A capturada e a construída. As duas caminham lado a lado criando múltiplas subdivisões, mais ou menos como aconteceu com a pintura depois do impressionismo, com o aparecimento das diversas escolas modernas como a abstrata, a cubista, a expressionista, etc. A utilização ou não de tratamentos digitais é só uma das técnicas utilizadas nas muitas escolas de imagem que temos hoje. Manipulada toda foto sempre foi. O filme fotográfico, e agora o chip, não vê as coisas como vemos, ou como sonhamos. Então temos que adequar o meio ao nosso olhar ou à nossa imaginação.
Um lado curioso é que, nesse caso, a tecnologia não democratiza a fotografia. A torna, isso sim, para deleite de poucos.
Como a pintura, ou a literatura, a fotografia nunca foi e nem será democratizada. Só por que você tem o Word no computador não significa que possa escrever um romance. Vale o que dizia Degas: "Se você não sabe pintar, pintura é a coisa mais fácil que existe (é só pegar uma tela, um pincel e tinta e pintar). Mas se você sabe, pintura é praticamente impossível".

Uivos da desigualdade

Sérgio Augusto - O Estado de S. Paulo
Os dados são estarrecedores. Ano passado, a riqueza mundial bateu um recorde: US$ 241 trilhões. Se dividida igualitariamente, daria US$ 51.600 por pessoa. Essa partilha sempre foi injusta, mas não na escala atual, com 86% da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos do planeta, razão pela qual tanto se tem falado ultimamente na questão da desigualdade social. E, ressuscitando Thornstein Veblen, no consumo conspícuo da classe ociosa e dos crupiês do cassino financeiro, onipresentes na mídia, na ficção e nas telas.
Di Caprio como Belfort, flagrado no seu hobby favorito: jogar dinheiro fora - Divulgação
Divulgação
Di Caprio como Belfort, flagrado no seu hobby favorito: jogar dinheiro fora
Gordon Gekko e seu deletério mantra ("A cobiça é saudável"), Jordan Belfort, o lobo de Wall Street, rasgando dinheiro e financiando a miséria alheia – perto desses, Jay Gatsby, que aliás viveu mais próximo da idade de ouro econômica escrutinada por Veblen, não passava de um romântico e inofensivo playboy, de um ocioso do bem. Às vezes desconfio que até (ou sobretudo) em ostentação ele perderia para os super-ricos do capitalismo globalizado. Com seu estilo de vida obscenamente perdulário, gastando a rodo, comprando à la louca bens e serviços supérfluos e hiperinflacionados, a nova safra de estroinas zilionários (emergentes russos, chineses e africanos, petroarcas do Oriente Médio, socialites, herdeiros e empresários deslumbrados, celebridades do esporte e do show business) tem sempre um espetáculo deprimente a nos oferecer. E uma plateia cativa de panacas para incentivá-la com sua atenção e inveja.
Iates transatlânticos, Lamborghinis folheados a ouro (pela bagatela de US$ 7,5 milhões), relógios de pulso cravejados de diamantes que dariam para comprar uma ou duas Mercedes, apartamentos de US$ 90 milhões em Manhattan, despesas de hotéis astronômicas (sai por $ 15 mil dormir uma noite na cobertura do Fairmont de São Francisco em que JFK faturou MM), festas extravagantes (brasileiros já gastaram US$ 30 mil com aniversários de criança no Plaza de Nova York) – uma desfaçatez atrás da outra, entusiasticamente cobertas e atualizadas pelo canal de notícias sobre negócios CNBC, que, não satisfeito em abrigar em seu blog um "editor de riqueza", Robert Frank, lançou há dez dias uma série bajuladora sobre "a vida secreta dos super-ricos", cujo prefixo musical é uma exaltação ao dinheiro e ao poder.
A desigualdade social foi tema recorrente no recente Fórum Econômico de Davos, nas exortações do papa Francisco e no último discurso sobre o Estado da Nação de Obama. Frequentemente o encontramos inflamando discussões de economistas, analistas e políticos mundo afora. Seu corolário, a redistribuição da riqueza, arrematou a mensagem do papa à elite econômica reunida em Davos ("que a humanidade seja mais servida pela riqueza, não dominada por ela") e vive indispondo Obama com o mumificato republicano no Congresso e seus papagaios na mídia, que, ou desconversam, erguendo a bandeira da "mobilidade social", ou apelam para a ignorância, acusando o presidente de socialista, de incitar uma "guerra de classes", só porque ele acredita que os podres de ricos (1% da população, os chamados one-percenters) devem ser taxados para facilitar a mobilidade dos milhões de americanos que já vivem abaixo da linha de pobreza.
Com as disparidades de renda existentes, priorizar a mobilidade social não chega a ser uma utopia conservadora; é, na melhor das hipóteses, um insulto à inteligência, um perverso faz de conta, um repelente ideológico-partidário para manter intocado o bem-bom de uma plutocracia obcecada pelo crescimento econômico a qualquer preço, que aceita o PIB como a métrica que determina o progresso social. Como é dessa plutocracia que vem o grosso da grana para as campanhas eleitorais de republicanos e democratas, afora outras benesses, esse nó não desata.
Em sua edição de 24 de janeiro, o Wall Street Journal estampou uma carta indignada do financista Thomas Perkins, em que o nababo do Vale do Silício comparava a taxação progressiva dos ricaços aventada pelo governo Obama à "Noite dos Cristais" (quando nazistas alemães e austríacos depredaram sinagogas e lojas de judeus, em 1938) e acusava o presidente de demonizar e perseguir quem tem muito dinheiro, uma repetição da atoarda de outro prócer do "dinheiro organizado", Stephen Schwarzman, que há quatro anos comparou as propostas para eliminar as brechas fiscais que haviam facilitado o colapso financeiro de 2008 (custo para cada americano: U$ 120 mil) à invasão da Polônia pela Alemanha nazista.
Sem se dar ao trabalho de esclarecer que Obama não é Hitler, nem Lenin, o Nobel de Economia e colunista do New York Times Paul Krugman caiu na pele de Perkins e suas paranoias. Livrou a cara dos que outrora chamavam de "capitães da indústria", pois afinal movem a economia, descarregando sua ira sobre os "wheeler-dealers", os especuladores, a súcia do dinheiro-que-só-produz-dinheiro, cujo cinismo Tom Toro tão bem retratou dia desses num cartum para a revista New Yorker, em que um ricaço propõe a outros dois que tomem uma dose de champanhe Clos de Vougeot Grand Cru ’88 toda vez que Obama se referir à "desigualdade de renda" no discurso sobre o Estado da Nação.
Não deu nem para esvaziar metade da garrafa de champanhe. Obama, infelizmente, tampouco é Franklin Roosevelt.