Sérgio Augusto - O Estado de S. Paulo
Os dados são estarrecedores. Ano passado, a riqueza mundial bateu um recorde: US$ 241 trilhões. Se dividida igualitariamente, daria US$ 51.600 por pessoa. Essa partilha sempre foi injusta, mas não na escala atual, com 86% da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos do planeta, razão pela qual tanto se tem falado ultimamente na questão da desigualdade social. E, ressuscitando Thornstein Veblen, no consumo conspícuo da classe ociosa e dos crupiês do cassino financeiro, onipresentes na mídia, na ficção e nas telas.
Gordon Gekko e seu deletério mantra ("A cobiça é saudável"), Jordan Belfort, o lobo de Wall Street, rasgando dinheiro e financiando a miséria alheia – perto desses, Jay Gatsby, que aliás viveu mais próximo da idade de ouro econômica escrutinada por Veblen, não passava de um romântico e inofensivo playboy, de um ocioso do bem. Às vezes desconfio que até (ou sobretudo) em ostentação ele perderia para os super-ricos do capitalismo globalizado. Com seu estilo de vida obscenamente perdulário, gastando a rodo, comprando à la louca bens e serviços supérfluos e hiperinflacionados, a nova safra de estroinas zilionários (emergentes russos, chineses e africanos, petroarcas do Oriente Médio, socialites, herdeiros e empresários deslumbrados, celebridades do esporte e do show business) tem sempre um espetáculo deprimente a nos oferecer. E uma plateia cativa de panacas para incentivá-la com sua atenção e inveja.
Iates transatlânticos, Lamborghinis folheados a ouro (pela bagatela de US$ 7,5 milhões), relógios de pulso cravejados de diamantes que dariam para comprar uma ou duas Mercedes, apartamentos de US$ 90 milhões em Manhattan, despesas de hotéis astronômicas (sai por $ 15 mil dormir uma noite na cobertura do Fairmont de São Francisco em que JFK faturou MM), festas extravagantes (brasileiros já gastaram US$ 30 mil com aniversários de criança no Plaza de Nova York) – uma desfaçatez atrás da outra, entusiasticamente cobertas e atualizadas pelo canal de notícias sobre negócios CNBC, que, não satisfeito em abrigar em seu blog um "editor de riqueza", Robert Frank, lançou há dez dias uma série bajuladora sobre "a vida secreta dos super-ricos", cujo prefixo musical é uma exaltação ao dinheiro e ao poder.
A desigualdade social foi tema recorrente no recente Fórum Econômico de Davos, nas exortações do papa Francisco e no último discurso sobre o Estado da Nação de Obama. Frequentemente o encontramos inflamando discussões de economistas, analistas e políticos mundo afora. Seu corolário, a redistribuição da riqueza, arrematou a mensagem do papa à elite econômica reunida em Davos ("que a humanidade seja mais servida pela riqueza, não dominada por ela") e vive indispondo Obama com o mumificato republicano no Congresso e seus papagaios na mídia, que, ou desconversam, erguendo a bandeira da "mobilidade social", ou apelam para a ignorância, acusando o presidente de socialista, de incitar uma "guerra de classes", só porque ele acredita que os podres de ricos (1% da população, os chamados one-percenters) devem ser taxados para facilitar a mobilidade dos milhões de americanos que já vivem abaixo da linha de pobreza.
Com as disparidades de renda existentes, priorizar a mobilidade social não chega a ser uma utopia conservadora; é, na melhor das hipóteses, um insulto à inteligência, um perverso faz de conta, um repelente ideológico-partidário para manter intocado o bem-bom de uma plutocracia obcecada pelo crescimento econômico a qualquer preço, que aceita o PIB como a métrica que determina o progresso social. Como é dessa plutocracia que vem o grosso da grana para as campanhas eleitorais de republicanos e democratas, afora outras benesses, esse nó não desata.
Em sua edição de 24 de janeiro, o Wall Street Journal estampou uma carta indignada do financista Thomas Perkins, em que o nababo do Vale do Silício comparava a taxação progressiva dos ricaços aventada pelo governo Obama à "Noite dos Cristais" (quando nazistas alemães e austríacos depredaram sinagogas e lojas de judeus, em 1938) e acusava o presidente de demonizar e perseguir quem tem muito dinheiro, uma repetição da atoarda de outro prócer do "dinheiro organizado", Stephen Schwarzman, que há quatro anos comparou as propostas para eliminar as brechas fiscais que haviam facilitado o colapso financeiro de 2008 (custo para cada americano: U$ 120 mil) à invasão da Polônia pela Alemanha nazista.
Sem se dar ao trabalho de esclarecer que Obama não é Hitler, nem Lenin, o Nobel de Economia e colunista do New York Times Paul Krugman caiu na pele de Perkins e suas paranoias. Livrou a cara dos que outrora chamavam de "capitães da indústria", pois afinal movem a economia, descarregando sua ira sobre os "wheeler-dealers", os especuladores, a súcia do dinheiro-que-só-produz-dinheiro, cujo cinismo Tom Toro tão bem retratou dia desses num cartum para a revista New Yorker, em que um ricaço propõe a outros dois que tomem uma dose de champanhe Clos de Vougeot Grand Cru ’88 toda vez que Obama se referir à "desigualdade de renda" no discurso sobre o Estado da Nação.
Não deu nem para esvaziar metade da garrafa de champanhe. Obama, infelizmente, tampouco é Franklin Roosevelt.