19 de janeiro de 2014 | 2h 10
JOSÉ GARCEZ GHIRARDI, JOSÉ GARCEZ GHIRARDI É ADVOGADO , E PROFESSOR DA DIREITO GV/SP - O Estado de S.Paulo
O roteiro tem se repetido com variações pontuais: das redes sociais emerge um movimento que, quase imperceptível a princípio, ganha corpo, invade as ruas, monopoliza a mídia e assusta os governos. Um frenesi de reuniões de emergência e de medidas mais ou menos improvisadas se seguem, ao mesmo tempo que se multiplicam as avaliações de que agora, de fato, o País acordou. Passada a efervescência, entretanto, a impressão que fica é de que a energia da manifestação coletiva se dispersou antes de amadurecer e de frutificar em mudanças capazes de fazer jus à esperança que geraram. Por meio de promessas e paliativos, o ímpeto inicial é incorporado ao sistema antigo, e, pouco a pouco, a vida volta à rotina, até que a manifestação seguinte faça lembrar as anteriores e reinstale a ideia de um novo ciclo.
Em sua dinâmica de surgimento e difusão, as recentes manifestações partilham das características de outra formas de interação surgidas em nosso tempo, como as flash mobs, as raves e as campanhas de lançamento de produtos: profusa articulação midiática, intenso potencial de impacto, duração efêmera. Nada mais natural. As formas de fazer política necessariamente refletem os valores das sociedades em que surgem, mesmo quando a eles pretendem se opor. A vida social ocorre hoje, em larga medida, dentro e a partir das várias mídias. Elas substituem em grande parte, embora não totalmente, a função antes atribuída à praça pública: permitir encontros, embates, apresentar ideias.
Os políticos profissionais sabem disso. Sua luta pela hegemonia nesse espaço ajuda a entender, por exemplo, as quantias assombrosas com que remuneram os marqueteiros eleitorais, os confrontos entre órgãos de mídia e governos em várias partes da América Latina e o peso que se dá a segundos de tempo de televisão como critério para celebrar alianças. O funcionamento das manifestações a partir das mídias não deve, assim, causar estranheza, uma vez que está em harmonia com a lógica que informa contemporaneamente as relações sociais. Mas, se o meio é a mensagem, quais mensagens vão implícitas na forma de organização das recentes manifestações?
Andy Warhol multiplicava exponencialmente a mesma imagem, por vezes com mínimas variações, de tal forma que sua repetição obsessiva e sua exposição permanente acabavam por transformar em produtos semelhantes uma sex symbol e uma lata de sopa. Acredito que Warhol buscava denunciar, já na década de 1960, o processo (que hoje se acelerou) de commoditização de tudo, isto é, de transformação de todos os elementos da vida em potenciais produtos de consumo.
No processo, as diferenças substantivas entre ideias, pessoas, valores e propostas vão ficando homogeneizadas em sua condição de mercadoria potencial. As manifestações políticas não estão livres desse risco. Como nas obras de Warhol, variações importantes entre os movimentos recentes ficam obscurecidas pelo modo como se apresentam e como são apresentados nas múltiplas mídias. Quem há de negar, por exemplo, que, embora haja conexões importantes, não há nem de longe identidade absoluta entre protestar por transporte gratuito, fim da corrupção, segurança, melhorias nos presídios e livre acesso aos shoppings, por exemplo? Que muitas das questões aí envolvidas solicitam desenhos de solução não evidentemente conciliáveis? Mas essas diferenças, que têm enorme impacto em nossa vida quotidiana, ficam amortecidas pela força da série ininterrupta e rapidíssima de imagens em que são traduzidas.
Nesse processo de substituição vertiginosa de objetos midiáticos, os movimentos arriscam paradoxalmente diluir seu potencial de contribuição de longo prazo na medida em que as ações podem tender a descolar-se da substância das reivindicações e se tornar a própria mensagem, a se tornar eventos que se justificam, se completam e se exaurem em si mesmos. Com isso, podem inadvertidamente reforçar elementos desse sistema que commoditiza tudo, enredando-se na própria lógica que procura combater.
Por isso, importa não minimizar o significado de, neste momento, os shoppings terem sido privilegiados pelos jovens como símbolo de suas aspirações de cidadania e de inclusão. Esses estabelecimentos não são apenas os ícones por excelência da sociedade de consumo, mas constituem também o lócus onde se desenvolvem novas formas de convívio entre as pessoas. O rolezinho, versão atualizada do footing na praça do coreto, é o momento em que os relacionamentos virtuais se tornam, finalmente, presenciais. Que isso se dê no espaço público/privado do consumo não é casual e é indicativo da complexidade dos valores em jogo.
O processo de reinvenção de nossa vida política vai provavelmente gerar mais episódios como os de agora, mesmo que apenas como explicitação do esgotamento de um modelo político. Eles têm assim, função importante e ajudam a repensar o que desejamos como coletividade. No entanto, como todo movimento social, eles incorporam também as agudas contradições do tempo, e elas precisam ser enfrentadas em profundidade.