quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Footing cibernético ( sobre rolezinho- ótimo)


19 de janeiro de 2014 | 2h 10

JOSÉ GARCEZ GHIRARDI, JOSÉ GARCEZ GHIRARDI É ADVOGADO , E PROFESSOR DA DIREITO GV/SP - O Estado de S.Paulo
O roteiro tem se repetido com variações pontuais: das redes sociais emerge um movimento que, quase imperceptível a princípio, ganha corpo, invade as ruas, monopoliza a mídia e assusta os governos. Um frenesi de reuniões de emergência e de medidas mais ou menos improvisadas se seguem, ao mesmo tempo que se multiplicam as avaliações de que agora, de fato, o País acordou. Passada a efervescência, entretanto, a impressão que fica é de que a energia da manifestação coletiva se dispersou antes de amadurecer e de frutificar em mudanças capazes de fazer jus à esperança que geraram. Por meio de promessas e paliativos, o ímpeto inicial é incorporado ao sistema antigo, e, pouco a pouco, a vida volta à rotina, até que a manifestação seguinte faça lembrar as anteriores e reinstale a ideia de um novo ciclo.
Em sua dinâmica de surgimento e difusão, as recentes manifestações partilham das características de outra formas de interação surgidas em nosso tempo, como as flash mobs, as raves e as campanhas de lançamento de produtos: profusa articulação midiática, intenso potencial de impacto, duração efêmera. Nada mais natural. As formas de fazer política necessariamente refletem os valores das sociedades em que surgem, mesmo quando a eles pretendem se opor. A vida social ocorre hoje, em larga medida, dentro e a partir das várias mídias. Elas substituem em grande parte, embora não totalmente, a função antes atribuída à praça pública: permitir encontros, embates, apresentar ideias.
Os políticos profissionais sabem disso. Sua luta pela hegemonia nesse espaço ajuda a entender, por exemplo, as quantias assombrosas com que remuneram os marqueteiros eleitorais, os confrontos entre órgãos de mídia e governos em várias partes da América Latina e o peso que se dá a segundos de tempo de televisão como critério para celebrar alianças. O funcionamento das manifestações a partir das mídias não deve, assim, causar estranheza, uma vez que está em harmonia com a lógica que informa contemporaneamente as relações sociais. Mas, se o meio é a mensagem, quais mensagens vão implícitas na forma de organização das recentes manifestações?
Andy Warhol multiplicava exponencialmente a mesma imagem, por vezes com mínimas variações, de tal forma que sua repetição obsessiva e sua exposição permanente acabavam por transformar em produtos semelhantes uma sex symbol e uma lata de sopa. Acredito que Warhol buscava denunciar, já na década de 1960, o processo (que hoje se acelerou) de commoditização de tudo, isto é, de transformação de todos os elementos da vida em potenciais produtos de consumo.
No processo, as diferenças substantivas entre ideias, pessoas, valores e propostas vão ficando homogeneizadas em sua condição de mercadoria potencial. As manifestações políticas não estão livres desse risco. Como nas obras de Warhol, variações importantes entre os movimentos recentes ficam obscurecidas pelo modo como se apresentam e como são apresentados nas múltiplas mídias. Quem há de negar, por exemplo, que, embora haja conexões importantes, não há nem de longe identidade absoluta entre protestar por transporte gratuito, fim da corrupção, segurança, melhorias nos presídios e livre acesso aos shoppings, por exemplo? Que muitas das questões aí envolvidas solicitam desenhos de solução não evidentemente conciliáveis? Mas essas diferenças, que têm enorme impacto em nossa vida quotidiana, ficam amortecidas pela força da série ininterrupta e rapidíssima de imagens em que são traduzidas.
Nesse processo de substituição vertiginosa de objetos midiáticos, os movimentos arriscam paradoxalmente diluir seu potencial de contribuição de longo prazo na medida em que as ações podem tender a descolar-se da substância das reivindicações e se tornar a própria mensagem, a se tornar eventos que se justificam, se completam e se exaurem em si mesmos. Com isso, podem inadvertidamente reforçar elementos desse sistema que commoditiza tudo, enredando-se na própria lógica que procura combater.
Por isso, importa não minimizar o significado de, neste momento, os shoppings terem sido privilegiados pelos jovens como símbolo de suas aspirações de cidadania e de inclusão. Esses estabelecimentos não são apenas os ícones por excelência da sociedade de consumo, mas constituem também o lócus onde se desenvolvem novas formas de convívio entre as pessoas. O rolezinho, versão atualizada do footing na praça do coreto, é o momento em que os relacionamentos virtuais se tornam, finalmente, presenciais. Que isso se dê no espaço público/privado do consumo não é casual e é indicativo da complexidade dos valores em jogo.
O processo de reinvenção de nossa vida política vai provavelmente gerar mais episódios como os de agora, mesmo que apenas como explicitação do esgotamento de um modelo político. Eles têm assim, função importante e ajudam a repensar o que desejamos como coletividade. No entanto, como todo movimento social, eles incorporam também as agudas contradições do tempo, e elas precisam ser enfrentadas em profundidade.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Flashback (pauta Belas artes)


Pipoqueiro por 32 anos do antigo Cine Belas Artes, Josafá se prepara para voltar à cena com a reabertura do espaço

25 de janeiro de 2014 | 15h 33

Vivian Codogno - O Estado de S. Paulo
A panela está fumegante. No carrinho, palha de milho, azeite, margarina. Para adoçar o fim de tarde, coco caramelizado e amendoim com casquinha de chocolate. Tem também a castanha de caju com manteiga e azeite, receitinha caseira. O milho custa R$ 4 ou R$ 5, conforme o tamanho. O vaivém não para. A saída da Estação Paulista do metrô indica que ali, na Rua da Consolação, há muitas pernas para pouco espaço.
O paraibano que hoje vende milho cozido, quer voltar ao estou das pipocas: 'Fazia R$ 250 por dia' - Evelson de Freitas/Estadão
Evelson de Freitas/Estadão
O paraibano que hoje vende milho cozido, quer voltar ao estou das pipocas: 'Fazia R$ 250 por dia'
Se a freguesia é boa, o dono do carrinho, Josafá Batista de Sena, já viu movimento maior no ponto em que esteve durante 32 anos, a poucos passos, no número 2.423 da mesma Rua da Consolação. Lá funcionava o histórico Cine Belas Artes, nas portas do qual Josafá exerceu seu ramo de especialidade – a pipoca – e o faturamento, conta, estourava que era uma beleza.
É a reportagem do Aliás a portadora da boa nova – confirmada essa semana – da reabertura do cinema. Josafá tira o boné, olha para cima e, ainda sem acreditar muito, exclama: "Se Deus quiser!" Há quase três anos, quando o Belas Artes fechou, ele precisou mudar de ponto e, ligeiramente, de especialidade – ainda o milho, mas cozido. Seu rendimento mensal sofreu um corte seco. Hoje, diz que consegue levar para casa por volta de R$ 100 por dia. Mas nos anos de ouro da pipoca, garante que em dias bons faturava até R$ 250. Josafá nem precisa pensar muito diante da perspectiva de redobrar seu faturamento mensal: "Se eu vou voltar para lá? Lógico! Meu ramo é pipoca. Se precisar, trabalho lá das 11h às 23h", se empolga, de jaleco azul com o símbolo do Corinthians bordado atrás.
Faltam apenas alguns detalhes para que a parceria entre a Caixa Econômica Federal, o novo patrocinador, a Prefeitura de São Paulo e o diretor do Belas Artes, o cineasta André Sturm, seja firmada. Os valores dos contratos ainda não foram divulgados e a previsão para a reabertura é entre maio e junho próximos. Com o nome Caixa Belas Artes e uma sala direcionada à exibição de filmes produzidos em São Paulo, a esquina da Rua da Consolação terá novamente seu Cinema Paradiso paulistano, que tanta saudade traz a Josafá. Sturm faz questão de frisar que o cinema voltará em grande estilo, para alegria dos cinéfilos da cidade: "Estamos afinando os últimos detalhes. O prédio está razoavelmente em bom estado, mas faremos uma reforma geral para modernizá-lo".
Naquele dia 17 de março, depois de diversas tentativas de negociação, O Águia (EUA, 1925), clássico do cinema mudo dirigido por Clarence Brown e estrelado por Rodolfo Valentino, era exibido pela última vez na Sala 5 do Belas Artes. O diretor do cinema não conseguia bancar o aumento de R$ 85 mil para R$ 150 mil no aluguel do prédio, exigido pelo proprietário, e teve que entregar o imóvel. Curiosamente, foi durante os créditos finais que Josafá desempenhou seu melhor papel: "Durante todo o tempo em que trabalhei lá, a época em que mais vendi pipoca foi quando o Belas Artes estava para fechar. Um estouro! As filas chegavam até a calçada todos os dias", relembra, com brilho nos olhos.
Embora o pipoqueiro nunca tenha sido um frequentador das salas de exibição, quando sobrava um tempinho entrava e assistia a um ou outro filme, convidado pelos funcionários da bilheteria. Lembra de ter visto Pixote, de Hector Babenco, e, por duas vezes, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. "Cada filmão! E tudo na faixa. Mas eu não tinha muito tempo não. Minha vida é trabalhar, minha filha. Tanto que nem sei dizer se gosto mesmo de filme. E se é pra ver, que seja comédia e me faça rir."
Em 1967, quando o Belas Artes foi inaugurado, Josafá completava 5 anos de idade em Bananeiras, na Paraíba, sua cidade natal. Foi só em 1979, época em que os governos militares ainda ditavam as regras no Brasil, que o pipoqueiro estreou sua primeira sessão em frente ao Belas Artes. Havia chegado fazia pouco em São Paulo, escondido dos pais, pois sonhava conhecer a capital. Aos 17 anos, magrinho, com corte de cabelo mullet, começou vendendo doce de coco. Precisou enfrentar a concorrência dos ambulantes mais antigos, que o botavam para correr. Morava em Cotia e vinha para São Paulo todos os dias. O carrinho ficava na garagem de um prédio vizinho, por camaradagem do síndico. Hoje, com 52 anos, Josafá é zelador desse mesmo prédio e, em troca, mora em um apartamento sem pagar aluguel desde que se divorciou, em 2004. As fotos das três filhas, Isabella, de 18 anos, e as gêmeas Rafaella e Gabriella, de 15, ficam na carteira.
Nas três décadas de trabalho na Rua da Consolação, Josafá pôde testemunhar, além das mudanças que puseram fim à ditadura no País, o incêndio que destruiu duas das salas do cinema, em 1982. Nunca foi possível esclarecer a origem do fogo, mas no primeiro andar, na sala da gerência, foram encontrados um maçarico e um cofre com sinais de arrombamento, o que indica que o incêndio pode ter sido criminoso. Josafá não sabe dizer o que causou as chamas, mas à época, como agora, durante o fechamento do cinema, soube se virar: durante a reforma do prédio, vendia quentinhas para os operários. No ano seguinte, o Belas Artes foi reinaugurado com seis salas, formato com o qual permaneceu até seu fechamento.
Nos anos 1980, em uma época em que a escolha do cinema esbarrava na importância de ver e ser visto, o Belas Artes se tornou uma referência cultural para São Paulo. As filas para as sessões dobravam a esquina e muitos espectadores ficavam do lado de fora. Por causa dessa movimentação, não era difícil encontrar os próprios atores e diretores dos filmes estrelados na casa. Intelectuais, artistas e formadores de opinião também marcavam presença.
Durante os 32 anos em que trabalhou na frente do cinema, Josafá conviveu com visitas ilustres que passaram por ali. "Silvio Santos, Paulo Autran, Carla Perez, Raí. Se eu te disser para quantos famosos eu já vendi pipoca! Isso aqui era cinema de gente da alta! Até as filhas do Abílio Diniz frequentavam", conta. "Eu tinha um caderno de 120 páginas com autógrafos que peguei aqui. Pena que perdi..."
O pipoqueiro teve a honra de contracenar com alguns desses famosos na calçada da Consolação. Olhar distante, ele se recorda, com carinho, de quando vendeu pipoca para o ator Tarcísio Meira. "Quando ele chegou perto do carrinho, um monte de gente rodeou ele para pedir autógrafo. Vendi pra todo mundo. Ele até brincou que ia pedir uma comissão por ter enchido o meu carrinho de gente."
A bilheteria e a bombonière do cinema nunca aceitaram pagamento em cheque, e Josafá estava sempre a postos para a ajudar. Trocava cheques e recebia uma caixinha extra, muitas vezes de pessoas famosas. Depois, o pipoqueiro aproveitava para alimentar o imaginário afetivo dos que não tinham, como ele, a oportunidade de estar tão perto de ídolos tão distantes: "Sabe o que eu fazia? Eu não descontava os cheques e vendia aos fãs. Uma vez vendi um cheque do Raí para um são-paulino roxo. Pelo que sei, ele não descontou até hoje. Mandou até plastificar". E ri até os olhos ficarem pequenos.
Outro espetáculo à parte para Josafá era o comportamento dos frequentadores. Da calçada, o pipoqueiro se distraía a observar a fauna humana entre as filas de bilheteria e as salas de exibição. Testemunhou inícios de namoro e fins de casamento de gente que ele não conhecia. "Eu via cada coisa! Teve uma briga de casal em que a discussão começou já na fila da bilheteria. A moça tirou o sapato e bateu na cara do namorado, imagina só. Depois, ela correu para o estacionamento, que era aqui ó (aponta para a loja Pernambucanas) e ele veio atrás. Dali a pouco já estavam voltando, abraçadinhos. Cada coisa!"
O Belas Artes daqueles dias era o resultado do trabalho e da dedicação de muita gente. Antes da nova gestão, em 2005, o cinema já se encontrava a ponto de encerrar as atividades. A programação não tinha personalidade, os equipamentos eram sucateados, frequentadores buscavam alternativas na Avenida Paulista. Quando André Sturm assumiu, em parceria com a produtora O2 Filmes, do diretor Fernando Meirelles, e com o patrocínio do banco HSBC, o cinema voltou ao prumo. E as salas viviam repletas de um público ávido por filmes como Medos Privados em Lugares Públicos, do diretor francês Alain Resnais, que ficou em cartaz por dois anos no cinema.
Josafá se diz amigo dos antigos funcionários até hoje, mesmo que se refira eventualmente ao "menino", "aquele moço", "o senhor da livraria", "a mocinha da bilheteria". De Sturm, ele se lembra da despedida. "No dia em que o cinema fechou, a mãe do seu André pediu para tirar uma foto comigo." Mas é ao falar de outro deles que o pipoqueiro se emociona de verdade: o relações públicas Fernando Pereira, que também trabalhou no cinema até seu fechamento. Meses depois de o Belas Artes fechar, o funcionário cometeu suicídio. "Fernando era muito amigo meu. Ele sempre me dava conselhos quando me separei da minha mulher. Fiquei tão sentido quando descobri que ele foi embora... Era depressivo, mas um cara muito criativo. Eu falava, ‘Fernando, parece que você tem quatro cérebros’."
Já é noite e o vendedor de milho cozido decide levar seu carrinho até a esquina da Avenida Paulista, que está mais bem iluminada. Nos poucos passos até lá, ele para em frente ao Belas Artes e lamenta o abandono que toma conta do prédio. Toca com as mãos a porta de tapume escuro que hoje veda a entrada e lamenta: "Parece um banheiro público". Mas logo retoma o sorriso e, sonhando com o dia em que verá essas portas abertas novamente, segue para onde as luzes estão acesas. Os créditos não sobem, pois o filme ainda não terminou.

Faltou combinar (pauta)


Colaboração entre governos evitaria ação violenta da Polícia Civil na Cracolândia, afirma sociólogo

25 de janeiro de 2014 | 14h 42

Sérgio Adorno
Há quatro décadas, a sociedade brasileira vem experimentando algumas modalidades de violência. Primeiramente, os crimes que compõem a chamada delinquência urbana, em especial os ataques contra o patrimônio, como furtos e roubos - os quais se mantêm em taxas muito elevadas - e os ataques contra a pessoa, como os homicídios. É certo que no Estado de São Paulo os homicídios se encontram há uma década em tendência de queda. A contrapartida é o aumento dos conflitos interpessoais que, não raro, impõem lesões físicas a par de humilhações de toda sorte, que comprometem a dignidade das vítimas, em geral cidadãos desprovidos da proteção das leis.
Policial à paisana agride dependente de crack em São Paulo - JF Diório/Estadão
JF Diório/Estadão
Policial à paisana agride dependente de crack em São Paulo
A resposta do poder público, em momentos de crise e de intensificação dos conflitos, tem sido reprimir, com igual ou superior violência, as diferentes modalidades de crime. É forçoso reconhecer que um conjunto de iniciativas procura regular as intervenções policiais nos marcos do Estado de Direito e da política de proteção dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, busca melhorar as condições do trabalho policial e a comunicação entre polícia e sociedade mediante a criação de conselhos de acompanhamento de operações e de redução da letalidade tanto contra civis quanto tendo por vítimas os policiais. Intensificou-se também o intercâmbio entre governantes, policiais e agências da sociedade civil, como centros de pesquisa. É inegável a melhoria da qualidade das estatísticas oficiais, ainda que haja muito a ser feito.
Nessa linha de orientação, o governo de São Paulo anunciou um conjunto de medidas buscando valorizar o trabalho policial. Entre elas estão um plano de carreira para os policiais militares, benefícios salariais, a contratação de pessoal para funções administrativas com o propósito de liberar policiais para as atividades-fim e um plano de promoções e incentivos para melhorar o desempenho de cada agente com o propósito de redução de crimes contra o patrimônio, notadamente os roubos.
Embora essas medidas sejam louváveis, há reservas quanto à eficácia. Problemas centrais permanecem intocáveis. A formação policial enseja uma concepção muito distinta da que existe nas academias de polícia. Seria preciso investir em formação universitária especializada, evitando-se o viés bacharelesco que domina o ingresso nas carreiras superiores das corporações militar e civil. Um plano de carreira deve ser pensado nos termos em que foram formulados por outras categorias.
A formação deve contemplar, sim, conhecimento especializado em problemas de segurança. Mas segurança, em nosso mundo contemporâneo, não se reduz a caçar bandidos ou prender delinquentes. É preciso uma formação qualificada que habilite o policial nas ruas a compreender, decifrar e interpretar os cenários sociais que demandam sua intervenção, respeitando tanto as regras do Estado de Direito quanto as singularidades sociais e culturais dos atores que protagonizam acontecimentos violentos.
No mais, um dos objetivos estratégicos de toda política de segurança é enfrentar a impunidade. Estudo do NEV/USP acompanhando cerca de 340 mil boletins de ocorrência revelou que somente 6% dos registros se convertem em inquérito policial. Para apenas 60% dos registros de homicídio foram identificados os respectivos inquéritos. A investigação privilegia crimes de autoria conhecida, que representam 10% de todos os crimes observados na pesquisa. O filtro decisivo da investigação policial está na Polícia Civil, com suas baixas taxas de esclarecimento de casos. Na cadeia do fluxo do sistema de Justiça criminal, muitos inquéritos nem sequer instauram processos penais. Tudo indica que, quanto maior a impunidade, menor a confiança dos cidadãos nos agentes encarregados de assegurar a ordem pública, o que, por sua vez, estimula a adoção de medidas privadas e subjetivas para garantia de segurança pessoal.
Portanto, o problema não é punir mais e com maior intensidade, mas cuidar para que todo crime seja investigado, que a todo cidadão indiciado seja facultado seu pleno direito de defesa e a sentença judicial resulte do devido processo legal.
Por essas razões, um plano para a segurança pública requer o cumprimento de duas exigências estratégicas. Primeiro colocar sobre a mesa de negociações, com o apoio da sociedade civil organizada, todos os atores envolvidos no controle do crime e da violência - policiais civis e militares, promotores, juízes, administradores das prisões -, de forma que o sistema de Justiça criminal possa funcionar com fluxo regular e monitoramento, facultando inclusive a aplicação de medidas alternativas à prisão. Segundo, transformar políticas de segurança em políticas de Estado para que as ações planejadas para médio e curto prazo sejam executadas por sucessivos governos, independentemente das bandeiras partidárias. Para isso, a colaboração entre governos federal, estaduais e municipais é peça tática. Ela teria evitado, por exemplo, a intervenção violenta e desastrosa da Polícia Civil na Cracolândia, justamente quando estava em andamento ação do poder público municipal com grande expectativa de êxito.
SÉRGIO ADORNO É SOCIÓLOGO, COORDENADOR DO NEV/USP E DIRETOR DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS