Pipoqueiro por 32 anos do antigo Cine Belas Artes, Josafá se prepara para voltar à cena com a reabertura do espaço
25 de janeiro de 2014 | 15h 33
Vivian Codogno - O Estado de S. Paulo
A panela está fumegante. No carrinho, palha de milho, azeite, margarina. Para adoçar o fim de tarde, coco caramelizado e amendoim com casquinha de chocolate. Tem também a castanha de caju com manteiga e azeite, receitinha caseira. O milho custa R$ 4 ou R$ 5, conforme o tamanho. O vaivém não para. A saída da Estação Paulista do metrô indica que ali, na Rua da Consolação, há muitas pernas para pouco espaço.
Evelson de Freitas/Estadão
O paraibano que hoje vende milho cozido, quer voltar ao estou das pipocas: 'Fazia R$ 250 por dia'
Se a freguesia é boa, o dono do carrinho, Josafá Batista de Sena, já viu movimento maior no ponto em que esteve durante 32 anos, a poucos passos, no número 2.423 da mesma Rua da Consolação. Lá funcionava o histórico Cine Belas Artes, nas portas do qual Josafá exerceu seu ramo de especialidade – a pipoca – e o faturamento, conta, estourava que era uma beleza.
É a reportagem do Aliás a portadora da boa nova – confirmada essa semana – da reabertura do cinema. Josafá tira o boné, olha para cima e, ainda sem acreditar muito, exclama: "Se Deus quiser!" Há quase três anos, quando o Belas Artes fechou, ele precisou mudar de ponto e, ligeiramente, de especialidade – ainda o milho, mas cozido. Seu rendimento mensal sofreu um corte seco. Hoje, diz que consegue levar para casa por volta de R$ 100 por dia. Mas nos anos de ouro da pipoca, garante que em dias bons faturava até R$ 250. Josafá nem precisa pensar muito diante da perspectiva de redobrar seu faturamento mensal: "Se eu vou voltar para lá? Lógico! Meu ramo é pipoca. Se precisar, trabalho lá das 11h às 23h", se empolga, de jaleco azul com o símbolo do Corinthians bordado atrás.
Faltam apenas alguns detalhes para que a parceria entre a Caixa Econômica Federal, o novo patrocinador, a Prefeitura de São Paulo e o diretor do Belas Artes, o cineasta André Sturm, seja firmada. Os valores dos contratos ainda não foram divulgados e a previsão para a reabertura é entre maio e junho próximos. Com o nome Caixa Belas Artes e uma sala direcionada à exibição de filmes produzidos em São Paulo, a esquina da Rua da Consolação terá novamente seu Cinema Paradiso paulistano, que tanta saudade traz a Josafá. Sturm faz questão de frisar que o cinema voltará em grande estilo, para alegria dos cinéfilos da cidade: "Estamos afinando os últimos detalhes. O prédio está razoavelmente em bom estado, mas faremos uma reforma geral para modernizá-lo".
Naquele dia 17 de março, depois de diversas tentativas de negociação, O Águia (EUA, 1925), clássico do cinema mudo dirigido por Clarence Brown e estrelado por Rodolfo Valentino, era exibido pela última vez na Sala 5 do Belas Artes. O diretor do cinema não conseguia bancar o aumento de R$ 85 mil para R$ 150 mil no aluguel do prédio, exigido pelo proprietário, e teve que entregar o imóvel. Curiosamente, foi durante os créditos finais que Josafá desempenhou seu melhor papel: "Durante todo o tempo em que trabalhei lá, a época em que mais vendi pipoca foi quando o Belas Artes estava para fechar. Um estouro! As filas chegavam até a calçada todos os dias", relembra, com brilho nos olhos.
Embora o pipoqueiro nunca tenha sido um frequentador das salas de exibição, quando sobrava um tempinho entrava e assistia a um ou outro filme, convidado pelos funcionários da bilheteria. Lembra de ter visto Pixote, de Hector Babenco, e, por duas vezes, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. "Cada filmão! E tudo na faixa. Mas eu não tinha muito tempo não. Minha vida é trabalhar, minha filha. Tanto que nem sei dizer se gosto mesmo de filme. E se é pra ver, que seja comédia e me faça rir."
Em 1967, quando o Belas Artes foi inaugurado, Josafá completava 5 anos de idade em Bananeiras, na Paraíba, sua cidade natal. Foi só em 1979, época em que os governos militares ainda ditavam as regras no Brasil, que o pipoqueiro estreou sua primeira sessão em frente ao Belas Artes. Havia chegado fazia pouco em São Paulo, escondido dos pais, pois sonhava conhecer a capital. Aos 17 anos, magrinho, com corte de cabelo mullet, começou vendendo doce de coco. Precisou enfrentar a concorrência dos ambulantes mais antigos, que o botavam para correr. Morava em Cotia e vinha para São Paulo todos os dias. O carrinho ficava na garagem de um prédio vizinho, por camaradagem do síndico. Hoje, com 52 anos, Josafá é zelador desse mesmo prédio e, em troca, mora em um apartamento sem pagar aluguel desde que se divorciou, em 2004. As fotos das três filhas, Isabella, de 18 anos, e as gêmeas Rafaella e Gabriella, de 15, ficam na carteira.
Nas três décadas de trabalho na Rua da Consolação, Josafá pôde testemunhar, além das mudanças que puseram fim à ditadura no País, o incêndio que destruiu duas das salas do cinema, em 1982. Nunca foi possível esclarecer a origem do fogo, mas no primeiro andar, na sala da gerência, foram encontrados um maçarico e um cofre com sinais de arrombamento, o que indica que o incêndio pode ter sido criminoso. Josafá não sabe dizer o que causou as chamas, mas à época, como agora, durante o fechamento do cinema, soube se virar: durante a reforma do prédio, vendia quentinhas para os operários. No ano seguinte, o Belas Artes foi reinaugurado com seis salas, formato com o qual permaneceu até seu fechamento.
Nos anos 1980, em uma época em que a escolha do cinema esbarrava na importância de ver e ser visto, o Belas Artes se tornou uma referência cultural para São Paulo. As filas para as sessões dobravam a esquina e muitos espectadores ficavam do lado de fora. Por causa dessa movimentação, não era difícil encontrar os próprios atores e diretores dos filmes estrelados na casa. Intelectuais, artistas e formadores de opinião também marcavam presença.
Durante os 32 anos em que trabalhou na frente do cinema, Josafá conviveu com visitas ilustres que passaram por ali. "Silvio Santos, Paulo Autran, Carla Perez, Raí. Se eu te disser para quantos famosos eu já vendi pipoca! Isso aqui era cinema de gente da alta! Até as filhas do Abílio Diniz frequentavam", conta. "Eu tinha um caderno de 120 páginas com autógrafos que peguei aqui. Pena que perdi..."
O pipoqueiro teve a honra de contracenar com alguns desses famosos na calçada da Consolação. Olhar distante, ele se recorda, com carinho, de quando vendeu pipoca para o ator Tarcísio Meira. "Quando ele chegou perto do carrinho, um monte de gente rodeou ele para pedir autógrafo. Vendi pra todo mundo. Ele até brincou que ia pedir uma comissão por ter enchido o meu carrinho de gente."
A bilheteria e a bombonière do cinema nunca aceitaram pagamento em cheque, e Josafá estava sempre a postos para a ajudar. Trocava cheques e recebia uma caixinha extra, muitas vezes de pessoas famosas. Depois, o pipoqueiro aproveitava para alimentar o imaginário afetivo dos que não tinham, como ele, a oportunidade de estar tão perto de ídolos tão distantes: "Sabe o que eu fazia? Eu não descontava os cheques e vendia aos fãs. Uma vez vendi um cheque do Raí para um são-paulino roxo. Pelo que sei, ele não descontou até hoje. Mandou até plastificar". E ri até os olhos ficarem pequenos.
Outro espetáculo à parte para Josafá era o comportamento dos frequentadores. Da calçada, o pipoqueiro se distraía a observar a fauna humana entre as filas de bilheteria e as salas de exibição. Testemunhou inícios de namoro e fins de casamento de gente que ele não conhecia. "Eu via cada coisa! Teve uma briga de casal em que a discussão começou já na fila da bilheteria. A moça tirou o sapato e bateu na cara do namorado, imagina só. Depois, ela correu para o estacionamento, que era aqui ó (aponta para a loja Pernambucanas) e ele veio atrás. Dali a pouco já estavam voltando, abraçadinhos. Cada coisa!"
O Belas Artes daqueles dias era o resultado do trabalho e da dedicação de muita gente. Antes da nova gestão, em 2005, o cinema já se encontrava a ponto de encerrar as atividades. A programação não tinha personalidade, os equipamentos eram sucateados, frequentadores buscavam alternativas na Avenida Paulista. Quando André Sturm assumiu, em parceria com a produtora O2 Filmes, do diretor Fernando Meirelles, e com o patrocínio do banco HSBC, o cinema voltou ao prumo. E as salas viviam repletas de um público ávido por filmes como Medos Privados em Lugares Públicos, do diretor francês Alain Resnais, que ficou em cartaz por dois anos no cinema.
Josafá se diz amigo dos antigos funcionários até hoje, mesmo que se refira eventualmente ao "menino", "aquele moço", "o senhor da livraria", "a mocinha da bilheteria". De Sturm, ele se lembra da despedida. "No dia em que o cinema fechou, a mãe do seu André pediu para tirar uma foto comigo." Mas é ao falar de outro deles que o pipoqueiro se emociona de verdade: o relações públicas Fernando Pereira, que também trabalhou no cinema até seu fechamento. Meses depois de o Belas Artes fechar, o funcionário cometeu suicídio. "Fernando era muito amigo meu. Ele sempre me dava conselhos quando me separei da minha mulher. Fiquei tão sentido quando descobri que ele foi embora... Era depressivo, mas um cara muito criativo. Eu falava, ‘Fernando, parece que você tem quatro cérebros’."
Já é noite e o vendedor de milho cozido decide levar seu carrinho até a esquina da Avenida Paulista, que está mais bem iluminada. Nos poucos passos até lá, ele para em frente ao Belas Artes e lamenta o abandono que toma conta do prédio. Toca com as mãos a porta de tapume escuro que hoje veda a entrada e lamenta: "Parece um banheiro público". Mas logo retoma o sorriso e, sonhando com o dia em que verá essas portas abertas novamente, segue para onde as luzes estão acesas. Os créditos não sobem, pois o filme ainda não terminou.
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