segunda-feira, 10 de junho de 2013

Eu, cidadã


Alijada da campanha do Ministério da Saúde, a prostituta Nilce segue na luta contra as DSTs e pelo orgulho da classe

08 de junho de 2013 | 16h 40

Elder Ogliari, Porto Alegre
PORTO ALEGRE - Na fila e dentro do elevador de um edifício comercial do centro de Porto Alegre, Nilce Machado, 53 anos, é uma mulher discreta. Sua presença talvez fosse percebida se as centenas de pessoas que passam pelo local todos os dias se dessem conta de que ela esteve no centro de uma polêmica que levou três diretores do Ministério da Saúde a deixarem seus cargos durante a semana e pôs o próprio titular da pasta, Alexandre Padilha, sob uma série de críticas de organizações voltadas à defesa dos direitos humanos. Mas notoriedade é algo que não lhe interessa. Ela vai ao local quase todos os dias por uma causa. Como presidente do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) atua na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, na defesa dos direitos civis e no incentivo à autoestima das profissionais do sexo, como ela.
Nilce luta pelo orgulho da classe - Ramiro Furquim/Estadão
Ramiro Furquim/Estadão
Nilce luta pelo orgulho da classe
Foi nessa condição que Nilce foi a João Pessoa (PB) em março, a convite do Ministério da Saúde, para participar da produção de material de divulgação de medidas de prevenção da saúde de populações específicas e autorizou o uso de sua imagem e de uma frase que vive repetindo - "Eu sou feliz sendo prostituta" - para uma campanha destinada a reduzir o preconceito contra as prostitutas e orientá-las sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. A peça chegou a aparecer no portal do ministério em datas próximas ao Dia da Prostituta, 2 de junho, mas foi retirada da internet no dia 4 por decisão de Padilha. O diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do ministério, Dirceu Greco, foi exonerado. Em solidariedade, os diretores adjuntos Eduardo Barbosa e Rui Burgo pediram demissão na quarta-feira.
"Fiquei aborrecida", revela Nilce, ao falar da atitude do ministro. "Saí de minha casa, fui lá, não me omiti e, se fui como profissional do sexo, em campanha para um público específico, não entendo por que não posso falar sobre prostituição", prossegue, afirmando que não estará mais disponível para campanhas do órgão. E quanto à frase que provocou a polêmica, confirma tudo. "Sou prostituta e feliz porque adquiri muito conhecimento, é na profissão que consigo ajudar minhas colegas, ganho meu dinheiro, não tenho patrão, faço meu horário, tenho minha liberdade, cuido da minha saúde", relaciona. "Além disso, tenho uma bela família que me aceita como sou, prostituta e feliz", repete.
Até chegar à condição de militante da causa, Nilce percorreu um caminho de perdas e trabalho precoce, amores desfeitos e muita determinação para preservar sua característica independência. Nascida em Três de Maio, no oeste do Rio Grande do Sul, ficou órfã de mãe aos 9 anos e de pai aos 11 anos. Depois de morar na casa de tios por algum tempo, alugou uma casa com uma irmã e uma colega, aos 14 anos. E estudou até concluir o ensino médio. Apesar da pouca idade, passou a trabalhar como ajudante de limpeza de um supermercado. Saiu de lá quando era gerente, aos 18.
Quando deixou o supermercado, foi morar em Horizontina. Já era mãe da primeira filha, que decidiu criar sozinha depois de flagrar uma traição do namorado durante a gravidez. Em menos de um ano mudou de cidade de novo e foi para Campo Bom, no Vale do Rio dos Sinos, trabalhar na indústria calçadista. Lá teve outro namorado e a segunda filha, que o pai assumiu somente quando a criança tinha 6 meses. Depois de cinco anos na linha de produção de sapatos e tênis, decidiu deixar as filhas morando com o pai e os avós, que haviam mudado para Campo Bom, e foi procurar emprego em Porto Alegre.
Na capital, a vida de Nilce deu mais uma guinada. De uma troca de olhares em um terminal rodoviário urbano nasceu uma paixão. Em pouco tempo, o namorado sugeriu que ela fizesse programas. Depois de alguma relutância, topou e fez de uma esquina da rua Vigário José Inácio seu ponto. O primeiro cliente foi um homem de 65 anos. "Me senti estranha, mas no dia seguinte fui de novo e nunca mais saí", recorda. "Ali eu ganhava dinheiro e levava para minhas filhas."
A história com o gigolô durou sete anos. Depois teve outra, com um cabeleireiro, que durou nove anos, até ele morrer. Nesse período Nilce adquiriu um terreno em Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, fez sua casa e levou as filhas para morar com ela. Hoje não quer mais ter marido, mas diz que forma uma família feliz, em meio às duas filhas, dois genros e três netos. Não tem muito contato com vizinhos, mas frequenta um centro espírita na comunidade e dedica todo o tempo livre a cuidar dos netos.
As atividades profissionais estão ambientadas a 15 quilômetros de casa. Nilce deixa Eldorado do Sul e vai para o lado leste do Guaíba, trabalhar de segunda a quinta-feira à tarde na remodelada Praça da Alfândega e em hotéis e motéis de Porto Alegre, longe do lar. "Prefiro homens de mais de 35 anos e não gosto de sair com rapazes, porque eles querem mais sexo e eu quero mais conversa e dinheiro", revela. Por um mínimo de R$ 50 o cliente sabe que terá sexo convencional - Nilce não trabalha com fetiches - e pelo menos um bom papo, mas nunca na casa de Nilce nem na do cliente.
"Como prostituta me sinto como uma psicóloga", valoriza. "Os clientes me procuram, vamos ao hotel e às vezes nem fazemos sexo; eles falam de seus problemas, demonstram preocupações com possível envolvimento dos filhos com drogas, desabafam, pedem conselhos, porque sabem que eu tenho conhecimento de prevenção de doenças."
Foi na mesma Praça da Alfândega, no final dos anos 1980, que Nilce percebeu que tinha de lutar por cidadania e pela união da categoria. Em uma batida da Brigada Militar ela não correu como suas colegas, como era costume na época, e por birra de um policial ficou algemada por quase toda uma tarde. "Fiquei lá, parada, pensando: ‘Se um dia a Princesa Isabel libertou os escravos, um dia isto aqui também vai mudar’".
Naqueles tempos em que surgiam as primeiras organizações de apoio e prevenção contra a aids, as prostitutas se organizaram em torno do NEP. Desde então a militância conseguiu muitos avanços. Nilce cita a conscientização para o uso da camisinha, que bloqueou não apenas as doenças sexualmente transmissíveis como também reduziu sensivelmente o número de abortos entre as profissionais. "Hoje, quando uma mulher é infectada quase sempre é pelo contato com namorados, e quase nunca por relações com clientes."
"O NEP foi criado para a prevenção, mas logo percebemos que teríamos de trabalhar também contra a violência e a discriminação", recorda Nilce. Os problemas não estão resolvidos, mas hoje a violência é menor do que há 25 anos porque a polícia não costuma mais bater em prostitutas nas ruas, e elas podem denunciar violações que sofrem. "A discriminação também diminui: as pessoas já não fazem chacota quando passam por nós", diz a presidente do NEP.
Nilce afirma ainda que, como ela, muitas prostitutas passaram a ter orgulho da profissão. Entendem que ajudam a sociedade disseminando a cultura da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, e isso melhora sua autoestima. "Assumimos nossa cidadania", conclui.
  

Refém do corpo (sobre o aborto)


Mesmo sob risco de morte, jovem salvadorenha não pôde fazer aborto seguro no tempo certo

08 de junho de 2013 | 16h 34

Debora Diniz *
A ligação não era um convite, mas uma intimação. "Você precisa embarcar imediatamente. Beatriz corre risco de morte e tentaremos convencer a Corte Suprema de El Salvador a mudar a decisão contrária ao aborto." Até então, Beatriz era uma mulher sem rosto cuja história me mobilizava pelo sofrimento; naquele instante, passou a ser parte de minha vida. Imaginei sua solidão em uma cama de hospital, longe do marido e do filho de 1 ano - o lúpus ameaçava a sobrevida de seu corpo grávido, os rins anunciavam falhar. A voz ao telefone era gentil, mas se postulava como uma ordem: especialistas falariam aos juízes da Corte Suprema no julgamento dali a dois dias. Eu deveria me manter em silêncio sobre a viagem. Sob a credencial de especialista em bioética, meu dever era traduzir o óbvio em argumentos éticos. Ao final da ligação, uma pergunta me perturbava: no que acreditavam os que sentenciavam Beatriz à morte?
Salvadorenha não pôde fazer aborto seguro - Juan Carlos Hidalgo/Efe
Juan Carlos Hidalgo/Efe
Salvadorenha não pôde fazer aborto seguro
Saí à procura de seus argumentos. O primeiro que encontrei como porta-voz dos direitos do feto foi o arcebispo de São Salvador, José Luis Escobar. Sua voz recitava o mantra do medo: "Nos preocupa que o caso dessa jovem seja a porta para legalizar o aborto em El Salvador". O aborto é um absoluto moral segundo a Constituição Federal daquele país, um dos cinco da América Latina com leis tão restritivas, após uma reforma conservadora em 1999. A prática é proibida em todas as circunstâncias. A morte ou o parto seria o destino daquela mulher confinada ao hospital.
Encontrei um país dividido: ou se estava do lado da Igreja Católica ou contra ela. A excomunhão era uma ameaça franca ao burburinho político. Não sei se por prudência ou por arrogância, a corte indeferiu a participação dos especialistas. Isso foi no dia 10 de maio. Somente no dia 3 de junho Beatriz se submeteria à cesárea para não morrer grávida.
A peregrinação de Beatriz pelas autoridades teve início quando ainda estava com 13 semanas de gestação, logo após ter recebido o diagnóstico da malformação letal no feto. Nessa fase da gravidez, o aborto teria sido um procedimento médico de baixo risco para sua saúde e, possivelmente, realizado com medicamentos. Entre as vozes internacionais a pressionar El Salvador estava Juan Méndez, relator da ONU sobre tortura, que declarou a urgência de o país rever a legislação de aborto.
O caso perdeu-se pelas cortes locais e alcançou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que optou por um caminho ambíguo no pronunciamento - sustentou que El Salvador deveria evitar danos irreparáveis à vida e à saúde de Beatriz, mas evitou afirmar o direito ao aborto como medida para salvar sua vida. A espera foi torturante para Beatriz, mas um alento para um país amedrontado pelo dogma. A mesma ciência incapaz de acalmar os espíritos que acreditam que células recém-fecundadas são uma vida inviolável é que demarca a fronteira entre aborto e parto. Beatriz não soube como resistiu à espera sem sentido; era preciso superar a barreira das 20 semanas de gestação para o procedimento médico mudar de nome. Com 27 semanas, submeteu-se a uma cesárea e a uma ligadura tubária. O feto sobreviveu cinco horas fora de seu útero.
Não conheci Beatriz. Nunca vi o seu rosto, só ouvi sua voz. Beatriz gravou um depoimento emocionado em que choramingava "eu quero viver pelo meu outro filho". Era um pedido de socorro de uma mulher desesperada e desencarnada pela maternidade: ser mãe era o que a animava a viver, mas também o que justificava a sentença de morte imposta pelo Estado. Beatriz nem sequer se imaginava digna de viver por si mesma - seu pedido de socorro era pelo filho. Imagino-a uma mulher refém do próprio corpo, estrangeira no país que já a marginalizava pela pobreza. Agora, é mártir de uma história que não escolheu viver em um corpo doente, marcado pela lei e pelo pecado. Perturba-me imaginar como será a vida de Beatriz após sua saída do hospital.
Os grupos religiosos a descrevem como uma mulher mãe de dois filhos: o que espera seu acolhimento e o que foi enterrado como atestado da inutilidade da espera. Nessa longa jornada até a cesárea, planejou-se levar Beatriz para o México ou Espanha, países que a acolheriam como refugiada em procura da sobrevivência por um aborto seguro. A vida concreta de Beatriz é o que existe antes e depois dessa triste história. Imagino que ela esteja se preparando para voltar à vida comum de uma mulher pobre do interior de El Salvador, um dos países mais miseráveis da América Central - casa, família e trabalho voltarão a ser sua rotina. A mártir nacional, a mulher que acendeu a ameaça da excomunhão, será esquecida por quem se lançou no seu caminho como defensor da vida do feto. Mas Beatriz não é um dogma, é uma mulher concreta. Beatriz não é uma assassina, apenas queria manter-se viva. Ela sentiu medo, suplicou pela vida e esperou. Aos 22 anos, é uma sobrevivente.
* DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

sábado, 8 de junho de 2013

No teto da meta - CELSO MING

ESTADÃO - 08/06

Se prosseguir na venda de ilusões, o governo Dilma dirá, como tem dito, que a inflação de maio (0,37%) foi mais baixa do que a de abril (0,55%); que a alta dos alimentos desacelerou com força e que, por isso, estamos melhorando e tal.

No entanto, a inflação em 12 meses (6,5%) está no gargalo da garrafa e vai saltar para cima desse nível pelo menos nos próximos três meses. Os efeitos da desoneração da cesta básica já não atuarão sobre a inflação e há os reajustes da condução que começam a pesar.

Embora um pouco mais contida, a alta continua espalhada demais, na medida em que 63% dos itens que compõem a cesta do custo de vida apresentaram elevação em maio. Enfim, como aponta o Banco Central, a inflação segue resistente, dizimando o poder aquisitivo.

Se estiver realmente empenhado em virar esse jogo agora adverso, o primeiro passo é admitir a deterioração da economia e tratar de colocar a composição nos trilhos.

Sempre há aqueles que argumentam que o setor fiscal (contas públicas) está melhor do que em tantos países modelos do mundo; que os juros básicos estão elevados demais quando se comparam com os praticados lá fora e, por isso, teriam de cair; que o Brasil estoca respeitável volume em reservas, de US$ 374 bilhões; e que, embora venha decepcionando, a atividade econômica avança mais do que na maioria dos países ricos, há cinco anos mergulhados na estagnação.

A atual combinação de políticas vem produzindo fiascos sucessivos quando comparados com os objetivos propostos: crescimento do PIB provavelmente na casa de 2% neste ano, em vez de 4% a 4,5% ao ano; inflação para além dos 6% ao ano, em vez do limite de 4,5%; derrubada do superávit primário (sobra de arrecadação para pagamento da dívida) em vez dos 3,1% do PIB; e rombo crescente nas contas externas (saldo nas Transações Correntes) em vez da relativa estabilidade.

As depredações de quinta-feira na Avenida Paulista em protestos contra a alta das tarifas da condução e o anúncio da perspectiva de rebaixamento da qualidade dos títulos de dívida do Brasil pela Standard & Poor’s são parte do mesmo quadro deteriorado que, felizmente, está longe do que acontece na Argentina, mas que, infelizmente, por lá começou também assim.

Por enquanto, apenas o Banco Central mudou de comportamento, antes complacente demais. O resto da administração Dilma parece paralisado, em parte porque não aprendeu a livrar-se dos mata-burros ideológicos e, pelos quatro cantos, vê a ação conspiratória dos neoliberais e “da finança internacional” e, em parte, porque não sabe ainda o que fazer.

Até que ponto o aperto da política monetária (política de juros) será capaz de conter a inflação? Se o Banco Central ficar sozinho na empreitada, poderá alcançar algum sucesso, mas terá de puxar os juros sabe-se lá para que alturas. Falta saber se o governo está disposto a calibrar sua política fiscal nessa direção.

Falsa impressão. Pode ficar a impressão de que esses números estão relativamente estabilizados. Não estão. É uma inflação muito alta e persistente, em parte porque não há como trazer do exterior a maioria dos serviços. Com isso, os mecanismos da concorrência demoram mais a entrar em ação. Nesse campo, as duas únicas forças capazes de conter a alta são a puxada dos juros e a própria inflação que corrói o poder aquisitivo.