Inteligência coletiva é o termo usado para descrever como nenhum indivíduo, por si só, consegue produzir algo simples como um lápis, enquanto um grupo pode criar um computador quântico. Trata-se de uma contrapartida à estupidez coletiva, que se refere ao fato de que um indivíduo isolado não consegue perpetrar um genocídio, mas em grupo pode ser capaz de fazê-lo.
Uma forma de avaliar o funcionamento das diferentes sociedades é comparando as relações estabelecidas entre pensamento individual e coletivo, especialmente no domínio da solução de problemas (inteligência). Em partes do mundo em que a agricultura tradicional exigia maior coordenação, como no cultivo do arroz, a influência do pensamento coletivo sobre o individual tende a ser mais forte do que em partes do mundo onde a agricultura tradicional exigia menor coordenação, como no cultivo do trigo, ainda que essa diferença esteja se atenuando, já que a agricultura foi mecanizada e as sociedades, urbanizadas.
O mesmo raciocínio aplica-se às gerações. As formas de pensar coletivamente mudam ao longo do tempo. Contar essa história é essencial para entender o momento em que vivemos e antever tendências. A ideia do artigo de hoje é tratar de um pequeno recorte dentro desse tema.
Primeiro, é importante notar que nos últimos 20 anos houve uma mudança na compreensão do pensamento coletivo e, especialmente, da inteligência coletiva. A visão em alta hoje em dia é que essa é a única forma de inteligência existente.
A versão individualizada, que os psicometristas avaliam por meio de testes, é em si uma construção social —não no sentido de ser uma invenção da sociedade industrial capitalista, como se argumentava no século 20, mas porque toda forma privada de inteligência resulta da capacidade do indivíduo de se apoiar nos conhecimentos acumulados por outros para compreender o mundo e agir estrategicamente.
Isso é verdade desde os níveis mais fundamentais. Por exemplo, ao nascer em uma comunidade de falantes, o bebê direciona a expressão de genes em seu cérebro para a rápida aquisição da linguagem. A sociedade fornece os recursos necessários à forja do cérebro verbo-ideativo do bebê, que precisa apenas captar os sinais emitidos pelo ambiente para dar esse salto. Isso explica porque a falta de estímulos precoces pode causar danos comunicativos irreversíveis.
O princípio fundamental nessa ideia de que o social cria o individual, embora seja criado por ele, é o ganho de informação —uma ideia que expressa o fato de que algo irredutível às partes surge da relação entre elas. Neurônios são como pequenos computadores, simples e estereotipados, mas a interação entre bilhões deles gera fenômenos como a consciência, que possui mais informação ou "sofisticação" do que os processos neurológicos subjacentes, razão pela qual ela nos parece misteriosa.
O mesmo ocorre em uma colônia de insetos, que alguns chamam de cérebro líquido. "Não há uma distinção clara entre as mentes coletivas e as centralizadas, como as possuídas pelos animais complexos" (McMillen e Levin, 2024).
Inteligência coletiva é isto: ganho de informação em nível fundamental. O surgimento da web (1993-) provocou um verdadeiro frenesi em torno dessa ideia. Pierre Levy, autor de um livro homônimo muito famoso, argumentou que "o papel da tecnologia da informação não é substituir a espécie humana, mas construir comunidades de pensamento" (Levy, 1997).
Sua visão ganhou força a partir da virada do milênio, como exemplificado pela Wikipedia (2001): inicialmente desacreditada por acadêmicos e empresas de enciclopédia, em poucos anos tornou-se qualitativamente equivalente aos seus concorrentes de mercado, que foram forçados a se reinventar.
Outra inovação da primeira década que fez uso paradigmático da inteligência coletiva é a chamada ciência cidadã, conjunto de projetos destinados a incentivar cientistas amadores a identificar asteroides em imagens de baixa resolução, entre outras formas de tagueamento. Dezenas desses projetos estão disponíveis na internet atualmente, embora sua importância prática tenha diminuído.
Essas inovações ocorreram paralelamente ao surgimento dos mercados preditivos digitais, blockchain e da própria economia compartilhada (Uber, Airbnb etc.), que gera valor a partir de ganhos informacionais similares com suas estratégias de avaliação.
Alguns anos depois (2018-2021), a inteligência coletiva entrou em um novo ciclo, marcado por tentativas que (ainda) não vingaram. A primeira ficou conhecida como web 3.0 e se refere ao uso da tecnologia blockchain para produzir plataformas digitais que não têm donos e não podem ser derrubadas por governos autoritários. O exemplo favorito dos entusiastas é o da rede social cujo software está nos notebooks dos usuários, que têm participação acionária na mesma, em um contexto em que essa participação permite votar para decidir mudanças de rumo e tudo mais.
Existem duas vantagens paralelas à resistência à censura nesse modelo: (1) teoricamente, a lógica de funcionamento não pode ser direcionada à geração de efeitos nocivos aos usuários; (2) é possível incorporar continuamente os insights oriundos da inteligência coletiva da "comunidade". No entanto, é um modelo complexo e trabalhoso, que pode ser manipulado pelos usuários que têm mais interesse, recursos e energia, revertendo o ganho de função.
A segunda novidade desse ciclo é o metaverso/omniverso, que deveria facilitar a colaboração em problemas complexos, gerando ganhos de função. A promessa era que uma cidade planejada, por exemplo, poderia ser modelada por vários participantes, em uma espécie de videogame do mundo real, usando realidade virtual para percorrer o espaço e criar as redes de gás, luz, água e esgoto, as ruas, jardins, escolas públicas, entre outros elementos.
Essa forma de catalisar a inteligência coletiva não prosperou porque depende de tecnologias que ainda não estão disponíveis, exceto em contextos muito especializados, como na eletrônica automobilística e no treinamento de unidades especiais das Forças Armadas de alguns países.
O momento atual é marcado por um novo ciclo da inteligência coletiva. Quando empresas como OpenAI e Google acessam a produção intelectual disponível e treinam algoritmos para criar textos, imagens ou vídeos a partir disso, na prática, transmitem para um ente externo aquilo que os insetos involuntariamente transmitem à colônia e as pessoas voluntariamente transmitem à Wikipedia: ganhos informacionais em relação ao que entra na mistura. De uma pilha de arquivos armazenados, eis que surge o maior sabichão do mundo.
Ocorre que os processos que costumam gerar ganho de informação também podem produzir o contrário. As formigas coordenam seu movimento usando feromônios. Por vezes, um punhado delas se desgarra e estabelece uma segunda ordem, anômala. Os pobres insetos passam a andar em círculo, seguindo uns aos outros, até morrerem de exaustão.
Existem vários círculos viciosos desse tipo nas IAs generativas. Os mais recentes envolvem o novo recurso de voz do ChatGPT, que, em certas circunstâncias, reproduz a voz do próprio usuário, assim como a formiga que perde a referência coletiva e segue quem não deveria. Essas alucinações não podem ser totalmente eliminadas, o que cria um teto para as IAs atuais. No entanto, essa não é a questão de longo prazo que mais me preocupa.
A psicologia e a sociologia de grupos do século 20 falavam muito sobre consensos de grupo. No entanto, o entendimento atual é que grupos produzem muito mais consentimento do que consensos verdadeiros. As pessoas consentem em agir assim ou assado para fazerem parte, ao mesmo tempo em que mantêm discordâncias íntimas em relação ao status quo. Na fenda que separa essas duas coisas, surgem os movimentos de ruptura, geralmente liderados por indivíduos mais interessados e capazes de vocalizar divergências.
Da mesma forma, grupos não são intrinsecamente incompatíveis com o excepcionalismo intelectual e estilístico dos seus membros, ou ao menos de parte deles, o que é radicalmente diferente do que se observa na relação entre insetos e enxames. Einstein era ao mesmo tempo um físico entre seus pares e um cientista único em seu rechaço ao arcabouço constituído. Todo grande intelectual ou artista compartilha essa dualidade.
A questão mais séria e profunda relacionada à geração de ganhos informacionais pela IA generativa é a sua convergência à mediana (termo central em uma amostra), uma vez que isso está inscrito no procedimento fundamental realizado, que é associar palavras/pixels para que a combinação seja maximamente palatável no domínio da inteligência coletiva já constituída.
A IA generativa é o túmulo do excepcionalismo. Prova disso é que a OpenAI desenvolveu uma ferramenta capaz de prever, com 99,9% de precisão, se um texto foi produzido pelo ChatGPT, coisa que seria impossível se este não fosse criado sobre o chassi de conformidade (se você usa IA generativa em seu trabalho, não se preocupe: é óbvio que a empresa não disponibilizou a ferramenta publicamente).
A produção dessas representações do termo médio intelectual cresce rapidamente, tornando inevitável o uso dos conteúdos gerados pela própria IA no treinamento de suas próximas gerações, o que diminuirá cada vez mais a variância e a excepcionalidade no domínio da inteligência coletiva.
O ser humano descobriu uma maneira de dar autonomia aos ganhos de informação, algo que no futuro vai ser lembrado como uma verdadeira revolução. Por outro lado, o resultado tende a ser um aumento brutal do conformismo intelectual e estilístico, com forte redução do excepcionalismo, exceto na geração de lucro e visibilidade social.
A cultura, passada pelo filtro da IA, torna-se mais e mais homogênea. Temas e palavras são eliminados por seu potencial de gerarem controvérsias, formas fixas de construir raciocínios são entronizadas, e a noção de que as coisas precisam parecer pertinentes, mais do que efetivamente o serem, torna-se cada vez mais hegemônica.
Ao mesmo tempo, o acesso à informação e aos mais variados treinamentos de competências cresce rapidamente, elevando o nível na base da pirâmide sociocultural. Esse é o estágio da inteligência coletiva pelo qual estamos passando e que deve se intensificar nos próximos anos. Contudo, como sempre, será passageiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário