A reinterpretação contínua do passado faz com que ele seja tão incerto quanto o futuro. O passado e o futuro dependem daquilo que as pessoas do presente podem ver. E o que elas veem é com frequência um signo, uma imagem do que desejam para o futuro.
Foi o que se deu com Tiradentes. Não há imagens dele na época em que foi para a forca e esquartejado. Elas foram criadas mais de um século depois, por maus pintores que buscavam dar fundamento histórico à República recém-proclamada.
Como queriam que a República perdurasse, pintaram signos que mostram Tiradentes como seu mártir. Só há pouco se sublinhou que ele não pregou o fim da escravidão; teria sido proprietário de escravos. A percepção do racismo na espoliação atual leva o alferes a ser visto de outro modo.
As cenas da tentativa de assassinato de Trump ilustram o processo de passagem da imagem ao signo, que estabelece um sentido para o futuro. O processo desta vez durou minutos.
Mostrada ao vivo na televisão, a cena fundadora é tumultuada. O líder republicano leva a mão à orelha e se joga no chão. Há estampidos, sustos, alvoroço, pânico, algaravia.
Editada, completada com registros de celulares e interpretada, ela adquire clareza. Trump está com sangue na orelha; procura seu sapato; gesticula; exorta a massa e é empurrado para um camburão.
Vê-se o essencial do episódio, mas o mistério permanece. Sabe-se quem atirou, mas não seus motivos. Ignora-se se como e por que o Serviço Secreto falhou. Não se tem noção das forças sociais que estariam, ou não, por trás do ataque.
Tudo isso foi maná para as teorias conspiratórias que logo vicejaram. Como na facada em Bolsonaro, as imagens em movimento se prestaram a especulações várias, parte delas embasadas em posições políticas prévias, que, desdenhando dos fatos, forçaram conclusões.
Nos Estados Unidos, o predecessor das imagens que atiçam conjecturas foi o filme de Abraham Zapruder, feito em novembro de 1963.
Com 26 segundos, ele mostra a cabeça de John Kennedy explodindo e a primeira-dama, Jacqueline, catando seus miolos na limusine presidencial.
Sessenta anos depois, tudo o mais sobre a morte de Kennedy está em disputa —se Lee Oswald concebeu a emboscada sozinho, ou se foi orientado por castristas, exilados cubanos ou pelo "deep state" americano. Se o matador foi apenas Oswald, era como Adélio, lunático?
O filme de Zapruder não vai além do registro. No caso de Trump, um ícone se cristalizou de imediato. Ele não está nas imagens da televisão, e sim na fotografia de Evan Vucci. Ela fixou a postura que aponta para o futuro.
Estampada na capa da revista Time, a foto exibe Trump com o braço estendido e o punho fechado. Apesar dos filetes de sangue no rosto, ele não se faz de vítima. Protegido pela bandeira americana, triunfa sobre a morte.
A foto serve de contraponto para a capa de outra revista, a Economist, que mostra um andador com o emblema americano. "Não é com isso que se governa um país", diz a manchete.
A figura oculta da ilustração é Biden, o capenga. Fosse ele a tomar tiros, ficaria como no debate com Trump: de boca aberta, aparvalhado, sem entender patavina.
O elemento que dá o caráter de signo à foto de Evan Vucci é o punho fechado de Trump. A origem do gesto é controversa, e há quem recue até a Mesopotâmia para entendê-lo. Mas, nos anos 1930, ele apareceu em duas situações revolucionárias, nas quais foi usado contra a extrema direita.
Na guerra civil espanhola, simbolizou a união dos republicanos na luta contra os fascistas de Franco. Na Alemanha, era o cumprimento de socialistas e comunistas, que o opunham à saudação entre os nazistas —o braço e a mão direita estendidos— e a reverência deles ao Führer: heil Hitler!
Trump se apropriou de uma marca da esquerda para eletrizar seus seguidores. Sem que sua voz fosse captada pelos microfones, a leitura labial atesta que repetiu três vezes um grito de guerra: "lutem!". Será a luta de reacionários contra a democracia, os pobres, os imigrantes, a liberdade.
O republicano não foi o único a recorrer à oratória guerreira. Biden encerrou seu discurso solene sobre o atentado, na Casa Branca, com a frase "que Deus proteja nossas tropas".
Podem ser as tropas militares que impõem a ordem americana ao mundo. Mas podem ser também as tropas do partido de Biden, exortadas a travar uma guerra santa contra seu rival na eleição de novembro. O punho de um e a frase do outro não auguram dias de paz.
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