A recém instituída era das mídias —tão recente que alguns entre nós são testemunhas de um antes—, afetou todas as experiências humanas. As férias, por exemplo, se tornaram paradoxais. Uma vez que as redes são uma modalidade mal disfarçada de trabalho, a própria ideia de recesso ficou comprometida. O trabalho invade todas as horas de lazer sem que seja reconhecido como tal.
O detox das redes sociais nas férias, quando é heroicamente realizado, dificilmente inclui livrar-se do WhatsApp, substituto enlouquecido do antigo telefone. Daí que passamos as férias nos comunicando com chefes e colaboradores, prospectando "jobs" e, acima de tudo, trabalhando para as big techs.
Em tempos nos quais a performance é o grande valor, recessos funcionam mais como pit stop para aguentar outro semestre de trabalho árduo do que como espaço de reflexão.
Mas as férias, ao interromperem o ciclo de rotina previsível —com seus treinos compulsórios, alimentação regrada, sexo com hora marcada—, podem criar, inadvertidamente, algo novo. Com suficiente distanciamento da rotina, a volta pode ser vivida com estranhamento, nos deixando atordoados e, com sorte, nos fazendo questionar. Eu vivo nesse ritmo? Aguento esse tranco todo dia?
A maioria da população não tem férias, tampouco pode se dar ao luxo de questionar uma rotina que serve para garantir sua sobrevivência. Isso não significa que não sonhem e que não lutem por seus sonhos. Aos que têm a seu alcance a realização de mudanças que não comprometam a vida, fica a questão de saber por que seguiriam repetindo uma existência onde o desejo fica escanteado.
Os sonhos humanos vão na contramão das demandas capitalistas que reduzem as relações a trâmites entre produtores e consumidores. Sair dessa lógica é romper um ciclo cada vez mais corrosivo de laços sociais pragmáticos, que foram alçados à medida de sucesso.
O estranhamento e o mal-estar dão oportunidade para a tomada de consciência e, quem sabe, alguma mudança. Não se trata de trocar seis por meia dúzia ao mudar de trabalho para outro com algumas regalias a mais, mas de questionar o próprio objetivo do trabalho. O que buscamos alcançar quando seguimos fazendo o que fazemos? O que nos move?
Essa é a pergunta que me fiz ao assistir Fernanda Montenegro apresentar no teatro sua leitura de Simone de Beauvoir. O que nos move?
A paixão da atriz, exercendo uma profissão quase impossível, se contrapôs aos preconceitos de gênero e de época, ao horror da ditadura, ao desmonte da cultura, à vulgaridade do bolsonarismo e, agora, se contrapõe à inexorabilidade do tempo.
Costumamos pensar nos workaholics como pessoas que adoecem por não conseguirem parar de trabalhar, que sofrem diante dos fins de semanas, das férias e da aposentadoria, incapazes de conviver com os outros, constantemente interpelados pelo trabalho. A pausa os leva à angústia de ter que lidar com as próprias escolhas, frequentemente alienadas. O medo inconsciente de deprimir, ao entrarem em contato com o desejo, os persegue.
Com Montenegro, cuja idade justificaria um merecido descanso, assim como outros movidos pela paixão, se dá o contrário. O desejo está colocado de tal forma que o recesso só serve para mirabolar novos desafios, criar novas formas, ou seja, não se dá como uma parada, mas como maquinação do novo. Não à toa vemos a sideração em torno da sua figura que, para além do reconhecido talento, exemplifica a antítese do que move nossos tempos. Para esses sujeitos, o desejo nunca tira férias.
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