Até mesmo quem acompanha de longe as alterações tributárias aprovadas até aqui ou os projetos de lei que compõem o chamado "Pacote das Reformas Tributárias" deve ter percebido um anseio arrecadatório difícil de disfarçar.
Embora aplicável a todos, alguns dos temas já aprovados como a tributação da renda advinda dos ativos do exterior ou a tributação dos fundos exclusivos, acabam, na prática, recaindo sobre uma parcela reduzida da população brasileira.
Diferente disso, as modificações que se avizinham nas regras do imposto de heranças e doações (ITCMD), essas recairão sobre a integralidade dos brasileiros.
Por se tratar de um imposto de competência estadual, atualmente é permitido aos estados que estes definam as regras e hipóteses de incidência, bases de cálculo e especialmente as alíquotas, desde que seja respeitado um teto máximo de cobrança de até 8%, conforme estipulado pelo Senado Federal.
Hoje, no estado de São Paulo, a cobrança permanece em 4%. Isso até que seja aprovado o PL nº 7/2024, apresentado este ano pelo deputado Donato (PT), o qual prevê a adoção de uma sistemática progressiva de cobrança com aumento da alíquota até o teto máximo de 8%.
Além deste projeto paulista, foi apresentado pelo Senador Cid Gomes (PSB) um Projeto de Resolução no Senado (nº 57) sugerindo alterar este teto de 8% para 16%, permitindo que os estados aumentem suas alíquotas livremente até este novo patamar.
Este projeto nº 57 traz como justificativa à propositura do aumento uma narrativa falaciosa que tem sido ecoada por diversos setores governamentais, independentemente do viés político ou partidário. Segundo o texto do projeto nº 57, a alíquota do ITCMD deveria ser aumentada pois ela estaria muito distante das alíquotas utilizadas em grande parte dos países europeus, como França (60%) e Alemanha (50%), Suíça (50%) e da América do Norte, como os Estados Unidos (40%).
É verdade que a tributação da herança nesses países pode chegar a patamares elevadíssimos, no entanto, convenientemente se esquecem de dizer aos contribuintes brasileiros que a sistemática de cobrança do imposto nesses países comporta uma miríade de isenções e abatimentos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a regra vigente do imposto de herança (Estate Tax) oferece aos americanos um limite de isenção de até $12,9 milhões de dólares por pessoa. A título meramente comparativo, em São Paulo a isenção é de aproximadamente R$ 88 mil reais, no Rio de Janeiro menor que R$ 60 mil reais.
Tanto na França como na Alemanha, as alíquotas máximas do imposto de herança só incidem quando a sucessão é feita em benefício de terceiros (não parentes), havendo uma escala regressiva que privilegia os parentes mais próximos, de modo a desonerar a sucessão entre cônjuges —isenta na França em diversos casos pelas regras do Pacto Civil de Solidariedade— ou entre herdeiros diretos (cônjuges, filhos, netos e bisnetos), como é o caso da Alemanha. Na Suíça, na maioria dos cantões, a isenção é total quando a sucessão ocorre diretamente entre cônjuges ou diretamente entre pais e filhos.
Não se sustenta a narrativa do governo de que o aumento do ITCMD no Brasil teria o condão de equiparar a tributação brasileira aos padrões internacionais, uma vez que os tais padrões internacionais estão muito mais atentos à efetiva capacidade contributiva dos seus cidadãos do que qualquer projeto tributário apresentado pelo governo brasileiro nos últimos anos.
E tem mais. Além de aumentar a alíquota do imposto, os projetos mais recentes mostram que a intenção do governo é mudar também as bases de cálculo para apuração do imposto, forçando ainda mais o aumento da arrecadação.
Em 2020, o governo do Estado de São Paulo encaminhou à assembleia estadual o Projeto de Lei nº 529/2020 que tratava, dentre outros assuntos, da alteração na forma de apuração do valor das quotas (ou ações) de empresas para efeitos do ITCMD paulista.
Pela regra vigente da legislação paulista, no caso de herança ou doação de quotas de empresas que não tenham sido objeto de negociação recente, a alíquota de 4% deve incidir sobre o valor patrimonial destas quotas. Quando se analisa essa regra sob a ótica das empresas patrimoniais, especialmente as "holdings imobiliárias", percebe-se que o valor do patrimônio líquido dessas empresas, na maioria dos casos, é composto pela soma do valor originário de aquisição dos imóveis que o compõem, sendo essa a referência de valor para cálculo do imposto devido.
Na alteração sugerida pelo Projeto de Lei nº 529/2020 esta sistemática de apuração mudaria, passando-se a considerar como base de cálculo das quotas o valor do patrimônio líquido "ajustado pela reavaliação dos ativos e passivos ao valor de mercado na data do fato gerador". Isso significa que a sucessão de quotas das empresas patrimoniais imobiliárias passaria a ser tributada com base no valor de mercado dos seus imóveis, mesmo que estes imóveis jamais fossem negociados ou vendidos.
Embora o projeto paulista não tenha avançado, a ideia foi aproveitada pelo governo federal com a edição do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024. Dentre vários temas relacionados ao ITCMD, está lá, novamente, a mesma mecânica de obrigatoriedade de reavaliação dos ativos a valor de mercado prevista inicialmente no projeto paulista, mas agora em âmbito nacional.
Estes projetos estão todos em trâmite e embora possam ser reprovados ou sofrer significativas alterações, mostram com uma clareza retumbante a verdadeira intenção do governo em matéria de reforma tributária.
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