sexta-feira, 26 de julho de 2024

O desprazer de viver, Mariliz Pereira Jorge, FSP

 Este ano completo 10 anos de um diagnóstico de depressão e de síndrome do pânico. Não tem um dia que não me lembre dessa condição. O meu ritual antes de dormir inclui escovar os dentes, aplicar os cremes que prometem despertar o colágeno adormecido enquanto durmo, acionar o aromatizador com umas gotinhas do óleo essencial de lavanda, que avisa meu cérebro que está na hora de desacelerar. Uma cápsula de Minoxidil para tentar conter a queda livre dos fios na menopausa e outra de antidepressivo. É ele que me ajuda a esquecer na maior parte do tempo que tenho uma doença crônica.

Cada pessoa com depressão que não desistiu é um sobrevivente. Pensei nisso ao assistir, finalmente, ao documentário sobre o chef Anthony Bourdain, que tirou a própria vida, em 2018. Conhecia a história, sabia o seu final, mas só encarei o sofrimento dele há pouco tempo. Não dá para dizer se reconhece um depressivo. Muitas vezes disfarçamos muito bem. Em outras, graças à medicação, terapias e mudanças no estilo de vida, conseguimos nos equilibrar bem na corda bamba, o que não significa que nos livramos dela. Mesmo com tudo isso, nem sempre um dos nossos consegue encontrar um ponto de sustentação mínimo para não saltar no precipício que nos espreita. Falo "os nossos" porque os depressivos são um grupo que entende o que é essa dor invisível, para muitos, inexplicável.

Cena do documentário 'Roadrunner', sobre Anthony Bourdain - Divulgação

Quem não conhece a trajetória de Bourdain pode se chocar com o desfecho dela. Ele foi encontrado enforcado num hotel no interior da França durante as filmagens da série Parts Unkown. Pode parecer incompreensível que um profissional bem-sucedido em tudo que fez desista da vida. Mas é assim, tão simples quanto trágico, o desprazer de viver pode ser insuportável. Aos olhos da maioria, Bourdain tinha a vida que todo mundo quer, viajava o mundo, mergulhava em culturas diversas, conhecia personagens interessantes, explorava a riqueza e a miséria num programa que era uma antropologia gastronômica. Chef, escritor, vencedor de Emmy. O que poderia lhe faltar?

Quem conhece a história e reconhece nele um depressivo, o vazio da alma está presente ao longo de todo documentário "Roadrunner", lançado três anos depois da sua morte. Ele tinha sucesso, reconhecimento, dinheiro, bons amigos e uma vida pessoal com todos os motivos para ser feliz e, claro, as infelicidades inerentes da vida. A resposta de sua morte não está neste ou naquele episódio, mas em sua procura constante de ter algum prazer que ele parece jamais ter encontrado. Essa busca em maior ou menor grau é cansativa e nos leva a excessos destrutivos, não porque os queremos, mas porque tentamos preencher espaços e experimentar algum gozo que não encontramos nas pequenas coisas. Mas as respostas não estão nos superlativos, não estão em lugar nenhum.

Quando saí do armário da doença, lembro que meu amigo Tony Goes disse que eu era a última pessoa do mundo que ele imaginava enfrentar o problema. Posso dizer o mesmo. Demorei alguns anos para fazer as pazes comigo mesma e aceitar a minha condição.

Eu sou aquela das alegrias simples, que aplaude pores do sol, que se emociona na beira do mar, que gosta de jogar conversa fora com desconhecidos, que se interessa por tudo, que aparentemente se diverte com qualquer coisa.

PUBLICIDADE

Mas sou também a última a ir embora das festas, a que faz amizade na porta do banheiro, a que sempre pede mais uma saideira, a que colecionou homens, a que tem mil ideias e que não termina projetos, a que pulou de empregos muito antes disso virar modinha. O melhor lugar do mundo para mim é dentro de um avião, à espera do que há por vir. Hoje, dez anos depois, vejo que são todos sinais da minha eterna insatisfação, da vontade que a vida me surpreenda, que me faça sentir algo. São sintomas da minha depressão, de certa forma domada pelo milagre da indústria farmacêutica.

Hoje, tenho muita dificuldade com esse mundo onde todos querem ser influenciadores, famosos, ricos. Se não fosse pelo trabalho, já teria saído de todas as redes sociais. Invejo gente ambiciosa, que faz projetos, que tenta ser respeitada, ser aceita em suas comunidades, que tem objetivos audaciosos. Não me orgulho, mas a verdade é que estou me lixando para o que pensam de mim e já não faço a menor questão de agradar ninguém, a não ser as pessoas que amo. A minha maior ambição é só ser feliz. Talvez ser um pouco determinada, persistente, quem sabe, mais gananciosa. Ser mais normal. Mas não inventaram remédio para isso.

ONDE PROCURAR AJUDA?

Mapa Saúde Mental
Site mapeia diversos tipos de atendimento: www.mapasaudemental.com.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 h por dia no número 188: www.cvv.org.br

Nenhum comentário: