Ju atendeu três homens desde que chegou ao prédio, na região da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. Enquanto espera o próximo cliente, abre a bolsa à procura de algo para preparar sua carreirinha de cocaína. O papel que ela puxa é um folheto deixado por uma missionária evangélica no dia anterior.
Quando Ju começa a fazer a carreirinha, olha para o endereço indicado no folheto. Sabia que o lugar ficava a poucas quadras de onde ela estava. Junta suas coisas, pega a bolsa e ruma para a ONG evangélica em busca de ajuda para deixar a dependência das drogas.
Diante da assistente social e missionária ela conta que é mulher casada, mãe de duas crianças e leva vida secreta na prostituição para sustentar o vício na cocaína. Está cansada e busca ajuda para recomeçar a vida longe das drogas.
Às quartas-feiras voluntários de uma ONG evangélica entram no prédio de dez andares ocupado exclusivamente com atividades de prostituição. Foi nele que encontraram a Ju. Os cafetões já conhecem esses religiosos e a presença deles no prédio foi liberada. A condição imposta é que as conversas sejam rápidas para não atrapalhar o atendimento aos clientes. No contato anotam o nome da garota, o dia do aniversário e por quais motivos ela deseja que eles orem a Deus. As anotações facilitam o acompanhamento e tornam o contato com as garotas mais pessoal.
Nesse ano eleitoral as discussões sobre a cracolândia precisam ir além do intervencionismo burocrático do Estado. Os debates sobre políticas públicas para a região seriam enriquecidos pela escuta das experiências dos voluntários evangélicos que atuam há décadas na região.
O idealismo que move esses voluntários faz com que ganhem a confiança de prostitutas, cafetões, dependentes e traficantes. Afinal, eles permanecem por escolha num território que os demais paulistanos, se puderem, evitam passar nos seus trajetos pela cidade. A confiança aparece, por exemplo, quando cafetões chegam a encaminhar para as ONGs evangélicas as garotas cuja dependência das drogas começa a afetar o trabalho na prostituição.
Os contatos dos voluntários evangélicos com a população da cracolândia são guiados pela convicção que toda pessoa é mais que aquilo que faz para ganhar a vida ou sua condição de dependente químico. Por exemplo, prostituta tem nome, gosta de saber que seu aniversário será lembrado por alguém e tem, como qualquer um, sua lista de pedidos para Deus. A questão é: quem, além desses voluntários evangélicos, quer saber disso?
Não sei como vai a recuperação da Ju. Mas não ficaria admirado se, no futuro, ela retornasse para a cracolândia na condição de voluntária da ONG evangélica e com a missão de contar sua história para outros dependentes e ajudá-los a começar um novo capítulo na vida. De longa data sabe-se que o "RH divino" seleciona seus melhores santos dentre os grandes pecadores. Mulheres como Maria Madalena e a Ju serão sempre "top voices" no LinkedIn do reino dos céus.
Por falar em vozes, os voluntários evangélicos já iniciaram os ensaios do coral de Natal com a chegada do segundo semestre do ano. Na semana do Natal o coral vai a cada um dos dez andares do prédio da Santa Ifigênia. Eles contam que tanto as garotas quanto os cafetões aguardam ansiosamente essas apresentações. Detalhe: não é incomum que clientes saiam dos quartos e cantem de memória os hinos com o coral, o que indica que frequentam ou já frequentaram igrejas evangélicas. Vida secreta, ao que parece, não é exclusividade da Ju.
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