Domingo de manhã. Acordo tarde e a más horas. Ponho os óculos, olho para o celular, fico alarmado com vários telefonemas não atendidos —sempre do mesmo número.
Primeiros pensamentos: a China invadiu Taiwan?
Israel está em guerra com o Líbano?
Putin invadiu um país da Otan?
Calma, deixaram uma mensagem: "Você pode comentar a ‘A Última Ceia’, versão gay, dos Jogos Olímpicos de Paris?".
Confuso, tiro os óculos. Penso: noites de excesso terminam assim. Estou surtando. Tenho de mudar de vida.
Nos entretantos, vou dormir mais um pouco.
Quando a tarde começa, levanto-me, ligo a televisão e a alucinação continua. Agora, há debate: era "A Última Ceia" de Leonardo Da Vinci com o pessoal do alfabeto —ou, cuidado, "A Festa dos Deuses", de Jan van Bijlert?
É um alívio saber que estou são. O mesmo não posso dizer da espécie "homo sapiens": em 2024, uma paródia qualquer alimenta horas de polêmica inflamada.
Eis o mundo que as guerras culturais produziram: uma versão horripilante dos cachorros de Pavlov. Quando um dos lados provoca, o outro começa a salivar.
Desta vez, foi com a religião. Seria a mesma coisa se alguém provocasse com os santos laicos do progressismo "woke".
Nesse pingue-pongue primitivo, haverá ainda espaço para os indiferentes? Para gente que não está interessada, que não quer saber, que não quer participar nessa conversa?
O ensaísta Mark Lilla, no seu "On Indifference", defende bem os indiferentes. Para a mente dogmática, escreve ele, existem dois fantasmas principais: o diferente e o indiferente.
O primeiro é um inimigo óbvio. É aquele que pensa o oposto de mim, pondo em causa os conceitos rudimentares que tenho na minha cabeça rudimentar.
Por experiência própria, confirmo que quanto mais rudimentar é uma pessoa, mais histérica ela se torna na defesa da sua sucata mental.
Onde existe verdadeiro conhecimento —e o conhecimento contém sempre algo de aberto e provisório— não há motivo para alarme só porque uma mosca caiu na sopa.
O dogmático é aquele que declara guerra às moscas.
O diferente é o ateu —para o crente. É o crente —para o ateu. É o progressista —para o reacionário. É o reacionário —para o progressista.
Ironicamente, e apesar de se odiarem em público, um não consegue viver sem o outro. Um não existe sem o outro.
Mas o indiferente é bem pior. Como é possível que exista alguém que boceja quando eu estou disposto a dar a minha vida por uma certeza?
Como tolerar esse desrespeito pela minha vaidade?
O indiferente termina a conversa antes mesmo de ela começar. O indiferente não dá troco. O indiferente não pode ser refutado, como Pascal percebeu ao escrever sobre o cético —e perigoso— Montaigne.
A expressão brasileira "não estou nem aí" capta na perfeição essa ausência ofensiva.
Como lembra Lilla, não foi por acaso que, no século 19, o papa Pio 9º considerou o liberalismo e o indiferentismo como as "pestes" da era moderna.
Mas a importância do ensaio de Lilla está no fato de ele defender como os Estados Unidos se transformaram no inferno dos indiferentes. Se eu não pertenço a uma patrulha, nem estou interessado nas utopias coletivas que elas defendem, que caminho me resta?
Resposta do autor: o caminho da solidão rural, do anonimato urbano ou do exílio voluntário, como sucedeu a incontáveis indiferentes.
Os outros, os não indiferentes, os que aceitam marchar ao som da música, sinalizam a sua virtude como os antigos cristãos faziam prova social da sua fé.
Como reconhece Lilla, já não financiam cruzadas, nem encomendam altares, nem fazem peregrinações aos locais santos.
Mas há outras formas de participar na intensa religiosidade profana em que a política moderna está transformada —repetindo dogmas, perseguindo hereges, prometendo a salvação dos mais fiéis.
Em 2024, uma dose generosa de indiferença não é apenas legítima; é vital, sobretudo perante a americanização do mundo com suas guerras culturais importadas.
Não se trata de uma forma de desistência. Pelo contrário, é uma forma de resistência para não sermos macacos de imitação em jaulas que não nos pertencem.
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