quarta-feira, 17 de julho de 2024

Impunidade marca 10 anos da derrubada de Boeing na Ucrânia, FSP

 

SÃO PAULO

Um dos fatos mais importantes do longo período de guerra civil na Ucrânia que precedeu a invasão russa de 2022, o abate de um Boeing 777 da Malaysia Airlines no leste do país, completa dez anos nesta quarta (17) marcado pela impunidade.

"Quem disparou o míssil? Quem deu a ordem?", questionou em uma mensagem gravada em vídeo o presidente da fundação dos parentes das 298 vítimas do incidente, o holandês Piet Ploeg. Ele perdeu o irmão, a cunhada e o sobrinho no voo.

Imagem mostra uma cabine de avião branca, com faixa azul e branca, remontada a partir de destroços. São pedaços amassados, com vidros estilhaçados
Parte da cabine do Boeing 777 derrubado na Ucrânia remontada por investigadores - Emmanuel Dunand - 13.out.2015/AFP

Uma investigação internacional, que pôde recolher os destroços do avião, chegou a vários consensos. Primeiro, que o míssil antiaéreo havia sido disparado de um sistema de fabricação soviética Buk. Segundo, mais contencioso, que a arma fora lançada de território controlado por separatistas pró-Rússia em Donetsk, leste ucraniano.

Em 2022, uma corte holandesa, país de nascimento de 193 dos mortos que voavam de Amsterdã a Kuala Lumpur, condenou à prisão perpétua três pessoas "in absentia" por envolvimento mais genérico na derrubada: os russos Igor Girkin e Serguei Dubinski, além do ucraniano Leonid Khartchenko.

Todos operavam com forças separatistas na região e, na versão da Justiça do país europeu, trabalhado para trazer, empregar e depois devolver o Buk a uma base russa na região do outro lado da fronteira.

O caso foi encerrado em 2023, mas a Holanda peticionou contra a Rússia na Corte Europeia de Direitos Humanos, acusando diretamente o presidente Vladimir Putin de ter autorizado a operação. De forma separada, a Agência Internacional de Aviação Civil ainda apura responsabilidades, visando eventual processo cível.

O Kremlin nega todas as acusações, afirmando que o julgamento foi uma farsa russófoba típica dos tempos convulsionados que a Europa vive. Desde o começo das apurações, os russos tentaram jogar a culpa para a Ucrânia.

Primeiro, sugeriram que o míssil que derrubou o Boeing havia sido lançado por um caça de Kiev. Depois, que fora um sistema antiaéreo ucraniano o responsável pela tragédia. Com o rompimento dos laços com a União Europeia devido à invasão de 2022, as chances de uma solução pactuada são nulas. O então premiê holandês, Mark Rutte, duro crítico de Putin, agora será secretário-geral da Otan (aliança militar ocidental).

O três condenados vivem na Rússia e não serão extraditados —o mais notório deles, Girkin, acabou caindo em desgraça por suas críticas à condução da guerra por Putin e pegou quatro anos de cadeia neste ano por "incitar o extremismo".

Para os parentes das vítimas, o que fica são as dúvidas. "Não descansaremos até revelar a verdade", afirmou Ploeg no vídeo.

Ao longo dos anos, a reportagem ouviu versões do que poderia ter ocorrido de pessoas com acesso a informações de segurança em Moscou. O mais provável, dizem, foi um erro de operação por parte dos separatistas, que teriam confundido o Boeing no radar do Buk com um avião ucraniano.

Quando as notícias da queda do avião chegaram, a reação inicial foi de choque e de particular incredulidade, dado que a mesma Malaysia havia perdido um avião idêntico no misterioso caso do voo MH370, que desaparecera quatro meses antes após decolar de Kuala Lumpur rumo a Pequim com 239 pessoas a bordo —um caso sem solução até hoje.

Mas logo a realidade em solo iria dar o tom da indignação pelo ocorrido. Entre o fim de 2013 e o começo de 2014, o governo pró-Rússia de Kiev enfrentou protestos e foi derrubado. Putin reagiu anexando a Crimeia e incitando a guerra civil no Donbass, região que compreende as áreas de Donetsk e Lugansk.

Para a cineasta ucraniana Marina Er Gorbach, que usou a derrubada como pano de fundo no premiado "Klondike" (2023), a queda do avião foi o primeiro tiro de advertência sobre a gravidade da crise, e ainda assim acabou ignorado no Ocidente.

Em conversa com a Folha no ano passado, ela afirmou que as sanções aplicadas a Moscou em 2014 foram frouxas demais, levando à escalada na guerra civil, que matou cerca de 14 mil pessoas, e à invasão total oito anos depois.

O trauma do episódio inconcluso se espraiou na indústria de aviação comercial. Basta acessar algum site de monitoramento de tráfego de aviões para ver o buraco negro formado em torno da Ucrânia e do sul da Rússia para se ter uma noção desse impacto.

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