Se é possível que a ignorância jamais tenha sido tão influente e orgulhosa de si quanto em nosso tempo, como comprova qualquer breve passeio pelas redes sociais, desfazer nossa ignorância sobre a história da palavra nos leva longe no passado.
Vamos descobrir então que o termo que designa o "estado daquele que não tem conhecimento, cultura, em virtude da falta de estudo, experiência ou prática" (definição do Houaiss) pertence a uma família linguística nobre, com raízes na pré-história e descendentes espalhados pelo mundo.
Convém ir com calma. Ignorância é uma palavra que chegou ao português no século 14, vinda do latim "ignorantia" (falta de conhecimento, ausência de saber), na qual o prefixo indica negação.
O que data da pré-história é o elemento "gno", isto é, conhecer. À medida que os estudos linguísticos dissipavam nossa ignorância ancestral, foi ficando claro que o código genético de "gno" podia ser identificado em línguas tão diversas quanto o russo e o persa, o sânscrito e o grego.
Os linguistas chegaram a essa conclusão juntando caquinhos esparsos para construir a hipótese de uma língua primordial da qual todas essas seriam descendentes —inclusive a nossa. Batizaram aquele caldo linguístico primitivo de protoindo-europeu.
Dito assim, parece simples, mas estamos falando de um longo e cabeçudo processo que, entre os séculos 18 e 19, envolveu estudiosos de diversos países no desenvolvimento do chamado método histórico-comparativo.
A quem quiser saber mais sobre essa fascinante aventura científica, recomendo o livro "Latim em Pó" (Companhia das Letras), de Caetano Galindo. No capítulo "O povo dos cavalos", o autor torna acessível o que é complicado por natureza —em suas palavras, "a história de como um bando de humanistas, dotado apenas de livros (...), elaborou um método revolucionário".
O elemento "gno" é fácil de identificar em outras palavras da língua portuguesa ligadas à ideia de conhecer, como cognição, prognóstico e diagnóstico —ou de desconhecer, como incógnita, agnóstico e ignóbil (o que não é nobre; baixo, vil). Todos esses são vocábulos de credenciais gregas ou romanas.
O fato de o mesmo "gno" ser também nítido no inglês "know" (saber, conhecer), palavra que chegou por caminhos genealógicos muito diferentes, vinda do germânico, é mais uma comprovação da hipótese protoindo-europeia.
No entanto, nem sempre o "gno" se deixa ver tão claramente. Diante do verbo conhecer e do substantivo conhecimento, temos que recorrer ao antepassado latino "cognoscere" (conhecer pelos sentidos) para identificá-lo.
Há casos em que ele se disfarça ainda mais. Como a grafia "gnoscere" (conhecer) caiu em desuso no latim clássico, substituída por "noscere", muitos descendentes do velho "gno" passaram a circular incógnitos por aí.
É o caso, por exemplo, de nobre (de "nobilis", conhecido, ilustre), notícia e noção —sim, essa mesma noção que anda rara no mercado.
E por falar em noção ou na falta dela... A tradução robótica na imprensa não tem volta. Sendo gratuita e instantânea, já ganhou.
Nem por isso vale fazer vista grossa para a degradação linguística, intelectual e anímica que ela provoca na paisagem textual do país —tão grande que não tem sido raro encontrar humanos mais robóticos que os próprios robôs.
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