O maior paradoxo do mundo moderno é a nossa relação com a IA: a criação ganhou vida própria, não dá mais para engaiolar o bicho. Corremos o risco da criatura se voltar contra os seus criadores.
O filme "Here", de Robert Zemeckis, vencedor do Oscar por "Forrest Gump - O Contador de Histórias", que tem a IA tem um papel central, só estreia em novembro e já está dividindo a torcida: uns o aguardam ansiosamente, outros o rejeitam preliminarmente.
O trailer oficial, lançado recentemente, mostra os atores Tom Hanks e Robin Wright digitalmente rejuvenescidos para viver seus personagens nas fases jovens do drama familiar. O filme foi baseado na obra-prima de Richard McGuire, uma graphic novel, publicada no Brasil com o mesmo nome, "Aqui". A pequena amostra do longa é bonita, a escolha da música (banda Yes) combina, o filme parece irresistível, mas me causou sensações mistas e visões confusas, obviamente influenciadas pelos sentimentos igualmente mistos que tenho sobre o limite do uso da IA no cinema e nas artes.
Parece que colocaram os atores no FaceApp e transportado para o filme. Vi na tela os personagens de Hanks dos seus filmes dos anos 1980 e 1990, mas não consegui enxergar o personagem do próprio filme "Here" mais jovem. Sua expressão, uma mistura heterogênea de Hanks de hoje e do passado, não me soou precisamente real. Wright também não convenceu, o brilho dos olhos estava desbotado, o olhar longe.
Implicância minha? Provavelmente.
Zemeckis, considerado o pioneiro em efeitos visuais e computação gráfica nos seus filmes, como "De Volta para o Futuro Parte II", "Uma Cilada para Roger Rabbit" e o próprio "Forrest Gump", se superou. Os truques digitais usados no seu novo filme são muito mais sofisticados do que os já vistos até hoje e representam um novo marco no cinema.
Um enorme conjunto de dados com base nos arquivos dos atores acumulados por décadas, fez o modelo de IA "entender" como uma versão mais jovem deles se expressaria em cada situação. Depois de gravarem as cenas, camadas de versões mais jovens foram sobrepostas a eles, partindo das suas expressões atuais. Parece genial, mas é exatamente esse o problema: nenhuma pessoa (real) pode ter a mesma expressão durante trinta anos.
Não se trata apenas de feição e pele; a história de vida molda a pessoa, sua personalidade e a maneira de se expressar, coisa que nenhuma IA pode compreender.
Diferentes atores mais jovens poderiam representar, com mais alma, os personagens nas várias fases da vida dos personagens. A grande, e crucial, diferença é que a IA imita, enquanto os atores interpretam.
Quando se assume que outros atores estão vivendo os personagens, e não reproduzindo padrões, ficamos relaxados para mergulhar no filme e nas viagens que ele nos leva. Diferente da IA, quando tem a pretensão de "ser", o que provoca uma tensão e rouba a emoção que o filme poderia transmitir.
A IA é um ponto sensível da indústria do entretenimento, embora as questões éticas e regulamentares ainda estão longe de ser resolvidas. Alguns amam, como Zemeckis, outros odeiam e a consideram "um insulto à própria vida", como pensa o diretor de animação Hayao Miyazaki.
Por mais perfeita que seja a IA, é difícil escapar do vale misterioso, a estranheza que as reproduções humanas causam no nosso cérebro. Há um ano, Elis Regina foi ressuscitada em uma propaganda de gosto duvidoso, cantando ao lado de sua filha Maria Rita. Meu cérebro foi um dos que se recusou a processar as imagens.
Uma antítese ao novo mundo pós IA é a trilogia "Antes do Amanhecer", "Antes do Pôr-do-sol" e "Antes da Meia-Noite", umas das histórias de amor mais lindas do cinema, que conta o relacionamento de Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) em diferentes fases, nos anos 1994, 2003 e 2013. São os mesmos personagens e os mesmos atores: todosam adureceram juntos. Será que se na época tivesse a IA de hoje, essa história de amor teria acontecido?
A inevitabilidade da IA em nossas vidas, tanto para aspectos positivos quanto negativos, é inquestionável e não seria diferente no cinema. É essencial que os artistas se adaptem às mudanças tecnológicas, não só aceitando, mas aproveitando as novas possibilidades que a IA oferece. Mas, para continuar a ser arte, é ainda mais essencial que seja preservada a singularidade e o toque humano nas criações. O bicho tem que ser domado.
Se o diretor de "De Volta para o Futuro" levou Tom Hanks de volta para o passado em "Here", só vamos poder conferir em novembro.
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