Acontece com todo mundo. Uma pessoa te cumprimenta, surge um branco na memória, você não se lembra quem é. Nem nome, nem de onde, nem de quando. Foi numa dessas que aprendi a ser uma boa ouvinte.
Ela começou com um "querida, que saudades!" e me deu dois beijinhos enquanto eu fazia esforço para ativar a memória. Faculdade? Trabalho? Infância? Esportes? Praia? Bairro? Nada. Só neblina.
Cheia de intimidade, começou a falar. Prestei muita atenção em cada palavra que saia daquela boca desconhecida, franzindo os olhos feito uma míope sem óculos para tentar decifrar o enigma. Ela foi logo despejando os seus problemas, falava sem parar. Não olhei para o celular nem para os lados, esqueci de mim: estava inteira para ela. Escutei até as vírgulas do seu relato. Não podia deixar escapar nada, certa de que descobriria a sua identidade. Mas o apagão da memória persistia.
Depois de ouvir o seu desabafo, e mesmo sem ter ideia de quem era, me compadeci. Ela passava por uma crise profissional, estava mal com o marido, os filhos saindo dos trilhos. "Estou acabada, amiga. Você não percebeu como eu engordei?" Respondi com uma mentira generosa: "Que nada, menina. Você está ótima, sua pele está até melhor".
Sensibilizada com a sua história, a convidei para um café. Até tentei alguns conselhos, mas percebi que o que ela precisava mesmo era falar. Ela devorou um sanduíche, uma torta e tomou um chá. Uma hora depois, pedimos a conta. Fiquei orgulhosa de mim por tê-la ouvido tão bem e tão profundamente, e percebi que os melhores ouvidos são os que fazem o outro ouvir a si mesmo.
Na despedida, ela me fala: "Você não imagina como me ajudou. Me liga, não some, tá, Solange?". Me deu dois beijinhos e sumiu. Na hora, emudeci —não deu nem tempo de falar "eu não sou a Solange".
Ela ganhou uma terapia e um almoço de graça, e eu ganhei uma Solange imaginária, que às vezes vem para me lembrar o que é escutar alguém de verdade.
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