Por Luciana Lima
Já passava de duas horas e meia de audiência pública, quando o deputado federal Zé Trovão (PL-SC) tomou a palavra. O chapéu preto com abas largas dava mais imponência ao seu porte avantajado diante da esguia ministra Marina Silva, sentada à frente. Na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o bolsonarista — que chegou a ser preso por incitação de atos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e, quando eleito e até duas semanas atrás, ainda usava tornozeleira eletrônica — iniciou seu discurso se dizendo muito preocupado com a Amazônia, com os povos ribeirinhos e “com a grande tragédia da miséria”. Dizia-se indignado porque o Ibama barrou o projeto da Petrobras de prospectar petróleo na foz do Rio Amazonas. “A senhora sabe que estão tirando o nosso petróleo de canudinho? A senhora sabe disso, né?”, provocava o deputado, balançando a cabeça com o sorriso no canto do lábio e se referindo a várias prospecções hoje realizadas na região. “São mais de 11 trilhões de reais”, contabilizava o possível lucro da Petrobras com a exploração.
Trovão passou a acusar a ministra de não pensar na população da região que precisa de desenvolvimento e, para isso, precisa do dinheiro do petróleo. “Tem coisas, senhora ministra, que só podem ser compradas com dinheiro”, ensinava. “Eu não estou aqui para atacar a senhora, pelo amor de Deus, nem faz parte do meu feitio, mas eu estou pedindo para a senhora um pouco de consciência”, apelou. O deputado seguiu acusando Marina de dar continuidade à “escravidão” dos povos da Amazônia que, segundo ele, estão sob o “jugo das ONGs”.
A ministra assistiu a toda a performance com os olhos fixos no parlamentar paulista eleito por Santa Catarina. Não movia um músculo da face serena. Estava ali, fitando os leões. Como o profeta Daniel, condenado na Babilônia por não deixar de adorar o Deus de Israel, conforme mandamento do então rei Dario, Marina pagava naquela arena a pena por se manter fiel ao que sempre pregou: a defesa do Meio Ambiente. Intransigente defesa.
Na passagem bíblica, o rei Dario, afeito a Daniel, escolheu o pupilo para chefiar 120 governadores. Insatisfeitos com a ascendência do profeta, mas sem nada concreto para desaboná-lo, os burocratas e incompetentes convenceram Dario a decretar uma lei proibindo orações ao Deus de Israel. Sem suspeitar, o rei assim o fez. Ao receber a denúncia de que Daniel descumpria a nova regra, foi obrigado a puni-lo, ainda que a contragosto. Daniel foi levado à cova dos leões; o rei se quedou insone. Na manhã seguinte, sob a proteção divina, Daniel estava a salvo. E o rei Dario, arrependido, jogou os governadores na cova. Eis a alegoria de uma política símbolo, por quem o presidente tem grande admiração, e a postura predatória dos agentes do atraso — à esquerda e à direita, passando pelo infame Centrão. E o teste da disposição de Lula de salvar Marina do sacrifício.
Quando a ministra se moveu para responder aos argumentos apresentados pelo bolsonarista, ele já não estava mais no plenário. Antes, o parlamentar chegou a reclamar das falas de Marina. “Uma audiência para ouvir palestra. É muita palestra!”, resmungou. Ficou insuportável para ele, principalmente pela pouca chance de fazer a lacração habitual da sua turma na Câmara. Mesmo assim, Marina seguiu sugerindo um exercício de futuro. Era muito para boa parte da plateia, porque a ministra fazia um convite à evolução, a uma mudança de paradigma: “A gente entra em declínio pela repetição. A repetição é a causa do declínio das civilizações”, dizia Marina, citando o passado da Roma Antiga.
Na viagem entre o passado e o futuro, a ministra insistia na necessidade de se iniciar a transição energética — agora. “Tenho insistido no debate que a Petrobras deve, imediatamente, deixar apenas de ser uma empresa de exploração de petróleo para ser uma empresa de produção de energia. Nós (Brasil) vamos alcançar o pico, depois vamos entrar em declínio, e vai chegar o momento em que esse recurso vai desaparecer. Portanto, é fundamental estarmos onde a bola vai estar. Quem tem condições de fazer isso? Nós”, ensinava. “O homem saiu da idade da pedra não foi por falta de pedra, foi porque descobriu coisas novas”, instigava Marina.
Trovão ainda tratou de apontar as divergências com Marina dentro do próprio governo e de seu partido, a Rede Sustentabilidade, e citou a briga com o senador Randolfe Rodrigues, que motivou seu anúncio de saída do partido e até a “fritura” dos pares da ministra. O surreal era que, nesse ponto, Trovão tinha razão. No governo de que Marina faz parte, estavam os que a acusavam da mesma intransigência na questão do petróleo. O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates; o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira; o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues; e até a “cozinha” do Planalto, com os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e o chefe da articulação política, Alexandre Padilha. Todos a favor da Petrobras.
Uma quarta de trevas
Naquela quarta, Marina — e o meio ambiente — amargaram derrotas lancinantes no Congresso. O governo concordou com esvaziamento de sua pasta para atender exigências do centrão e suas intersecções com a bancada ruralista. O relatório do emedebista Isnaldo Bulhões (AL) sobre a medida provisória que reestrutura a Esplanada de Lula foi aprovado na comissão especial para tirar do Ministério do Meio Ambiente o Cadastro Ambiental Rural e passar para o Ministério da Gestão. Um dia antes, Padilha havia elogiado o relatório após uma reunião com Lula. Esse cadastro obriga os fazendeiros a cumprirem o Código Florestal.
O relator ainda voltou com a Agência Nacional das Águas (ANA) para o Integração e Desenvolvimento Regional, hoje comandado pelo ministro Waldez Góes (PDT-AP), ex-governador do Amapá e indicado pelo senador David Alcolumbre (UB-AP). Ou seja, uma entrega poderosa para o centrão. Vale lembrar que tanto Góes quanto Alcolumbre querem a perfuração do poço nas proximidades do Amapá. E, claro, os royalties que venham a jorrar dele.
Some-se a todas essas mudanças o esvaziamento do Ministério dos Povos Indígenas, gerido pela ministra Sônia Guajajara. O projeto aprovado na comissão determinou a competência pela homologação dos territórios indígenas para o Ministério da Justiça. Na Câmara, Marina reagiu: “É um ataque também aos ministérios das mulheres, mulheres de origem humilde, mulheres de origem indígena, mulheres pretas. Tem um viés também de gênero nesse ataque que está sendo feito à legislação ambiental brasileira.” Todas as dimensões possíveis da ignorância estavam sendo contempladas naquela quarta.
Ainda naquela noite, a Câmara passou a boiada sobre a Mata Atlântica aprovando um projeto que enfraquece as regras de proteção da floresta e facilita o desmatamento do bioma; e a urgência do projeto do Marco Temporal, que restringe a demarcação das terras indígenas, considerando somente as áreas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal. O projeto, na prática, desconsidera os processos de expulsão dos indígenas de seus territórios que ocorreram antes de 1988.
No dia anterior, Marina havia conseguido uma vitória. Na terça, ela e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, haviam sido chamados ao Planalto pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa. Era uma tentativa de se resolver a pendenga com a Petrobras e com o Ministério de Minas e Energia sobre a negativa do órgão referente à prospecção de petróleo na Margem Equatorial. Na reunião, a Petrobras chegou a apresentar novas ações para tentar sanar o problema. Disse que faria uma base de fauna em Oiapoque, no Amapá, para atender animais em caso de acidente, aumentaria a frota de lanchas, entre outros pontos de infraestrutura para atendimento em caso de vazamentos. O presidente do Ibama, sempre ao lado de Marina, até questionou: "Por que vocês não apresentaram isso antes?”. Durante a reunião na comissão da Câmara, Marina resumiu o papo no Planalto: “Foi a discussão de um governo republicano, que respeita a lei. É o Ibama que vai julgar.” Mas a confiança da Petrobras na reversão do parecer é tanta que Prates mantém o equipamento de perfuração a postos, ao custo de R$ 3 milhões por dia.
A noite de insônia
O temor de que Marina deixasse o governo caso fosse contrariada pairava sobre o Planalto no início da semana. Ao mesmo tempo, o governo precisava atender o Centrão para ter suas medidas votadas na Câmara e devia respostas à Petrobras e ao ministro Silveira. Mesmo assim, Marina saiu da reunião de terça cantando vitória: a de que todo projeto de prospecção terá que contar com “avaliação ambiental estratégica” feita pelo Ibama.
Mesmo sendo alvo de críticas dos colegas de Esplanada, foi a partir dessa reunião com Costa que Marina sentiu que poderia sair em defesa do governo e denunciar a pressão do Congresso — notadamente da turma de Arthur Lira, o presidente da Câmara e aspirante a primeiro-ministro. Se até aqui ele vinha apresentando a fatura monetária de seu apoio, na semana que passou, exibiu a política. O Centrão que o sustenta e é liderado por ele tem um pé no reacionarismo, outro no fisiologismo e os dois olhos no retrocesso. Na manutenção de um status quo que privilegia o agronegócio antiquado e predatório.
Fato é que a articulação do governo concordou com todas as modificações na medida provisória inseridas pelo relator Isnaldo Bulhões — mesmo havendo algum consenso de que elas são, no plano maior, inconstitucionais. Durante as negociações do substitutivo, o Planalto considerava o texto um “mal menor”, visto que o “esvaziamento” poderia ser sanado, mais adiante, com regulamentações que condicionassem qualquer decisão a um aval do Ministério do Meio Ambiente. Isso foi pensado no contexto da transferência do Cadastro Ambiental Rural, por exemplo. O governo avaliava que ele poderia ser transferido para o Ministério de Gestão, mas que conseguiria estabelecer como regra que qualquer decisão final dependesse de um aval técnico do MMA.
Era melhor esse texto, na opinião dos palacianos, que ficar amarrado ao Ministério da Agricultura, exclusivamente, ideia que chegou a ser discutida. Além disso, o governo trabalhava com a informação de que a bancada do agronegócio tem cerca de 370 deputados, o suficiente para aprovar até emendas constitucionais. Rumores de que havia deputados confabulando para deixar a medida perder a validade em 1º de julho também chegaram ao Planalto.
Antes, Marina procurava não falar abertamente da resistência que enfrentaria no que possivelmente é o Congresso mais conservador da Nova República. Na terça mesmo, Marina se dispôs a conversar com a imprensa e, ao longo da semana, mesmo com as derrotas, passou a falar do governo como refém das forças mais conservadoras da Câmara. Na quinta, ao dar posse ao presidente do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Mauro Oliveira Pires, ainda sob o forte impacto da surra da véspera, Marina prometeu persistir. “Eu sempre digo, quando me perguntam se sou otimista ou pessimista, que nem uma coisa nem outra. Mas tão somente persistente. E agora, nós vamos persistir”. Ela justificou sua postura lembrando a lenda sobre o violinista italiano Niccolò Paganini. “Paganini entra para fazer um concerto. Começa a tocar seu violino. A música é maravilhosa. A plateia vai ao delírio. Eis que, de repente, uma corda se quebra. Há aquele incômodo todo e a orquestra para. Mas ele não interrompe. E continua tocando, tirando um som maravilhoso e encantando a plateia”, contou. “E a plateia agradece esse maravilhoso show de quem conseguiu tocar, mesmo com uma corda só.”
Ao contrário do que ocorreu no segundo mandato de Lula, quando ela deixou o cargo devido a divergências sobre a estratégia do governo para contenção do desmatamento, Marina nutriu nos últimos meses, após a reconciliação com o presidente durante a campanha, a ideia de que algo havia mudado na cabeça dele. Ela acredita que o Lula de 2023 enxerga a questão da sustentabilidade no mesmo patamar do combate à fome. E se manteve crédula ao longo da semana de teste. “Existem contradições? Existem. Mas estamos aqui para manejar as contradições”, minimizou.
Durante a reunião da manhã de sexta, Marina disse que a semana foi dura, mas que estava disposta a defender o governo e não temia o embate político. Em marinês puro, disse que “o que aconteceu não foi uma picada de carapanã, mas uma ferroada de arraia”. Carapanã é como o povo amazonense se refere a mosquitos. Ou seja, Marina deixou clara a profundidade da ferida antes de reafirmar que estava decidida a resistir.
Lula prometeu vetar o projeto que enfraquece as regras contra o desmatamento na Mata Atlântica. Na sexta-feira, o presidente chamou todos os envolvidos na crise para uma conversa. Foram mais de quatro horas de reunião. Marina, desta vez, não desceu para falar com jornalistas. Sônia Guajajara também não, só fez um tuíte. “Elas tinham outras agendas”, justificou Padilha.
Coube aos homens da articulação do governo a tarefa de passar os informes da reunião. Rui Costa iniciou sua fala repetindo o mantra que Marina colocou ao longo da semana de que o Congresso tentava impor ao governo de Lula a gestão ambiental do governo de Jair Bolsonaro, que perdeu as eleições. “A gente precisa reafirmar a prerrogativa de quem ganhou a eleição”, enfatizou Costa. Padilha, por sua vez, disse que a sustentabilidade estava “no coração do presidente Lula” e se preocupou em passar a ideia de unidade entre os ministros. “Todos os ministros e ministras saíram com a convicção de que, mesmo com mudanças que foram feitas dentro da comissão mista, que são pontos importantes, relevantes, que nós vamos continuar conversando com o Congresso Nacional”. Rui Costa também falou em recuperar pontos do texto original da MP nos passos seguintes da tramitação.
O recado veio em linha com a manifestação do presidente Lula sobre o assunto. Minimizando a enormidade da crise, num evento em celebração ao Dia da Indústria na Fiesp, Lula disse que “agora começou o jogo. Nós vamos jogar, vamos conversar com o Congresso, vamos fazer a governança daquilo que a gente precisa fazer”. O tom da entrevista de Costa e Padilha ontem em nada lembrou a fritura que borbulhou durante a semana. Foi um discurso quase conformado, envergonhado, sem nuances de indignação, que buscava diminuir as derrotas sofridas na Câmara. Randolfe Rodrigues e o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), só assistiram à entrevista, ladeando o ministro com o olhar de tensão. Todos os envolvidos entendem o tamanho da sanha dos leões.
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