sexta-feira, 19 de maio de 2023

Chá com imortais também tem espumante; saiba como é uma sessão na Academia Paulista de Letras, g1

 Por Claudia Castelo Branco, g1 SP — São Paulo

 


Chá com imortais: como é uma sessão na Academia Paulista de Letras
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Chá com imortais: como é uma sessão na Academia Paulista de Letras

Faltavam trinta minutos para o chá dos imortais, encontro realizado às quintas no segundo andar da Academia Paulista de Letras, em São Paulo. Doze dos 40 acadêmicos estão presentes, alguns virtualmente. Comem frutas e jogam conversa fora enquanto o relógio não bate 17h. Um garçom percorre o salão com uma bandeja repleta de copos e xícaras customizadas com o símbolo da APL. “Água de coco, café?”, oferece.

A dama da literatura brasileira, que completaria 105 anos naquela semana, é sempre lembrada pelos colegas. “Ontem foi aniversário da Lygia [Fagundes Telles]. Ela falava assim 'hoje, todo mundo escreve. Onde está o leitor? Eu preciso de leitores, meu querido, onde é que estão?'”, recorda José Renato Nalini. Juarez, assessor da diretoria, passa de mão em mão um cartaz com fotos de imortais acompanhada da mensagem “saudações à presença feminina”.

Lygia Fagundes Telles: "Me leia! Não me deixe morrer" — Foto: Claudia Castelo Branco

Lygia Fagundes Telles: "Me leia! Não me deixe morrer" — Foto: Claudia Castelo Branco

Na mesa de mogno com toalha de Jacquard, o atual presidente da Casa, Antonio Penteado Mendonça, está sentado à cabeceira. Pergunta pelo Papa Bento XVI. Segundo ele, a APL é a única no mundo que "tem um Papa". Em 2007, Ives Gandra e José Renato Nalini foram a uma reunião no mosteiro de São Bento e entregaram o diploma de membro de honra , honoris causa, a Bento XVI . A foto do momento está num quadro na sala onde acontecem as sessões.

Foto do Papa na Academia Paulista de Letras — Foto: Fábio Tito/g1

Foto do Papa na Academia Paulista de Letras — Foto: Fábio Tito/g1

Os imortais brincam com a mortalidade. Um deles repete uma frase dita por Olavo Bilac e muito repetida por Lygia. “Nós somos imortais porque não temos onde cair mortos”. José Renato Nalini afirma que proíbe os acadêmicos de morrer, mas ninguém obedece. “Aqui é tudo bem espontâneo porque ninguém aqui disputa mais nada”, ironiza um dos acadêmicos.

APL foi fundada em 27 de novembro de 1909  — Foto: Fábio Tito/g1

APL foi fundada em 27 de novembro de 1909 — Foto: Fábio Tito/g1

Na primeira quinta-feira do mês, os imortais almoçam juntos, de preferência na cantina Jardim di Napoli. “Mas mesmo nesses almoços nós temos discussões sobre literatura, cultura, política, e, principalmente, sobre a situação de São Paulo. Porque nós fazemos questão que a nossa academia seja Paulista, Bandeirante”, diz Nalini com orgulho.

Maestro Julio Medaglia — Foto: Fábio Tito/g1

Maestro Julio Medaglia — Foto: Fábio Tito/g1

Não é só chá, também tem espumante

O chá começa pontualmente às 17h com temas selecionados previamente. Mas não é só chá. Tem espumante também. Lygia, mais uma vez lembrada, levava seu uísque.

Sala nobre da APL — Foto: Fábio Tito/g1

Sala nobre da APL — Foto: Fábio Tito/g1

É sempre um acadêmico que coordena o diálogo. Tratam-se por “excelência”, como exige o regimento inspirado nos ritos da Academia Francesa de Letras. Na pauta, impressa em papel A4, alguns dos pontos destacados:

  • O acadêmico Bolívar Lamounier falará brevemente sobre seis pontos para reflexão sobre o futuro do Brasil.
  • Recentes declarações do presidente Lula.
  • Lembrança de aniversário, posses e falecimentos.

Antonio Penteado Mendonça domina o microfone. “O Brasil é um outro país em termos de saúde, aposentadoria, educação. Se nós pensarmos um pouco, em 1932 quase 90% da população brasileira era analfabeta”. Um dos imortais distrai-se apagando fotos no celular.

Mauricio de Sousa, um dos membros da APL — Foto: Fábio Tito/g1

Mauricio de Sousa, um dos membros da APL — Foto: Fábio Tito/g1

Em termos de profissões, há diversidade. Filósofo, músico, quadrinista, ex-ministro, ex-presidente. “Todos nós vamos nos lembrar bem da hiperinflação da década de 1980”, comenta um presente enquanto sorvetes e gelatinas circulam em taças.

Nobreza no Arouche

O emblema da Academia — Foto: Fabio Tito

O emblema da Academia — Foto: Fabio Tito

Na entrada do prédio localizado no Largo do Arouche, Centro de São Paulo, há um busto de mármore em homenagem a Brasilio Machado de Oliveira, o primeiro presidente da APL. Projeto do arquiteto Jacques Pilon do final da década de 1940, o edifício é um exemplar de transição da arquitetura art-déco para a moderna. Foi tombado em 2010 devido à sua importância histórica e arquitetônica. Nos tapetes, o emblema da Academia idealizado pelo artista José Wasth Rodrigues e inspirado pelo verso de "Última flor do Lácio", de Olavo Bilac.

Mobília do salão nobre  — Foto: Fábio Tito/g1

Mobília do salão nobre — Foto: Fábio Tito/g1

No primeiro andar está o salão nobre, onde acontecem as reuniões mais informais e recebem visitas. Com tapeçarias, lustres, um piano, o mobiliário clássico de jacarandá remete à uma cena de um filme francês. Numa sala, muitos retratos. Um deles de Mario de Andrade. E um móvel criado por Ruy Barbosa. O maestro Júlio Medaglia observa uma fotografia onde poucos ainda estão vivos. “Nós não somos eternos, somos apenas imortais”. Jô Soares é lembrado. “De tudo ele apresentava sua própria versão. Ele quebrava o clima com pequenas observações”.

Mario de Andrade e imortais — Foto: Fábio Tito/g1

Mario de Andrade e imortais — Foto: Fábio Tito/g1

Medaglia, eleito em 2009, ocupa a cadeira 13 que já foi de Mario de Andrade que, por coincidência, também foi músico e escritor. “Toda a intelectualidade paulista passou por aqui. Aqui as pessoas podem ter a certeza de que suas obras serão respeitadas”, acrescenta.

No terceiro andar, corredores de livros tomam conta da biblioteca Embaixador Macedo Soares. Todos doados. O prédio, aliás, é mantido por doações. Ao lado, um espaço amplo reserva prateleiras exclusivas para cada um dos membros. A prateleira de Jorge Caldeira, cadeira 18, é uma das mais repletas. Ele é autor de "Mauá, empresário do império".

“Muita gente vem fazer consulta. Isso aqui é de uma versatilidade fora do comum. Tem todas as áreas culturais representadas nessa academia, mas eu gosto de pesquisar, sobretudo, naqueles naqueles nichos dos que estudaram a vida de São Paulo”, observa o maestro.

Deslumbrado, discorre sobre como São Paulo está em uma posição privilegiada em termos de atividade cultural. “Pensar que essa cidade, no início do século, tinha 200 mil habitantes e de repente vira a maior capital cultural da América Latina…”.

Antonio Penteado Mendonça — Foto: Fábio Tito/g1

Antonio Penteado Mendonça — Foto: Fábio Tito/g1

São muitas as referências na sede da APL. A frase “No universo da cultura, o centro está em toda parte” acompanha o busto do imortal Miguel Reale. “Viveu quase 100 anos, mas até o fim. E falava sobre qualquer assunto com uma propriedade que você nem imagina. Ele dizia 'somos 40 e praticamente ignorados. Agora, quando viramos 39, daí começam a nos cortejar'”. Ruth Guimarães, Monteiro Lobato, Ives Gandra da Silva Martins e Joaquim José de Carvalho também são lembrados.

Uma curiosidade: muitos convidados preferiram não integrar a APL - Antônio Cândido e Boris Fausto entre eles. Diziam que não tinham espírito acadêmico.

Ao g1, José Renato Nalini explica que as academias existem desde Platão. “Uma utopia gostosa para que as pessoas pudessem se desligar das suas preocupações rotineiras. O Machado de Assis e o Rui Barbosa resolveram criar no Rio de Janeiro uma academia de letras copiando o modelo francês: 40 cadeiras, 40 cadeiras vitalícias. O Machado tinha uma ideia assim: 'se ela é de letras, nós precisamos ter literatos, celebridades, figuras exponenciais e alguns jovens para alegrar o ambiente. Porque academia, antes de tudo, tem que ser uma casa de bom convívio”.

Depois, os outros estados começaram a criar as suas também.

Os novos imortais

No auditório com 400 poltronas iguais as da Casa São Paulo, o maestro Júlio Medaglia relembra as posses recentes. Sobre a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, que assumiu a cadeira de Lygia, lembra da música africana que tomou conta do ambiente. “Ela é muito espirituosa, escreve muito bem”. Sobre Mauricio de Sousa, lembra que os personagens da Turma da Mônica inundaram a casa. “O Tom Zé, que ocupa agora a cadeira que era de Jô Soares, foi uma alegria. É porque ele é ele: um poeta realmente de origem popular, mas extremamente sofisticado. É um paulistano de coração”.

Chá na APL — Foto: Fábio Tito/g1

Chá na APL — Foto: Fábio Tito/g1

De volta ao chá…

O relógio aproxima-se das 18h. Roberto Dualibi toma a palavra justificando que não tinha a intenção de falar. “Manifesto minha admiração pelos colegas aqui hoje. Lembro da carta de Joaquim Nabuco 'olha, as elites dizendo que vai dar tudo errado, vai ser um horror'. E não tá esse horror que as elites achavam que ia ficar”.

Imortais começam a discutir o que aconteceu com a classe média brasileira, mas o relógio bate 18h. A reunião é encerrada.

Na parede, uma montagem com quatro fotografias de Lygia Fagundes Telles e um recado escrito à mão: “Faço um convite ao jovem leitor. Me leia! Não me deixe morrer”. Lygia nunca faltou a uma sessão.

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