Os bons espíritos sempre se encontram. Pensava em escrever sobre beijos. Meu colega Marcelo Leite chegou lá primeiro. Abençoado seja ele.
Conta ele que a troca de saliva no "beijo romântico-sexual" pode estar inocente na transmissão do herpes labial.
Nossos antepassados já se entregavam à prática do beijo muito tempo antes de o vírus aparecer no pedaço.
Suspiros de alívio. Sempre fui alvo dessas infâmias, sobretudo por ex-namoradas que, na hora da despedida, declaravam com certo asco: "A única coisa que eu levo de você é o herpes labial".
Essas palavras magoam um homem cristão. Nunca, jamais, em tempo algum, me lembraria de culpar lábios de terceiros por minhas próprias deformidades bucais.
Nem por essas, nem pelas outras, do foro mental.
A partir de agora, quando for confrontado com a infâmia, terei uma cópia do artigo de Marcelo Leite para oferecer. "Lê isso, querida, e aprende".
Mas meu interesse pelas lindas dinâmicas do beijo não se limita ao vírus HSV-1. Está nas próprias origens sociais do dito cujo. Disse sociais?
Exato, leitor. Leio no Wall Street Journal que a osculação lasciva é típica de sociedades mais hierarquizadas.
E, dentro dessas, são as elites, com mais tempo para os amassos, que acharam boa ideia juntar lábios com lábios e línguas com línguas. Um teste imbatível para medir o potencial erótico do pretendente.
Virou moda e, como normalmente acontece durante os processos civilizadores —obrigado, Norbert Elias—, espalhou-se pelo resto do pessoal.
Em sociedades mais igualitárias, como os maasai ou os hadza da região subsaariana, beijar é prática incomum.
Pode ser até estranho ou repulsivo, já que a boca também serve para preparar o alimento que será dado às crianças.
O afeto ganha outras formas de expressão através de carícias, oferendas ou a partilha do cuidado com os filhos.
Parece até ser uma regra: quanto mais igualitária for uma sociedade, menos ela é beijoqueira. Serei o único a ver aqui um problema?
Vivemos tempos de guerrilha ideológica. Tudo é alvo de inquisições e provas de pureza. E de descolonização, para usar uma palavra da moda.
Esta descolonização significa um repúdio pelas práticas e pelos valores de nossos antepassados, em especial quando tais práticas e valores foram impostos pelas elites.
Nada escapa às guilhotinas: o conhecimento racional, as obras de arte, a própria linguagem usada no cotidiano.
Uma hipótese aterradora: não será o beijo, que nós inocentemente praticamos de forma lícita ou ilícita entre si, uma submissão aos caprichos das classes opressoras?
E, se assim for, não seria aconselhável abandonar o beijo e encontrar formas mais autênticas de expressar sentimentos?
Exemplos não faltam. Os esquimós esfregam os narizes. Já os maoris esfregam seus narizes e suas testas.
Na Polinésia, há tapinhas na barriga do outro. Em certas regiões africanas, são as próprias barrigas que se tocam.
E depois temos os casos da Papua Nova Guiné, como já lembrei nesta Folha, em que é sinal de respeito beijar o mamilo da mulher do chefe.
Também é possível apertar o pênis de um nativo —ou, então, depositar o nosso próprio órgão genital na mão dele, como uma prova de confiança.
Qualquer dessas opções poderia substituir o beijo do imperialismo eurocêntrico em homenagem à riqueza antropológica de povos tachados de "periféricos" ou "primitivos".
Embora, agora que penso nisso, exista sempre a hipótese de alguém nos acusar de "apropriação cultural", sobretudo se seguirmos as práticas da Papua Nova Guiné com nossas amigas ou amigos. Imagino até a cena em tribunal:
"O senhor está acusado de cometer apropriação cultural. Como o senhor se declara?".
"Inocente, meritíssimo. Eu estava apenas cometendo o velho e simples abuso."
O melhor para evitar esses constrangimentos é tentar inventar uma manifestação de carinho, e até de desejo, que não colida com as práticas estabelecidas.
Eu, por exemplo, desenvolvo há vários anos um guincho estridente, metade hiena, metade armadilho, que sinaliza sem ambiguidades minhas intenções libidinosas com o outro.
Até o momento, o resultado não tem sido eficaz, provocando a fuga amedrontada do objeto do meu afeto.
Uma questão de tempo, acredito eu. E de higiene, também. Ainda está para aparecer alguém que me acuse de estar espalhando doenças a partir de tais sonoridades.
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