"Mas nada disso importa / Vou abrir a porta / Pra você entrar / Beija minha boca / Até me matar", pedia Rita Lee na canção "Doce Vampiro". Matar de prazer, claro, em sentido figurado —e não literalmente, transmitindo alguma doença, por exemplo.
A troca de saliva no beijo romântico-sexual, como dizem especialistas em comportamento, sempre esteve sob a suspeita de promover intercâmbio turbinado de germes, como vírus e bactérias. Beijar na boca dá sapinho, diziam os adultos para apavorar crianças com o espectro da infecção pelo fungo Candida albicans.
Nada que não se cure, em muitos casos, com medicamentos antivirais, antibióticos e antifúngicos. Mas seria o beijo de língua responsável também pela emergência de um vírus tão insidioso quanto o HSV-1, causador do herpes labial?
Um artigo na Science de sexta-feira (19) apresenta argumentos para rejeitar a denúncia contra o HSV-1. O vírus havia sido indiciado há menos de um ano, em 27 de julho do ano passado, numa revista do mesmo grupo, Science Advances.
Eram 19 os acusadores de então, autores do artigo "Genomas antigos do herpes simplex 1 revelam estrutura viral recente na Eurásia". O grupo conseguiu extrair, identificar, sequenciar e analisar trechos do DNA de HSV-1 em dentes de três pessoas mortas entre os séculos 3 e 17 d.C.
Analisando as diferenças e semelhanças nas sequências de DNA, os geneticistas estimaram quando a linhagem atual do vírus teria surgido e se espalhado entre humanos. O problema teria começado no final do Neolítico.
O período indigitado coincide com as migrações da Idade do Bronze, as primeiras formas de escrita e as grandes cidades. A partir daí o herpes labial se disseminou, com convívio estreito entre habitantes aumentando a transmissão de doenças nos séculos seguintes.
O HSV-1 tinha chegado para ficar. Hoje, pelo menos dois terços da população global carregam essa partícula viral em forma latente. Alguns indivíduos mais suscetíveis, quando submetidos a estresse, padecem com sua volta à atividade e a formação de vesículas em torno dos lábios.
A equipe multinacional por trás do primeiro artigo, de 2022, lançou a hipótese de que o HSV-1, especificamente, tenha sido privilegiado pela emergência de um comportamento particular, o beijo romântico-sexual. Na visão deles, isso teria ocorrido há cerca de 3.500 anos, época dos primeiros registros escritos dessa carícia tão popular.
No trabalho publicado sexta-feira, Troels Pank Arboll e Sophie Lund Rasmussen levantam dúvidas contra essa hipótese. Embora reconhecendo que o beijo na boca não é universal, eles dizem que chega muito perto disso. Citam vários registros anteriores, principiando já com a escrita cuneiforme criada por volta de 3200 a.C.
Mencionam como indício de universalidade, ainda, que os parentes mais próximos dos humanos, chimpanzés e bonobos, também praticam o ato de pôr os lábios em contato. Não deixam de anotar, porém, que só entre bonobos há evidente motivação sexual.
Mas nada disso importa. Herpes é um perrengue, verdade, mas parece um preço pequeno a pagar por algo tão valioso. Qualquer pessoa que já tenha recebido beijos na boca sabe a delícia que é.
Rita Lee sabia das coisas. É bom de matar.
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