sexta-feira, 31 de março de 2023

Ditadura e a responsabilidade de honrar nossos mortos, FSP

 

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

SÃO PAULO (SP)

Narrar uma história de morte é quase sempre morrer um pouco. Morre-se na entrevista, quando o ouvido apurado para e chora, mesmo sem o outro saber. Depois, um buraco extenso se abre. É como se minhas palavras não conseguissem alcançar a dor diante de uma faca que encontra uma professora ou um tiro que atravessa um jovem na rua.

Quando estou fazendo uma cobertura intensa sobre alguma morte, o corpo endurece diante da necessidade da entrega, do deadline correndo em contagem regressiva. A famosa hora da morte do jornalismo.

Quase nunca consigo sentir tudo na hora. Quando a matéria é publicada ou vai ao ar, aí é que solto os ombros e, no intervalo entre uma entrevista e outra, permito-me o deságue. Amanhã é outro dia. E a morte nos ronda todos os dias. Mas como falar de morte constantemente e continuar a me comover, lamentar, sentir; ou como não sentir tanto a ponto de adoecer?

Sou jornalista há pouco mais de 12 anos. Nesse tempo, escrevi sobre muitas mortes. Reais e simbólicas. E sobre os mais diferentes tipos de luto. Foram mães que perderam os filhos para a violência de Estado; pessoas que sobreviveram à pandemia e viram os seus partindo; mulheres que vivenciaram e perderam entes queridos na Ditadura Civil-Militar; tragédias e acidentes; as mortes por conta do racismo estrutural ou transfobia em nossa sociedade.

É uma conta difícil, complexa. Não existe resposta certa. Nos anos de 1990, era comum (e triste) nas periferias ter perto de casa a chamada "rua da morte". A minha era caminho da escola e não me esqueço do dia em que havia três corpos cobertos na ponta da rua. Ter se tornado uma rua segura não mudou a alcunha de perigosa. Até hoje evito passar por lá.

Eu tinha 17 anos quando assisti a um documentário sobre a Vala Clandestina do Cemitério Dom Bosco, que por coincidência ou não está situado em Perus, bairro onde nasci, cresci e ainda vivo, na região noroeste da periferia de São Paulo.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 04-09-1990: Cemitério Dom Bosco em Perus, em São Paulo (SP). Uma tumba com cerca de 1.500 ossadas foi aberta em 4 de setembro de 1990 no cemitério Dom Bosco. Segundo registro oficial, a vala abrigava corpos e ossos de mendigos sem famílias, mortos na década de 70. Mas em 4 de setembro, com autorização do Serviço Funerário de São Paulo, o administrador do cemitério, Antônio Pires Eustáquio, concluiu que as ossadas não poderiam ser de indigentes. Algumas traziam marca-passos de metal e plástico. Outras apresentavam arcadas dentárias com incrustações em ouro e platina. Alguns crânios evidenciavam perfurações a bala. Com isso, a Prefeitura de São Paulo e a Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese da capital acreditam que a vala serviu de abrigo para ossadas que seriam de presos políticos desaparecidos no Brasil, na década de 70. A prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, esteve no local com o secretário municipal dos Negócios Jurídicos, Dalmo de Abreu Dallari. (Foto: Luiz Carlos Leite/Folhapress) - Folhapress

Meu tio estava sentado ao meu lado, quando disse que, mesmo sem ele querer, colaborou tanto na construção da vala, quanto em sua abertura e descoberta em 1992, durante o mandato de Luiza Erundina como prefeita da capital paulista. Está vendo a foto de capa dessa reportagem? Ele é o quarto homem que aparece segurando os sacos de ossadas.

Naquele dia, tudo fez sentido. Desde pequena, eu frequentava o cemitério com meus pais. Na ala esquerda, em uma placa vermelha de letras brancas, a frase de Luiza Erundina dizia assim:

"Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado Policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos".

Esta placa sempre esteve lá, principalmente no Dia de Finados, quando a primeira missa dentro do cemitério também fazia uma homenagem a todas as vítimas da Ditadura Civil-Militar encontradas naquele lugar.

Homenagem aos que morreram em decorrência da repressão do regime militar
Homenagem aos que morreram em decorrência da repressão do regime militar - Arquivo EBC

Ao escolher ser jornalista e escritora, escolhi também contar essas histórias. Em 2020, publiquei nesta Folha uma reportagem ouvindo os moradores de Perus sobre esse período. E para narrar a morte não tem muito jeito, é preciso vivê-la um pouco. Entrar em contato. Seja nas informações gerais – onde morreu, por que morreu, quando morreu – ou na profundidade do sentimento de quem fica. De quem sobrevive. De quem entrevistamos.

Muitas vezes, na melhor das intenções de narrar um fato com precisão e rapidez, não há tempo suficiente, nem espaço para chorar. Ao cobrir o fato, essas mortes também nos pegam em lugares diferentes: na morte recente de uma pessoa querida, na maternidade que compartilhamos com quem acabou de perder um filho, na tristeza por uma tragédia que conhecemos de outros tempos.

Tenho parado para pensar em todas as vezes que tive que noticiar uma morte, na imprensa ou na minha família. Embora existam dicas sobre como fazer isso, não há um manual de redação que dê conta de ensinar como informar o fim. Ninguém consegue medir a força e dor com que uma morte impacta cada um.

Mas há empatia. Há o ato de se colocar no lugar do outro e imaginar: como eu gostaria de receber essa notícia? Já parou pra pensar em quais perguntas você acharia cruéis, inadequadas em caso de uma grande perda? Quais cuidados você gostaria que tivessem em uma entrevista sobre ela?

Em 2021, entrevistei nossa hoje Ministra de Relações Étnico-Raciais, Anielle Franco. Ela amamentava enquanto conversava comigo. Antes da prosa, fiquei em dúvida sobre o que perguntar. Quantas vezes aquela mulher já não teria respondido as mesmas perguntas, mexendo de novo em sua dor?

Tentei caminhar pela memória. As memórias de sua infância, onde inevitavelmente também mora sua irmã. As brincadeiras no Complexo da Maré, o apoio incondicional da mais velha em tudo.

Obviamente, a dor também poderia ser despertada nessas lembranças. E foi. E é. Mas antes mesmo de falar de morte, falamos de vida e legado. E, pra mim, tudo que diz sobre morte na verdade é uma tentativa de continuarmos vivos. "As mulheres negras não podem virar protagonistas só depois de mortas" é a frase de Anielle que se tornou o título da reportagem decorrente da entrevista.

Leia: Homenagens em vida - uma onda de amor para Ana Mi

Em 2020, fui uma das escritoras do livro Heroínas dessa História - mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura, da Editora Autêntica. Era um projeto do Instituto Vladimir Herzog. Minha missão: contar a história de vida de Damaris Lucena, uma mulher negra, maranhense, que viveu a Ditadura Civil-Militar no Brasil.

Embora a ideia fosse falar sobre vida, o verbo viver sempre foi permeado por muitas mortes na trajetória de Damaris. Já com mais de 90 anos e acometida por um câncer, ela me concedeu essa entrevista aos poucos. Pedia para se deitar ou sentar, porque o corpo cansava. "Você já levou choque, assim, choque no ferro?", me indagou. "Quem leva muitos choques fica com labirintite. Por isso preciso deitar".

Não havia o que ser dito sobre isso. Apenas acolher, respeitar e, talvez, tentar imaginar um pouco do que ela passou. Ao longo da entrevista, ela narrou com detalhes como seu esposo, Antonio Lucena, foi assassinado. Ele foi morto em sua frente e na frente dos filhos. Os detalhes contados pela testemunha ocular, viva e emocionada daquela morte estava na minha frente e me fez me sentir dentro daquela cena.

O que dizer a uma senhora de 90 anos, que foi torturada até perder o seu marido brutalmente e ser obrigada a se exilar do seu país? Não tinha o que dizer e eu não disse. Acredito que, muitas vezes, o silêncio é a palavra mais importante com que se pode acolher alguém que viveu uma tragédia assim.

Mais do que isso, na nossa profissão é preciso estar atento ao durante e também ao depois. Como descrever essa morte sem estereotipar essa pessoa? Como narrar sem colocar qualquer familiar como culpado ou em sofrimento mais uma vez? Como honrar, ao mesmo tempo, fatos e sentimentos?

Depois da última conversa com a Damaris, fiquei dias pensando em como eu escreveria sobre o episódio. Eu não queria ser sensacionalista, tampouco rasa. O objetivo do livro era contar história de vida, mas a morte era um aspecto central na vida daquela mulher. Decidi que aquele episódio deveria estar, sim, em meu texto. Minhas editoras concordaram. Seguimos. Mas eu ainda não conseguia sair do lugar. O prazo estava acabando, o texto estava praticamente pronto, mas não à altura do que Damaris havia narrado.

Acredito que textos são como massa de pão. É preciso deixar dormir de um dia pro outro, para tomar forma. Fiz isso. Dormi. E nesse dia sonhei com toda a cena que Damaris tinha me contado. A diferença é que o quintal da casa era o meu. E o homem caído no concreto não era seu marido, mas meu pai. A sua dor me aproximou da minha perda (que vocês podem ler aqui em ‘A urgência de vida em mim’). Depois do sonho, eu finalmente escrevi o trecho que faltava e entreguei o capítulo.

Mas o livro não era sobre mim, a dor dela não era a minha. Tenho esse como um grande aprendizado. Tentamos - e precisamos - nos colocar no lugar do outro. Mas precisamos enxergar o outro. É a partir dele, da sua história, que devemos contar. Mesmo que para isso precisemos encontrar dentro de nós sentimentos de identificação, sentir e até chorar.

Trago o assunto para uma verdadeira reflexão. Tenho mais perguntas do que respostas. Em 2021, produzi uma das séries do podcast Marimbás, intitulada "Territórios da Memória", uma parceria do Nós, mulheres da periferia com o Instituto Vladimir Herzog.

As entrevistas realizadas para a série me mostraram que a Ditadura e suas reminiscências afetaram (e continuam afetando) as periferias de modos diferentes. Embora ouvir histórias esteja na nossa essência enquanto jornalista, as memórias da Ditadura nas periferias não são tão fáceis de ouvir. Elas mexem com feridas que ainda estão muito abertas, principalmente porque estamos falando das dores de pessoas que foram direta ou indiretamente atingidas pelo período. E que continuam vivendo os resquícios desse período. Durante a realização das entrevistas, eu chorei muitas vezes. E, depois, tive que me distanciar do tema um, dois dias, para então conseguir voltar para a construção das reportagens.

Eu precisei compartilhar, trocar com outras jornalistas, me sentir abraçada mesmo que virtualmente, porque a dor de cada entrevistado não passou por mim distanciada, como ditavam as cartilhas do jornalismo do meu tempo de faculdade. Deve ser porque as antigas cartilhas não imaginavam que nós, um dia, iríamos contar as nossas próprias histórias.

Não é tranquilo ouvir histórias de familiares desaparecidos, de amigos que foram mortos pelo regime, de pais e mães que passaram por muitas dificuldades diante da alta dos preços. Não era naquele tempo, não é hoje, não vai ser amanhã. Mas manter viva a memória de ontem e de hoje são essenciais para que alguns crimes nunca mais voltem a acontecer. Nunca mais.


Yahoo Notícias fecha redação no Brasil e deixa de atualizar site, FSP

 Yahoo encerrou nesta sexta-feira (31) seu site de notícias no Brasil. A redação no país foi fechada e cerca de 20 jornalistas foram dispensados.

O site tinha notícias de políticaeconomiaesportescelebridades e outros temas. Também produzia materiais em vídeo e conteúdos de branded content.

"Por uma decisão global do grupo Yahoo, o Yahoo Brasil encerrará suas atividades", escreveu Alessandra Blanco, que era diretora da empresa no país, em uma rede social. "Agradeço demais ao time incrível do Yahoo Brasil, valente e criativo até o fim."

Logo do Yahoo em prédio de Nova York, nos Estados Unidos
Logo do Yahoo em prédio de Nova York, nos Estados Unidos - Chris Helgren/Reuters

O fechamento foi comunicado aos funcionários brasileiros no começo de fevereiro. A redação do site ficava na avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo.

A reportagem apurou que foram 80 demissões na operação do Yahoo no país. Os cortes afetam, além da área editorial, profissionais de negócios, tecnologia e publicidade.

Criado em 1994 nos Estados Unidos, o Yahoo foi uma das primeiras gigantes de tecnologia que ganharam milhões de dólares com serviços prestados na internet. O site começou com um diretório de páginas online e depois se tornou referência em buscas, antes de o Google dominar o serviço.

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Ainda nos primeiros anos, a empresa investiu na criação de um portal de notícias e buscou apostar em várias frentes, como provedor de email, armazenamento de fotos e venda de anúncios direcionados online, distribuídos a partir do uso de dados de comportamento dos usuários.

A companhia americana mudou de dono duas vezes nos últimos anos. Em 2016, foi comprado pela operadora de telefonia Verizon, por US$ 4,8 bilhões. Três anos depois, em 2019, o fundo de investimento Apollo Global Management comprou 90% das ações do Yahoo e assumiu o controle.

No começo de 2023, a empresa anunciou que cortaria 20% de sua força de trabalho global, o que representaria cerca de 1.600 pessoas.

Em fevereiro, o CEO Jim Lanzone disse ao site Axios que os cortes vieram na esteira de uma mudança no setor de publicidade digital, que teve uma freada no ritmo de crescimento. De acordo com o Axios, o Yahoo lucrou US$ 8 bilhões em 2022, considerando todas as suas áreas.

O setor de tecnologia tenta reajustar gastos ao atual cenário econômico, após forte crescimento durante a pandemia de Covid. Em março, a Meta anunciou o corte de 10 mil funcionários, apenas quatro meses após ter divulgado a demissão de outros 11 mil. Amazon, Microsoft e Google também fizeram desligamentos de mais de dez mil empregados neste ano.

Com o fim do site de notícias, o endereço yahoo.com.br passou a exibir uma barra para fazer buscas, no centro, e um aviso de que a publicação de conteúdos foi encerrada. O serviço de email segue operante.

Folha entrou em contato com o Yahoo Brasil, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.

Biogás quer decolar como combustível de aviação, Nayara Machado EPBR

 

Em expansão no Brasil, o biogás já é uma alternativa para substituir diesel e gás natural na geração de energia ou como combustível no transporte pesado, mas quer ir além e chegar até a aviação.
 
No final do ano passado, a empresa de biotecnologia Geo Biogás & Tech anunciou investimento de R$ 15 milhões em uma planta-piloto para produção de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) em unidades de geração de biogás no Paraná. 
 
O projeto de demonstração terá capacidade de fabricação inicial de 660 litros por dia, a partir dos resíduos de cana-de-açúcar, como vinhaça e torta de filtro. 
 
A rota de produção é a Fischer-Tropsch (FT), onde o vapor do gás renovável gera hidrogênio, eliminando a necessidade de investimentos em eletrólise – o que reduz o consumo energético.
 
A FT já é aprovada internacionalmente para uso em aeronaves, mas ainda não conseguiu ganhar mercado. Um dos motivos é a disponibilidade de biogás. É justamente essa lacuna que o Brasil pode preencher.
 
“Lá fora ninguém olha para ela porque não tem escala de biogás”, comenta Alessandro Gardemann, CEO da Geo. Na última quinta (30/3), a empresa reuniu especialistas em um painel sobre o potencial do SAF no Brasil.
 
O executivo afirma que a ideia é combinar a escala do biogás brasileiro, principalmente da cana de açúcar, com a tecnologia Fischer-Tropsch, para mostrar ao resto do mundo que há alternativas além dos óleos vegetais.
 
“Nossa tese, frente às outras rotas, é que se for para todo mundo custar o mesmo tanto [em comparação com o querosene fóssil], a gente parte de um combustível mais barato. O dólar por milhão de BTU do biometano é metade do de etanol, ou um terço do óleo de dendê”, conta Gardemann. 
 
Por ser gerado a partir de resíduos, o biometano (o biogás purificado) é considerado um biocombustível avançado, e o SAF com esse insumo tem uma classificação ambiental alta na calculadora do Corsia (programa de descarbonização da aviação civil internacional).

Oferta versus demanda. Um estudo do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) aponta que a indústria de SAF deve alcançar 449 bilhões de litros até 2050.

Em 2022, a produção chegou a pouco mais de 300 milhões de litros
 
“O desafio é enorme, pois o mundo levou 20 anos para desenvolver uma indústria de biocombustíveis de base terrestre (biodiesel e bioetanol) de 165 bilhões de litros e, em pouco menos de 30 anos, terá que construir uma indústria quase três vezes maior”, diz a organização.
 
Atualmente, a única rota fornecendo SAF em escala comercial é a de Ácidos Graxos e Ésteres Hidroprocessados ​​(HEFA, em inglês), que utiliza óleos e gorduras.
 
E ela deve continuar predominante nos próximos dez a quinze anos, até que as de querosene parafínico sintético (FT-SPK) e de alcohol-to-jet (ATJ) ganhem mercado.

Tem biomassa, mas não tem infraestrutura. Diferente de países europeus – mais avançados na produção de SAF –, o Brasil tem matéria-prima de sobra, mas ainda não começou a investir em infraestrutura. E o mercado pressiona por uma regulação que indique que será viável instalar biorrefinarias aqui.
 
De acordo com um mapeamento da RSB (Roundtable on Sustainable Biomaterials), o potencial para produção de SAF a partir de resíduos da cana chega a 9 bilhões de litros, na rota ATJ, e mais 3,2 bilhões de litros com outros insumos pela FT.
 
O suficiente para cobrir toda a demanda atual de querosene no país (7,2 bilhões de litros) e volume extra para exportar.
 
Amanda Gondim, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coordenadora da Rede Brasileira de Bioquerosene (RBQAV), explica que o principal gargalo, hoje, é o Capex alto – instalar uma biorrefinaria custa, pelo menos, US$ 1 bilhão.
 
“Ninguém faz um investimento de US$ 1 bilhão se não se sentir seguro”.
 
Para Gondim, o projeto de lei construído pelo grupo de trabalho do Combustível do Futuro, ao trazer uma obrigação de reduzir emissões com uso de SAF, é um caminho para dar essa segurança ao investidor.
 
Por enquanto, há dois anúncios de investimentos em escala em território brasileiro. A Petrobras incluiu o biorrefino no seu planejamento, com meta de produção de 6 mil barris/dia de diesel renovável e outros 6 mil barris/dia de bioQAV. Prazos não foram detalhados.
 
Já a BBF anunciou em abril do ano passado uma biorrefinaria na Zona Franca de Manaus (AM). A matéria-prima será o óleo de palma produzido pela BBF no interior de Roraima.
 
A expectativa é que sejam investidos cerca de R$ 2 bilhões na produção, inicial, de 500 milhões de litros de biocombustíveis por ano. A unidade está prevista para o primeiro trimestre de 2025 e será flexível — ou seja, poderá produzir entre diesel verde e SAF, na rota HEFA.
 
“Outro desafio é investir em desenvolvimento e tecnologia para baratear os custos”, observa a coordenadora da RBQAV. 
 
“São diversos tipos de biomassa que podem ser utilizadas para obter também uma série de produtos. Cada região do país vai ter uma mais viável”.
 
Ela cita como exemplo o Nordeste, que não tem a tradição de produção de óleo de soja. Lá, as rotas que utilizam biogás ou álcool de cana poderiam ser mais interessantes.

Novo carro popular vai custar entre R$ 50 mil e R$ 60 mil e deverá consumir somente etanol, Eduardo Sodré FSP

 A volta do carro popular é o principal tema da indústria automotiva neste momento. A ideia agrada tanto a revendedores –ansiosos pela retomada do movimento nas lojas– como a montadoras. O assunto está sendo analisado pelo MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).

O plano é lançar modelos movidos apenas a etanol, que custarão entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. Os motores deverão ser os mesmos 1.0 utilizados atualmente, mas com ganhos em desempenho e consumo.

A escolha do combustível está relacionada a metas de descarbonização. Se os carros forem flex, o mais provável é que os consumidores priorizem a gasolina na maior parte do país, devido à relação entre a autonomia e o preço praticado nas bombas.

Fiat Mobi (à esq.), Renault Kwid (centro) e Volkswagen Up! fizeram parte de uma das últimas gerações de carros populares disponíveis no Brasil - Rubens Cavallari - 16.ago.2016/Folhapress

A proposta é oferecer um produto com maior apelo ambiental e, dessa forma, costurar uma categoria de tributação exclusiva, adequada ao novo arcabouço fiscal.

Uma das possibilidades é substituir a nomenclatura "carro popular" por "carro verde". Será necessário fazer um trabalho junto ao público-alvo para mostrar as vantagens do etanol e exorcizar antigos fantasmas, como o medo do desabastecimento e a disparada repentina dos preços.

O grupo Stellantis, que reúne as marcas Citroën, Fiat, Jeep, Peugeot e RAM, é o mais animado com o tema. A empresa trabalha há tempos com a possibilidade de relançar carros movidos somente a álcool, além de oferecer opções híbridas.

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A companhia anunciou nesta sexta o projeto Bio-Electro, que estabelece parcerias para acelerar o desenvolvimento de veículos que combinam eletricidade e etanol.

Antonio Filosa, presidente do grupo na América Latina, tem insistido no combustível de origem renovável. Caso o projeto seja posto em prática, é provável que a companhia corra para repetir o êxito obtido em 1990 com o Uno Mille.

O carro chegou às lojas dois meses após o governo Collor reduzir o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para modelos com motores de 800 cm³ a 1.000 cm³. A alíquota caiu de 37% para 20%.

A Fiat aproveitou o que tinha na prateleira e lançou um modelo que não trazia encostos de cabeça entre os itens de série. O sistema de ventilação tinha saídas de ar apenas na parte central do painel, e o retrovisor do lado direito não estava disponível.

É importante lembrar que o mercado brasileiro começava a se abrir naquele momento. Os carros disponíveis eram ultrapassados e rentáveis, muito distantes de importados que começavam a chegar. Produzi-los aqui também era inviável: a importação dos equipamentos robotizados necessários havia sido proibida por anos, a indústria estava obsoleta.

Os automóveis populares dominaram o mercado por quase 40 anos, mas a busca por rentabilidade em meio à queda nas vendas foi minando a proposta.

As montadoras tiveram que aperfeiçoar seus veículos para atender a normas ambientais e de segurança, e a margem de lucro mais apertada dos carros "mil" tornava esses produtos desinteressantes para as marcas.

Em um cenário de juros baixos e inadimplência sob controle, a indústria começou a apostar em modelos de maior valor agregado. Veio então a onda dos utilitários compactos, que hoje são os modelos de maior sucesso.

A crise no setor, contudo, se avolumou ao longo da década passada. Quando parecia que as coisas iriam melhorar, veio a pandemia de Covid-19.

A ociosidade nas linhas de montagem e as paradas de produção registradas por queda na demanda são sinais de que o modelo atual não se sustenta.

Montadoras são multinacionais, e hoje investem na transformação de fábricas de carros a combustão em unidades dedicadas a baterias e carros elétricos.

Esse movimento consome bilhões de dólares na Europa, na China e, mais lentamente, nos Estados Unidos. Sobra pouco para investir em mercados emergentes.

Ao ficar de fora dos planos globais, o risco da desindustrialização aumenta no Brasil. O cenário ideal seria o país virar a chave e também receber aportes para montagem local de carros elétricos, mas é um passo ainda distante, que só vai ocorrer quando esses veículos ganharem escala mundial e, com os custos amortizados, se igualarem em preço às opções a combustão.

A chegada de fábricas de modelos eletrificados –como as instalações das chinesas GWM e BYD– são importantes e indicam o futuro, mas o momento atual também exige volume de produção para justificar tantas plantas em operação Brasil afora.

Por isso, a proposta da volta dos carros populares está em alta. Quando os preços dos automóveis 1.0 mais simples ultrapassaram os R$ 65 mil, esse conceito perdeu o sentido.

O problema não está no valor em si, mas na rápida elevação que ocorreu ao longo da pandemia. O Fiat Mobi Like, por exemplo, custava R$ 43,7 mil em janeiro de 2020. Neste mês de março, o mesmo carro é anunciado por R$ 69 mil, uma alta de 57,9%.

Os aumentos foram acompanhados das seguidas altas nas taxas de juros, que se somam à inflação geral e à perda de renda da população. Comprar um veículo zero-quilômetro tornou-se, novamente, um sonho distante.

Os planos de agora, entretanto, não são originais. Muda-se a receita, mas os ingredientes básicos são os mesmos. Os modelos populares são filhos das crises econômicas desde os anos 1960.

Os primeiros surgiram no fim de 1964 para atender a um programa de incentivos criado pelo governo militar. Os carros eram oferecidos em lotes liberados pela Caixa Econômica Federal. Para custar menos, eram simplórios.

O Willys Teimoso, por exemplo, tinha bancos dianteiros que se resumiam a uma forração levemente acolchoada fixada diretamente na estrutura de metal, que ficava aparente. Grosso modo, lembrava uma maca antiga.

O carro era a versão depenada do Gordini, que perdeu 65 quilos em equipamentos e adereços. Não havia setas: o motorista precisava sinalizar com a mão antes de fazer as conversões.

A ideia não durou dois anos. Quem adquiria um modelo desse tipo buscava equipá-lo para obter algum conforto e status. Além do Teimoso, carros como os Volkswagen Pé-de-Boi, os DKW-Vemag Pracinha e os Simca Profissional foram descaracterizados.

Os carros de agora, contudo, não seriam tão empobrecidos como no passado. A legislação relativa à segurança será mantida, o que garante, ao menos, a presença de airbags frontais e freios com ABS (sistema que evita o travamento das rodas em paradas de emergência).

Já as centrais multimídia e outros itens conectados não devem fazer parte dos pacotes de série. Ainda não se sabe se os modelos terão ar-condicionado incluso na lista básica, mas os sistemas de direção com assistência elétrica tendem a ser mantidos.