Caro leitor,
o desejo de um acerto de contas com o Supremo Tribunal Federal não é um exclusivo de Jair Bolsonaro. Sua última ameaça à Corte, dizendo que definirá o que fazer em relação a ela após ser reeleito, é a retomada de uma ideia expressa pela primeira vez em 2018, portanto, muito antes de seu governo sofrer qualquer derrota no plenário do tribunal em temas que foram desde o controle do combate à pandemia de covid-19 à limitação da autonomia das universidades públicas.
Era 2 de julho de 2018. Então candidato à Presidência pelo PSL, Bolsonaro revelou em uma entrevista em Fortaleza (CE) que pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do STF. Seria uma forma de pôr, segundo suas palavras, “juízes isentos lá dentro”. O modelo seguia a fórmula dos argumentos usados na Venezuela pelo tenente-coronel Hugo Chávez, outro militar que encheu de generais seu governo. No País vizinho, a Justiça se tornou fiel ao presidente e não à Constituição.
O caminho do chavismo para a ditadura começou com uma Assembleia Constituinte, que mudou o Supremo, o Congresso e ampliou os poderes de Chávez. Seu grupo político nunca mais deixou o poder. Pois não era uma nova constituinte o desejo expresso em 2018 do candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o hoje senador eleito Hamilton Mourão (Republicano-RS)?
O general, que já confessou admiração pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, acreditava que a nova Carta poderia ser feita por um grupo de notáveis. Não explicou quem seriam esses “notáveis” e no que se teriam notabilizado. Mourão teve de dizer que não pretendia usurpar a soberania popular ou rasgar a Constituição de 1988. É que a fórmula parecia repetir mais uma vez o que Chávez e Nicolás Maduro fizeram na Venezuela.
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Mourão conheceu de perto a ascensão da ditadura chavista. Foi adido militar naquele país entre 2002 e 2004. Ia a manifestações de rua e conversava com populares antes de escrever relatórios ainda hoje protegidos pelo sigilo. O general e senador eleito prestaria um grande serviço à política nacional se revelasse o conteúdo de seus despachos de Caracas.
Vitoriosos na eleição de 2018, Bolsonaro e Mourão não desistiram da ideia de capturar o Supremo. Pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição do tribunal, incluindo no projeto de Reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do STF. Ela seria definida por meio de Lei Complementar.
A medida foi incluída na Proposta de Emenda à Constituição defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, outro que pretendia saber como “lidar com o Supremo”. O artigo não passou despercebido no Congresso. Nada o justificava, pensava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, até porque o impacto de 11 aposentadorias era irrisório para o caixa da Previdência. Os críticos viram nele uma manobra para abaixar a idade limite dos ministros, aposentando compulsoriamente mais de metade da Corte, parte de um processo que foi chamado pelo professor e ex-chanceler Celso Lafer de “cupinização da democracia”.
Sem conseguir controlar o STF com magistrados dóceis, Bolsonaro viveu às turras com o tribunal, ameaçando não cumprir suas ordens e esbravejando contra as investigações e inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Protegido pelo Centrão no Congresso contra toda possibilidade de impeachment, o presidente viu-se frustrado em cerca de três dezenas de julgamentos, muitos dos quais derrubaram decretos e medidas provisórias considerados inconstitucionais.
Em 2020, quando o então ministro Celso de Mello decidiu convocar para depor até “debaixo de vara” os generais Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno no inquérito sobre interferência política na Polícia Federal, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, um dos ideólogos do bolsonarismo, compartilhou um texto com colegas que representa até hoje a visão de muitos dos generais do governo.
Rocha Paiva enxergava excessos nas ações do Supremo para conter Bolsonaro. “Quem tem certeza da própria autoridade moral não precisa decidir com ameaças provocativas e inúteis. Serenidade e bom senso é o que se espera das autoridades da República, ao invés de egolatria nociva e disruptiva em momento tão delicado.” O general lembrou até a famosa indagação atribuída ao marechal Floriano Peixoto ao saber que o Supremo ia conceder habeas corpus aos envolvidos na Revolta da Armada: “Não sei amanhã quem lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão.”
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O País vivia à beira de um conflito institucional. Ao analisar a crise do estado liberal italiano após a Grande Guerra de 1914-1918, Antonio Gramsci identificou ali uma crise de autoridade. Dizia que ela consistia no fato de que o velho morre e o novo não se desnudou por completo. “Neste interregno, verificam-se fenômenos patológicos os mais variados.”
Uma das mais famosas passagens dos Cadernos do Cárcere (Q 3,34) do pensador italiano – transformado em anticristo no Brasil por uma direita populista e ultramontana –, ela é lembrada por Fernando Henrique Cardoso e muitos dos que analisam a crise que levou à ascensão de forças políticas nacionalistas e extremistas em países tão diversos quanto Rússia, Turquia, Índia, Itália, Hungria e Brasil.
Gramsci comparou essa crise ao interregno, o período entre um reinado e outro na Roma antiga. Ela se caracteriza pelo fato de as velhas camadas dirigentes não conseguirem mais desempenhar sua função. Assistiu-se entre 2018 e 20222 no Brasil o naufrágio da direita social-liberal, personificada no resultado eleitoral colhido pelo PSDB. O impasse que disso resulta não pode ser resolvido pela restauração do velho.
Mas a nova ordem é incerta. E traz um perigo: a potencialidade obscura nela existente do surgimento de homens providenciais ou carismáticos. Eles exploram os ressentimentos contra o novo, abrindo um período de extrema insegurança. É aqui que surge Jair Bolsonaro e a versão verde-amarela do chavismo. Ao contrário de seu oponente, Luiz Inácio Lula da Silva que, pressionado por forças do centro, não detalha como deve agir na economia, Bolsonaro e os generais que o apoiam sugerem claramente o que pretendem fazer.
Desta vez, o aumento do número de ministros da Corte foi defendido pelo general Mourão e admitido por Bolsonaro. Só os ingênuos não enxergam o alcance de tal medida. Se fosse proposta pelo PT, seria a prova para os que acusam Lula e os seus de planejar transformar o Brasil em uma Venezuela. Como a medida saiu das bocas de Mourão e de Bolsonaro, muitos silenciam, enquanto os críticos de sempre mais uma vez perguntam: Se têm essa ousadia em plena campanha eleitoral, o que se pode esperar deles vencido o pleito?
E, assim, a campanha eleitoral vai se desenrolando. Diante dela, o País parece anestesiado, pois “entre a ideia e a realidade, entre a ação e o movimento, tomba a sombra”, como escreveu T.S. Eliot em The Hollow Men. O mundo parece se transformar não por meio da revolução imaginada por Gramsci, mas como concluiu Eliot em seu poema: “This is the way the world ends/ Not with a bang but a whimper” Ou na tradução de Ivan Junqueira: “Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido”.
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