As imagens que abrem o filme “Alvorada” mostram aquelas colunas sobrenaturais que Niemeyer fez brotar do cerrado na forma de palácio, lar destinado ao líder desta Roma mestiça e tropical, sobre a qual escreveu Darcy Ribeiro. O som da “Sinfonia nº 10”, de Villa-Lobos, só reforça a evocação de um Brasil moderno, que não parece o mesmo daquele do rame-rame da velha política ao redor.
Mas são cenas um tanto fúnebres. “É um velório dentro do palácio”, diz a cineasta Anna Muylaert. “De início, achei que estávamos lá para o que seria o velório da presidente, mas descobrimos que era o velório do país. Porque daí para frente, entramos na maior crise moral de nossa história.”
O daí a que ela se refere são os últimos dias de Dilma Rousseff no poder. Muylaert e a também diretora Lô Politi tiveram acesso direto à ex-presidente nos quatro meses entre a autorização da abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, em abril de 2016, e a sua destituição pelo Senado. O documentário compete no Festival É Tudo Verdade e terá exibições online ao longo desta semana.
Com poucas interferências nas cenas, salvo rápidas conversas com Dilma, as cineastas captam o seu padecimento nos corredores daquele cenário de utopia futurista, em meio às emas que pastam e à marcha um tanto ridícula dos Dragões da Independência sob o sol inclemente de Brasília.
“É um documentário que tem quase uma dramaturgia, porque a realidade em si era muito distópica”, diz Politi.
De fato, o filme remete muito aos chamados “siege movies”, gênero que acompanha a resistência de personagens encurralados. Herança talvez do fato de que ambas as cineastas têm carreira consolidada na ficção —Muylaert é a diretora de longas como “Que Horas Ela Volta?” e “É Proibido Fumar”, e Politi dirigiu “Jonas” e produziu a série “3%”.
Logo no início, o piscineiro do Alvorada nota que o espelho d’água, outrora azul cristalino, ficou verde, turvo, como se contaminado por forças externas. Das telas de TV na cozinha ou nas repartições da residência presidencial, sucedem-se votos de deputados irascíveis, que bradam em nome de Deus, da família, do país.
“Eles vão entrando naquele mundo como se estivessem se infiltrando pelos poros do palácio, para tirar a presidente de lá”, diz Politi. Diretora da campanha eleitoral que levou Dilma à sua primeira vitória, em 2010, partiu dela a ideia de acompanhar a intimidade da ex-presidente naqueles dias em que, diz, “a nuvem de melancolia era tão densa que dava até para cortar com uma faca”.
Para a surpresa das diretoras, Dilma topou de imediato a empreitada de deixar sua rotina ser documentada, ainda que os momentos de confronto e de evidente desconforto com as câmeras não sejam poucos.
“Ela sempre entendeu que era importante documentar aquilo para preservar a narrativa para o futuro, por mais que fosse algo pesado”, diz Politi, que ainda não mostrou o resultado à ex-presidente petista.
Emoldurada por uma tapeçaria de Di Cavalcanti, ela é flagrada rememorando como pegou gosto pelo tango ao ouvir os discos de Gardel de uma companheira de cela no período em que foi encarcerada pela ditadura. Fala ainda sobre Machado de Assis e sobre o Diabo em Guimarães Rosa. E Deus? “É uma certa ausência”, diz a certa altura.
À câmera, Dilma prefere falar menos de política. Quando reflete sobre as causas do impeachment, afirma que o PT não se refestelou nos vícios da velha política, mas que, ao contrário, aperfeiçoou mecanismos de combate à corrupção, algo não muito diferente do próprio discurso oficial do partido a respeito do assunto.
Há também inúmeros trechos de sua proverbial rispidez —“mas não diferente da rispidez da maioria dos homens”, como emenda Muylaert. “Dentro de uma visão machista, o que se espera é que uma mulher seja obediente e só diga ‘sim, senhor’, e isso a Dilma realmente não é.”
“Dentre os vários adjetivos que se pode dar a esse golpe, um deles é misógino, e é isso que o torna muito mais impactante”, afirma Politi. Não foi por outro motivo que elas escolheram abrir o filme com o som do voto do então deputado federal Jair Bolsonaro na Câmara, defendendo a cassação da presidente e celebrando o homem que a torturou, o coronel Carlos Brilhante Ustra. “Tínhamos escolhido aquela fala já antes da eleição dele, porque ela tinha sido a mais impactante, e a mais sintomática”, completa.
Sintomática do machismo na sociedade brasileira que mais tarde o elegeria, na visão das diretoras. “O fato de o país ter votado na pessoa que homenageou um sujeito que bateu fisicamente na presidente mostra um ódio à mulher”, diz Muylaert, que também vê na eleição de Bolsonaro uma espécie de pane no sistema.
“O Brasil sempre foi governado pela Casa Grande, pelos senhores de engenho, até vir Lula, o primeiro proletário, e depois a primeira mulher”, afirma a diretora. “Mas o presidente atual não é senhor de engenho, é um capitão do mato que os senhores achavam que iria obedecê-los. Mas ele não obedece, ele só serve à repressão, e aí chegamos a essa tragédia de hoje.”
As duas diretoras nutrem outros projetos sobre mulheres para rodar depois da pandemia. Lô Politi escalou Sophie Charlotte para viver Gal Costa na cinebiografia que a acompanhará entre a gravação de “Divino Maravilhoso” e “Fa-Tal”, quando a cantora segurou sozinha o estandarte do tropicalismo enquanto Gil e Caetano estavam exilados. E Anna Muylaert quer levar às telas “O Clube das Mulheres de Negócios”, sátira sobre o machismo que terá os homens no papel de subalternos.
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