sábado, 3 de abril de 2021

A Lei de Segurança Nacional deve ser substituída por outra legislação? SIM e NÃO

SIMMarcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da UFMG

Emilio Peluso Neder Meyer

Professor associado de direito constitucional da Faculdade de Direito da UFMG

A Lei de Segurança Nacional (LSN, lei 7.170/1983) é um estatuto legal da ditadura civil-militar instalada com o golpe de 1964. Fundada na doutrina de segurança nacional, a divergência política é ali tratada na lógica de que haveria um inimigo interno a ser eliminado.

Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 buscou excluir qualquer resquício dessa doutrina —a expressão aparece na Constituição de 1988 apenas uma vez, no artigo 173 e com outro sentido normativo. Nenhuma das legislaturas no período democrático, contudo, empreendeu esforços efetivos para revogar a LSN e promover sua substituição, apesar de a Comissão Nacional da Verdade, em 2014, ter recomendado a sua revogação.

Para alguns, a LSN conteria dispositivos ainda “úteis”: ela buscaria proteger a integridade de instituições constitucionais, do território e da soberania nacional, além de criminalizar tentativas de golpe de Estado. Todavia, a velha doutrina da segurança nacional é a base de todo o diploma normativo e, portanto, contraria a Constituição de 1988. A lei permitiria a incomunicabilidade do preso ou sua custódia pela autoridade que preside o inquérito e o recurso ao Código Penal Militar para punir civis, além de usar a segurança nacional como base para criminalizar a suposta calúnia ou difamação do presidente da República e de outras autoridades.

É esse último dispositivo que tem sido inédita e reiteradamente usado para promover inquéritos policiais contra críticos do atual presidente: o número de investigações cresceu 285%. Órgãos estatais, ainda que suas condutas pudessem configurar abuso de autoridade, não veem problemas em promover requisições à Polícia Federal para tentar conter a cidadania crítica exercida pela liberdade de expressão constitucionalmente assegurada.

Casos como o de Felipe Neto, de Pedro Hallal, de professores universitários e de inúmeras outras pessoas que se posicionaram contra a condução política do governo federal em face da pandemia do coronavírus passam a ser tratados como questões de segurança nacional. A tentativa de controle da crítica pública alcançou inclusive os meios acadêmicos e científicos, com uma inconstitucional orientação do Ministério da Educação para que reitores punissem professores críticos do atual governo.

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A LSN foi desafiada no Supremo Tribunal Federal por meio de ADPFs (arguições de descumprimento de preceito fundamental) e de um habeas corpus coletivo. Em algumas ações, requer-se a declaração total de inconstitucionalidade da lei. Em outras, o que se pretende é a preservação dos dispositivos que visam evitar ataques ao regime democrático, como aqueles que teriam sido desferidos pelos apoiadores do presidente e por ele próprio. Várias entidades foram admitidas como amigos da corte em tais ações, o que mostra a forte reação ao contexto persecutório e à omissão legislativa em substituir a lei. Distribuídas ao ministro Gilmar Mendes, é crucial que seja concedida cautelar para barrar os inúmeros inquéritos policiais em andamento e pressionar o debate legislativo.

A Constituição de 1988 se precaveu contra ataques às instituições, definindo como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e a democracia.

O projeto de lei 3.864/2020 é o que busca mais adequadamente substituir a LSN de acordo com a Constituição, e o Congresso Nacional deve sobre ele deliberar imediatamente.


Não 

Ivan Sartori

Desembargador aposentado, mestre em direito da saúde e professor universitário, é ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo

Sancionada em 1983, no governo do general João Figueiredo, a Lei de Segurança Nacional (LSN) voltou a ser debatida e amplamente questionada em razão dos episódios recentes envolvendo o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e o youtuber Felipe Neto.

Embora completamente distintos, ambos chamaram a atenção por terem sido invocadas, em desfavor dos increpados, as tipificações penais desse diploma. Em razão do fatídico vídeo de Silveira, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, ordenou sua prisão em flagrante.

Sem se aprofundar no estudo da ordem prisional, discutíveis, por certo, a caracterização do flagrante e a prática de crime inafiançável. Mesmo assim, os ministros do Supremo, ato contínuo, endossaram, de forma unânime, a decisão do colega, o que foi referendado pela Câmara dos Deputados.

O deputado segue em prisão domiciliar, cerceado em seus direitos políticos e de expressão. Aí que entra em cena a LSN, pois Moraes fez menção à prática dos delitos previstos no artigo 22, o qual define como crime “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”; e no artigo 23, que define como crime “incitar à subversão da ordem política ou social”.

O ministro citou, ainda, os artigos 17 (“tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”) e 18 (“tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados”).Em relação a Felipe Neto, que, em suas redes sociais, chamou o presidente Jair Bolsonaro de “genocida”, adveio sua intimação para depor na Polícia Civil do Rio de Janeiro, por infringência ao artigo 26 da LSN, que qualifica como crime “caluniar ou difamar o presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do STF”. Posteriormente, a Justiça entendeu que a competência para a apuração dos fatos caberia à Polícia Federal, resultando cancelada a intimação.

Os enquadramentos referidos, em uma lei esparsa editada há cerca de 38 anos, suscitaram relevante debate sobre ela. Inquestionável a necessidade legal da delimitação dos aspectos basilares que incidem sobre a necessidade de resguardar a segurança institucional e a soberania do país. E os casos aqui referidos —bem diferentes entre si, pois o enquadramento de Felipe Neto se dá em face de dispositivo claro, objetivo, direto —demonstram que a Lei de Segurança Nacional carece sim de uma imediata revisão de conteúdo.

Ainda que os fatos envolvendo o deputado e o influenciador digital mereçam reação de ordem penal, certo é que essa lei, em alguns de seus dispositivos, de baixa densidade normativa, mormente aqueles colacionados na decisão de Moraes, pode dar margem a utilizações não republicanas ou mesmo servir como instrumento de perseguição política ou ideológica.

Está mais do que na hora de promover sua atualização, para conferir-se ao texto um aspecto consentâneo com a realidade e princípios atuais. Justamente pela possibilidade de aplicação arbitrária é que se pode até questionar se esse diploma (ou alguns de seus dispositivos) foi mesmo recepcionado pela Constituição Federal de 1988. De todo modo, trata-se de legislação técnica e necessária aos interesses do país. Porém, ela deve existir sem dar margem à incidência seletiva e ditatorial.


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