Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.
Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.
O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.
Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.
Frias pai é merecedor de um reconhecimento ainda não feito pelo jornalismo. Nem mesmo na Folha. A extensão peculiar da liberdade informativa, base da identidade que o jornal veio a formar, só foi possibilitada por um fator contrário à pressão tradicional do poder econômico para conter o jornalismo entre limites estreitos. Tem um nome: é o fator Octavio Frias de Oliveira.
O jornal já se tornara o polo da rejeição pública à ditadura, com a campanha das Diretas Já induzida por Otavio. No regime civil, manteve a posição privilegiada com o jornalismo crítico aos problemas governamentais da abertura. E “esse movimento [do jornal] veio acompanhado do exercício do jornalismo investigativo”, como disse a O Globo, sobre o centenário da Folha, o presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech. “A Folha não inventou o jornalismo investigativo, mas a denúncia da fraude na licitação da ferrovia Norte-Sul (...), em 1987, foi um divisor de águas.”
Deu-se uma corrida obcecada às revelações do jornalismo investigativo. O que só foi possível porque Frias acionou uma capacidade extraordinária de reduzir ressentimentos e obter o convencimento dos atingidos, nos interesses e no prestígio, pelas revelações da Folha. Aos atos traumáticos do jornalismo, foi comum seguir-se imediata operação de Frias, regada a simpatia natural e completada com a oferta de espaço à resposta do atingido —argumento definitivo da inexistência de qualquer propósito que não o jornalismo democrático. A Folha compunha uma identidade única.
Os olhares de mútuo entendimento entre mim e a Folha macularam-se no governo Fernando Henrique. Desde a campanha eleitoral, toda a “mídia” serviu a ele, não só ao Plano Real e sua eficácia anti-inflacionária. O senso crítico e a responsabilidade social e institucional reprimiram-se. Houve muita ilegalidade e muita imoralidade, mas o comprometimento político e partidário contrapôs-se, com mais força, à crítica necessária e ao jornalismo investigativo.
O governo Fernando Henrique foi um período tão nefasto para a “mídia” —não considerado o aspecto financeiro, de grandes benefícios— que essa influência vigora até hoje. Mostrou-se em todas as campanhas eleitorais desde aqueles anos 1990. Fez o grande espetáculo da barragem protetora às violências judiciais e políticas da Lava Jato de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Mostra-se na complacência com a corrupção dos Aécios do PSDB. Já se entorta para a eleição presidencial de 2022.
Das crônicas de fundo político, o anteparo da Folha me levou a uma coluna de informações quentes e buriladas. Daí, isolado, passei à reação ao deletério fernandismo-peessedebismo. Por fim, terceirizado, a expor percepções perdidas ou relegadas no afundamento do país em crise total e mortal.
Quarenta anos que sinto sem divisões anuais, volume uniforme de tempo, nada que desejasse reviver. Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 da Folha: logo aos primeiros textos, tratar o assunto militares como qualquer outro, contra o velho tabu; aproveitar os desequilíbrios de Gilmar Mendes e invadir a intocabilidade do Supremo, com mais um tabu que caía; e revelar, com a Norte-Sul e muitas outra fraudes desvendadas e anuladas, a corrupção que é a alma do “desenvolvimento” no Brasil.
A imprensa está em crise, mundo afora. A Folha merece corrigir seu caminho para vencer mais essa pressão.
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