O cidadão de bem, pagador de impostos (exceto os que sonega), é um crédulo. Não basta recusar a vacina, celebrar a cloroquina e o fim da corrupção. Ele também abraça duas ideias que lhe parecem óbvias: quanto mais armado, mais seguro; quanto menos florestas, quanto mais madeira e minério vendermos e gado espalharmos, mais ricos. Lógico, não?
Bolsonaro e bolsonaretes de coturno explicaram para o cidadão de bem que o povo armado não será escravizado e que gente antibrasileira como Leonardo Di Caprio financia ONGs contra a nação. Armar e desmatar, nessa doutrina luminosa, são expressões da soberania popular e da soberania nacional, respectivamente. Armar e desmatar, na prática, alimentam a soberania do crime organizado. O patriota é viciado no autoengano voluntário.
Para cumprir seu desejo de "quero todo mundo armado!", o governo Bolsonaro já editou mais de 30 normas, entre decretos e portarias, para facilitar a obtenção de armas e dificultar a fiscalização estatal.
As ilegalidades ocorrem tanto no sentido formal, por extrapolar sua competência executiva de regulamentar a lei do desarmamento e usurpar poder do legislador, quanto no sentido substantivo, por esvaziar direitos previstos na lei e na Constituição.
Sua investida na área não tem limite. Já foi capaz de fraudar a separação de Poderes ao revogar e reeditar, com o mesmo conteúdo, decretos prestes a ser examinados pelo STF e pela Câmara dos Deputados.
O STF engoliu o truque à moda de Toffoli. Na fase mais dramática da pandemia, o governo tentou zerar alíquota de importação de armas, ato suspenso por Fachin, e voltou a ampliar acesso a armas em pleno Carnaval. A cada cidadão, o direito a um arsenal.
Ampliar oferta de armas, segundo evidências geradas no mundo todo, aumenta crime comum e organizado, culposo e doloso, premeditado e fútil. Aumenta homicídios por arma de fogo, feminicídios e mortes acidentais. Menor controle de armas e munições dificulta investigação criminal e reforça grupos paramilitares e milicianos. O Estado abdica do dever de prover segurança, libera a logística do crime e tensiona as liberdades civis mais básicas, como a do voto.
A tara bolsonarista por armas compete com a tara bolsonarista por devastação ambiental. Há quatro consequências do desmatamento: econômica, humanitária, climática e sanitária. Desmatamento empobrece, não enriquece. Aniquila povos e modos de vida. Savaniza o bioma amazônico e tira água da sua torneira. É nossa maior contribuição à mudança climática, que condena o futuro a uma vida inóspita. Se não bastasse, desmatamento potencializa epidemias.
Desmatar produz uma quinta consequência: a fragilização da soberania nacional. Soberania não é só garantia jurídica no papel, pois pressupõe condições materiais para exercê-la. Nação soberana não renuncia status de potência ambiental, não despreza as possibilidades de inovação da biodiversidade, não abre mão da maior riqueza da economia pós-carbono do século 21 por puro apego ao extrativismo do século 19.
O desmatamento amazônico não guarda nenhuma relação com o interesse nacional. Em 2020, disparou e voltou a bater recorde histórico (aumento de 34% na taxa de derrubada), efeito direto da radical política desprotecionista do ministério. O mundo de grileiros, garimpeiros e madeireiros é um mundo fora da lei. E ainda faz crescer o PIBB, o Produto Interno da Brutalidade Brasileira. O PIBB é adversário do PIB.
Bolsonaro definha o Estado, boicota a ciência e insulta cientistas, intimida professores, estigmatiza universidades e centros de pesquisa, assedia artistas e jornalistas, arma quadrilha com fuzil e queima riqueza pós-carbono. Bolsonaro canta o cântico da soberania mas sacrifica tudo o que a soberania precisa.
Caudilho que deprime o país economicamente, culturalmente e mentalmente, rasga o fino tecido de civilidade que pensávamos costurar. Busca substituir liberdade civil por liberdade grileira e miliciana, poder público por poder privado e paramilitar, força da lei por lei da força. Não vai ter golpe, vai ter bando armado, medo e morte da periferia ao centro.
Entre os mortos, oficiais da polícia que mais morre e mata no mundo. Oficiais que precisam ser salvos do bolsonarismo. Soberano, nessa história, só o crime.
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