terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

É terraplanismo dizer que Lobato não era racista ou que cloroquina funciona, Marcelo Coelho, FSP

 

Quando alguém diz que a Terra não é redonda, minha tendência é dupla. Não levo a sério e fico preocupado ao mesmo tempo. Sim, os terraplanistas não passam de minoria ridícula. Mas aparecem, fazem barulho e, principalmente, são incapazes de mudar de opinião.

Meu medo não é que terminem vencendo. O que me faz perder o sono é que, em muitos outros assuntos, a mesma mentalidade do terraplanismo se manifesta.

Você pode apresentar todo tipo de prova, os fatos mais gritantes, e a opinião das pessoas não muda. Pego um exemplo pequeno, mas em que estive pessoalmente envolvido.

Escrevi um artigo mostrando diversos escritos de Monteiro Lobato que revelam um racismo atroz. Ele reclama da “pretalhada inextinguível” que foi trazida para o Brasil. Lamenta, numa carta, que não tenhamos uma Ku Klux Klan por aqui.

“Não”, reclamam comigo. “Ele não era racista.” Escreveu tudo isso, mas não era racista.

balão de pensamento contraposto a três balõezinhos menores
Ilustração - André Stefanini

Os argumentos são laboriosos. “Uma carta, para um amigo... isso não é definitivo...” No romance “O Presidente Negro”, os dois principais personagens discutem qual a melhor saída para o país. Ou a segregação no estilo americano, ou uma mestiçagem que terminará branqueando a população.

Nenhuma outra personagem do romance oferece contraponto a essa alternativa, que pressupõe a existência dos negros como um problema.

“Não, não, não. Ele não era racista.” Bom, fico pensando que talvez tudo seja uma questão de tempo verbal. Escrevi que Monteiro Lobato “era” racista. Em sua defesa, seria possível dizer que ele “foi” racista em algumas obras, mas não sempre, não a vida toda.

Seria interessante mostrar alguma carta ou texto em que ele se arrepende do que escreveu. Para a lógica do terraplanismo, isso não importa. Ele não era racista, e ponto final.

O exemplo de Monteiro Lobato é circunscrito, mas o fenômeno se amplia, a meu ver, por todos os lados.

Faz frio num dia de verão, e o terraplanista do clima comemora, dizendo que o aquecimento global é uma balela. Não há comprovação de que a cloroquina ajude contra a Covid, mas o terraplanista da cloroquina diz que ajuda.

Assim como existe o terraplanismo teórico, existe o terraplanismo prático.

A contaminação cresce, é preciso usar máscara e evitar aglomerações. No mundo da Terra chata, não se usa máscara e se vai a baladas clandestinas, sem dar justificativa nenhuma para o que se faz.

Aqui entra um outro fenômeno, talvez oposto ao do terraplanismo. É o do esclarecimento zumbi. Você liga a televisão, e o especialista está dizendo a mesma coisa: use máscara, lave as mãos, evite aglomerações. A repetição, espera-se, convencerá os renitentes.

É claro que o especialista irá sempre martelar as mesmas recomendações, mesmo porque não existem outras. Mas será que adianta? A fala se automatiza, e a tendência é não prestar mais atenção. É como um padre rezando a missa.

Na mesma lógica zumbi, depois de mostrar o gráfico sobre o contágio e as novas mortes, o apresentador se vira para o telão e pergunta: “Fulana, como fica a economia? Qual a reação do mercado diante desses novos dados?”.

Essa é fácil. O mercado espera que, com o progresso da vacinação, a atividade vá retomando aos poucos.

Que tal perguntar a reação dos coveiros? Do sindicato dos entregadores de comida? Se para cada “interlocutor” do mercado entrevistássemos um diretor de escola pública, um parente de intubado ou um policial sem condições de fiscalizar o baile proibido, a coisa ganharia em interesse.

A palavra dos especialistas é importante, mas o problema é que, por natureza, tende para a generalidade. O caso particular, que antigamente era a matéria-prima do jornalismo, pode não permitir grandes conclusões. Mas o concreto é, sempre, o que dói mais.

O terraplanismo é cego para os fatos e repete suas ilusões. Mas o comentário zumbi, mesmo sendo verdadeiro, esquece o que os fatos, os casos, as histórias, têm de vivo e convincente. Ficamos, assim, entre o pesadelo e a banalidade, a alucinação e a anestesia.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.


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