Vivemos um momento privilegiado para uma discussão que recentemente invadiu a opinião pública. A cultura do cancelamento é uma expressão nova forjada para descrever uma prática antiga: a tentativa de excluir o contraditório do campo público pela via do isolamento e da expulsão. A etimologia —como é comum— nos dá pistas de seu significado: “cancellatus”, aquele que foi gradeado, cercado, rabiscado, envolto por uma cancela.
Tal prática deriva de outras que a história conhece bem, como o banimento e a excomunhão. Assemelha-se, mas difere do encarceramento, pois o prisioneiro ainda responde ao conjunto de regras disposto por uma comunidade. Já o banido se torna um apátrida, sem espaço no campo político composto por seus semelhantes —assim como o excomungado, que já não responde às demandas de determinada filiação religiosa e não pode mais habitar uma comunhão.
É possível incluir várias categorias nessa analogia, como o boicote, mas o objetivo é apenas marcar o traço comum entre tais dispositivos: o de coletivamente excluir de um conjunto um elemento, através de uma prática radical. Portanto, o dispositivo só funcionaria de forma eficiente pela via da lei ou da coletividade uníssona, sem dúvidas ou divisões.
E é nesse ponto que entra o impasse. A cilada contemporânea, intensificada pelas bolhas sociais e identitárias que adotam linguagens e perspectivas demasiadamente homogêneas, é incorrer na ilusão de aspiração universal de seus grupos. Esse é o perigo de um forçamento próprio do cancelamento: o de transformar, por uma lógica simples, a tentativa de exclusão do oposto na reiteração, na amplificação de seu sentido.
Tais movimentos costumam ser acompanhados por uma unidade mínima, uma expressão comum que de alguma forma empresta coesão ao grupo de “canceladores”. Estes costumam habitar o mesmo espaço e atraem os holofotes para si mesmos.
Um retrato do tiro saindo pela culatra é a ilusão da praça Tahrir, no Egito, ícone do fracasso de impor democracias no mundo árabe através do espetáculo puro. Aqueles que atraem holofotes na praça pública esquecem da multidão que habita o entorno sob a sombra, multidão que deve escolher entre o “dentro” e o “fora” sob a pena de ser empurrada ao “politicamente incorreto”. O efeito disso é bem conhecido em movimentos nacionais-populistas ao redor do mundo. O pior: grupos que costumam aglutinar os que estão “fora” têm o hábito de embandeirar narrativas paranoicas, violentas, com excessos de certezas.
O que podemos extrair das discussões recentes sobre a lógica do cancelamento é que tal dispositivo é a redução do campo da linguagem em esquemas ensimesmados. É a versão 2.0 do que no Brasil chamavam de patrulha ideológica. Fulano não gosta de goiaba? Então é de direita. Ciclano come amendoim? Com certeza é comunista. Olha, não pediu desculpas por existir é racista. Veja, exigiu igualdade é militante chato. Falou besteira é hora do escárnio. E, se virou tragédia, a culpa deve ser da mídia...
Essa lógica dos opostos assimétricos só revela as simetrias do inimigo e a degradação do campo político e cultural, convertidos em batalhas por silenciamentos, exclusões e isolamentos que, além de moralmente duvidosos, são costumeiramente ineficazes.
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