quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Do risco de deflação ao perigo da inflação, Solange Srour FSP

 A saída desta crise está bastante distinta da que vivenciamos em 2009. O otimismo com a recuperação global é crescente e já traz à tona preocupações com o risco inflacionário. O chamado “reflation” é o tema do momento —um cenário que difere da última recessão global, quando assistimos a uma queda acentuada nas expectativas de inflação e ao receio de deflação nas principais economias mundiais.

A preocupação com a volta da inflação tem raízes tanto na natureza da presente crise quanto nas políticas adotadas para combatê-la. A Covid-19 causou uma recessão global profunda em um curto espaço de tempo, mas, com a vacinação avançando, a expectativa é de uma volta rápida das atividades.

Há 12 anos, a crise foi resultado de excessos de alavancagem nos setores financeiro e imobiliário, o que levou ao estouro das bolhas de ativos, cujos reflexos foram duradouros na economia real.

Em 2020, a magnitude das respostas fiscais e monetárias foi consideravelmente maior. Depois da experiência de uma lenta recuperação e da ausência de pressões inflacionárias, governos e bancos centrais ao redor do mundo passaram a ignorar qualquer tipo de restrição orçamentária ou monetária.

Em artigo recente no jornal The Washington Post, Larry Summers, secretário do Tesouro norte-americano no governo Clinton e árduo defensor da eficácia da política fiscal, compara o aumento dos gastos de 2009 com o atual e faz um alerta: os EUA estão pondo em risco não só a inflação mas também a estabilidade financeira e o valor do dólar.

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O estímulo fiscal atual (sem considerar a aprovação da nova proposta de US$ 1,9 trilhão) equivale ao dobro do gasto em 2009 e é quase três vezes superior ao estimado como o necessário para compensar a perda de PIB causada pela recessão.

Summers critica não só a dimensão do estímulo já realizado mas principalmente o escopo da nova proposta, voltado novamente para o aumento das transferências de renda.

O professor de economia de Harvard Raj Chetty corrobora tal questionamento. Ao atualizar os gastos dos americanos por faixa de renda, Chetty mostra que o consumo da camada mais baixa em janeiro ficou 13% acima do nível de janeiro de 2020.

A continuidade das elevadas transferências quando a economia já está praticamente aberta não é eficaz. Assim como o Brasil, os EUA não adotaram programas focalizados, preferindo errar por excesso a errar por falta.

A conjunção de fatores —como consecutivos pacotes fiscais, avanço na vacinação, recuperação da economia, elevada taxa de poupança e uma postura bem mais leniente com a inflação por parte do Fed— traz o risco de as expectativas de inflação desancorarem muito rapidamente.

A inflação implícita nos títulos americanos para os próximos cinco anos, por exemplo, já subiu de 1,3% para 2,2% entre março de 2020 e o início de fevereiro de 2021. Caso o pacote de US$ 1,9 trilhão seja aprovado, os norteamericanos terão empenhado 15% do PIB sem nenhuma elevação relevante no investimento público ou em programas que aumentem a produtividade.

Gigantescos déficits fiscais só são aceitáveis enquanto há perspectiva de que a taxa de crescimento do PIB continuará maior do que a taxa real de juros ou de que o país conseguirá gerar superávits fiscais suficientes para pagar a conta deixada. Porém, todo o gasto fiscal até o momento não gera perspectiva de isso ser factível.

Esses fatores, somados ao aumento da incerteza em relação ao controle da inflação, podem ainda suscitar um questionamento sobre a sustentabilidade da dívida. Quando o Fed iniciar o processo de elevação de juros, esbarrará em um passivo alto e de maturidade mais curta, o que tem potencial para aumentar a aversão dos investidores em carregar títulos norteamericanos e o próprio dólar.

O cenário descrito é muito semelhante ao do Brasil, com a diferença de que já estamos com a inflação acelerando e com um elevado risco fiscal embutido na taxa de câmbio e na curva de juros.

​A antecipação do processo de aumento de juros por parte do Fed e a perspectiva de redução da liquidez mundial intensificarão o enfraquecimento do real e, por consequência, gerarão mais inflação, juros mais elevados e menos crescimento. Se a reflação americana se tornar o cenário básico, o tempo que tínhamos para deixar o país mais resistente às mudanças dos ventos internacionais terá se esvaído por completo.

Solange Srour

Economista-chefe de Brasil do banco Credit Suisse. É mestre em economia pela PUC-Rio.


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