[resumo] Professora defende que debates sobre racismo nas obras de Monteiro Lobato sejam travados de maneira mais profunda e nuançada, levando em conta o contexto histórico em que ele produziu seus livros e seu diálogo com outros autores do mesmo período. Embora existam passagens racistas em seus textos, Lobato investiu em escritores negros em sua editora e deu a Saci e Tia Nastácia características positivas numa época em que personagens negras não apareciam em livros infantis.
“A discussão sobre como lidar com o racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato parece infindável.” Assim, desanimado, começa o editorial da Folha do último 26 de dezembro. Não é para menos; há dez anos os debates sobre o tema, em esferas variadas da vida pública, parecem andar em círculos. Talvez, estejamos examinando somente a epiderme, quem sabe a derme, do problema, suas terminações nervosas. Precisamos aumentar e aprofundar o escopo, se desejamos avançar.
Para a Folha, o argumento de que Lobato não era racista não se sustenta: “Não deixam dúvidas a construção estereotipada de Nastácia e as menções à cor de sua pele como um defeito, por exemplo quando Narizinho diz que ela ‘é preta só por fora, e não de nascença’.” A citação do fragmento parece, a princípio, acabar com as dúvidas sobre o racismo de Lobato. Só a princípio.
Julgar obras literárias por frases é arriscado. A sentença que parece certeira pode se revelar incerta, quando não injusta. Para esclarecer o problema embutido no editorial da Folha, e em outros textos que aparentam pôr fim à discussão sobre racismo em textos lobatianos, proponho examinar o fragmento escolhido pelo editorial conforme procedimentos utilizados em estudos literários.
Fragmentos de texto precisam ser analisados não apenas em relação a outros da mesma obra, que podem apresentar perspectivas diversas, mas também a outros textos de autores diversos da mesma época.
A tarefa é complicada quando tem por objeto livros infantis de Monteiro Lobato (1882-1948). Praticamente todos os outros livros para crianças que circularam na primeira metade do século 20 desapareceram. Como explica Peter Hunt, livros infantis “morrem” quando deixam de interagir com a “cultura imediata” das crianças. São descartados por pessoas e instituições; viram restos nos lixões e nas memórias coletivas.
Em parte significativa dos livros infantis do tempo de Lobato não há personagens negras. É como se a população negra brasileira não existisse em muitas das obras de Arnaldo de Oliveira Barreto, João Kopke, Coelho Neto e tantos outros autores consagrados do período.
Um exemplo: no “Primeiro Livro de Leitura” (1903), de Barreto e Puiggari, que inaugura série de sucesso, não se encontra uma personagem negra sequer. Uma cena, porém, indica o lugar reservado a negros na literatura infantil: Luíza, loira como “uma alemãzinha”, brinca com suas bonecas loiras. Duas bonecas “servem de criadas. Elas são pretinhas”. No “Segundo Livro de Leitura”, há um conto intitulado “A Ama de Lulu”. A mãe do bebê avalia 12 amas, “cada uma pior que a outra”, para amamentá-lo. Nenhuma tem nome, nenhuma tem voz. No fim, a mãe consegue a ama ideal, “branquinha, asseada e boa”. É uma cabra, que oferece as tetas gratuitamente ao menino. Qual a cor das amas menos boas e asseadas que a cabra?
Naquela época, negros tinham algum destaque nas chamadas “cenas da escravidão”, em que eram representados como escravizados brutos e brutalizados. Há cenas assim em “Contos Pátrios” (1904), de Olavo Bilac e Coelho Neto, e “Páginas Infantis (1908), de Presciliana de Almeida, livros de numerosas edições.
A pele negra, em obras infantis, era indício de servidão e/ ou maldição. É o caso da heroína de um dos “Contos para Crianças” (1906), de Chrysanthème, pseudônimo de Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos. Em “A Princesa Negrinha”, uma rainha é amaldiçoada: sua filha nasce negra. A princesa sofre provações terríveis para se tornar branca e conhecer “a real felicidade”.
A passagem de Lobato selecionada pelo editorial da Folha foi extraída de fala de Narizinho, na história “O Circo de Escavalinho” (1927). As personagens montam um circo e convidam protagonistas de narrativas infantis para assistir ao espetáculo. Pedrinho teme que Tia Nastácia não vá ao circo, porque na plateia há princesas de contos de fadas: “Está com vergonha, coitada, por ser preta”.
Narizinho afirma que Tia Nastácia não deve “ser boba” por ter vergonha da própria pele. Dirige-se, então, às personagens de outras obras:
“Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, Dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem por ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura”.
A fala de Narizinho parece aludir a outras obras e discursos nos quais o valor de mulheres brancas era determinado pela origem e posição social da família, especialmente de seus integrantes masculinos. A importância solene que a figura do cônego poderia projetar sobre Dona Benta, porém, é transformada em piada pelo nome ridículo dele, sua fama nula e o fato de nem estar vivo. Dona Benta, sabiam os leitores, valia por si mesma.
Os leitores também conheciam Tia Nastácia e seu valor. A explicação de Narizinho remete a narrativas como “A Princesa Negrinha”. Ficções do gênero revelam-se mentirosas por meio da fala irônica da menina. O sentimento de inferioridade da personagem, porém, é muito verdadeiro para pessoas negras nas quais tais ficções eram, e ainda são, incutidas por discursos racistas.
A cena é exemplar da complexidade com que as obras infantis de Lobato tematizam o racismo. A fala de Narizinho, se desvela o “faz de conta” de discursos racistas, ancorados em fantasias, simultaneamente revela o poder das fantasias na estruturação da realidade cultural. Trocando em miúdos, “uma coisa existe quando a gente acredita nela”, como explica o Saci a Pedrinho, em “O Saci” (1921). O racismo é sustentado por fantasias; nem por isso deixa de ser real.
Quem lê a fala de Narizinho, hoje, não percebe o diálogo crítico com diversos contos sobre princesas negras amaldiçoadas, há décadas (felizmente) esquecidos. “Reinações de Narizinho” (1931) sobreviveu, e muito, ao seu tempo. É compreensível que leitores atuais interpretem a história sobre o “defeito de cor” de Nastácia como criação de Lobato e prova de seu racismo.
Também é compreensível que Tia Nastácia seja lida hoje como estereótipo. Por que Lobato não a retratou de outra maneira? Essa questão levanta outras: por que Coelho Neto ou Manuel Bonfim, notórios defensores da população negra, não escreveram livros infantis protagonizados por negros? Por que Olavo Bilac e Coelho Neto, admiradores de Machado de Assis, não criaram obra sobre um menino mestiço e genial?
Provavelmente, os livros infantis da Primeira República (1889-1930) retratavam quase que unicamente pessoas brancas porque os sistemas de ensino do país eram racistas, como indicam pesquisas recentes. Livros infantis brasileiros dependiam (ainda dependem, em grande parte) da aprovação de secretarias de Educação.
O primeiro herói negro em livro infantil brasileiro é o Saci de Lobato. O Saci das lendas orais era maldoso, monstruoso, filho do demônio. O Saci bonito, defensor da natureza e amigo das crianças, celebrado atualmente, foi inventado por Lobato. Ele tirou os estigmas então (e ainda) associados à pele negra e atribuiu ao personagem qualidades como inteligência, bondade, erudição.
O Saci lobatiano tem muito de Machado de Assis. Vale a pena apreciar a finura machadiana com que o Saci explica suas teorias sobre a vida, a morte, o progresso. E vale pensar: por que o primeiro herói negro da literatura infantil brasileira é uma figura lendária, e não um menino?
Quem publicou livro com protagonista negro, como Mimosa Ferraz, autora de “Travessuras do Gasparino” (1925), amargou o fracasso, apesar dos elogios de alguns críticos. Os papéis que negros podiam desempenhar em livros infantis eram restritos —ainda carecemos de pesquisas mais amplas para explicar esse contexto.
Nos campos minados do racismo da literatura e da educação de seu tempo, Lobato usou estratégias dignas de atenção para modificar atributos e papéis reservados a personagens negras.
Tia Nastácia era (e é) aparentemente uma construção estereotipada: uma criada destinada a se confundir com o mobiliário ou a servir de mau exemplo. No entanto, as muitas referências a ela como “boa negra” parecem ressaltar que Nastácia não é invisível, como negras costumavam ser, e que é “boa”, qualidade que, em outras obras, era incompatível com a pele negra.
Avanços mais extraordinários ocorrem em livros posteriores, como “A Reforma da Natureza” (1941), em que Tia Nastácia e Dona Benta são convidadas por líderes europeus para ensinar-lhes “o segredo de bem governar”. Nastácia é a primeira mulher negra a ser chamada de “grande estadista” em livro infantil brasileiro e a ser tratada como tal em suas páginas. De estereótipo, ela tem só alguns contornos.
Existem passagens racistas nas histórias do “Sítio do Picapau Amarelo”, mas também existem as antirracistas. Os livros infantis lobatianos podem ser entendidos como um conjunto de discussões sobre os problemas humanos, que as personagens travam enquanto vivem aventuras.
Para entender como são arquitetadas as discussões sobre racismo nas obras, é preciso lê-las integralmente. Adianto que o racismo sempre perde, sobretudo nas narrativas escritas por Lobato pouco antes de morrer, como o conto antirracista “A Violeta Orgulhosa”, que integra o livro “Histórias Diversas” (1947).
Estranhamente, os últimos textos infantis escritos por Lobato não costumam ser lembrados nas discussões sobre o racismo em sua obra. Fato semelhante ocorre com sua biografia. Lobato tem sido julgado racista por alguns textos das primeiras décadas de sua vida. Outros numerosos textos com facetas muito diferentes do escritor são ignorados, por desconhecimento ou deliberação.
Alguns exemplos: Lobato teria sido o primeiro editor brasileiro a estabelecer cota para autores negros. Segundo vários contemporâneos, publicou o primeiro livro de Gabriel Marques, “Os Condenados” (1923), porque o escritor era negro, e o catálogo de sua editora não tinha negros. Da mesma forma, investiu em Lima Barreto e em outros escritores afrodescendentes.
Em setembro de 1933, o Diário de Notícias publicou “Os Novos Bandeirantes”, crônica em que Lobato enaltece as virtudes de um homem negro e critica vícios de brancos. Na mesma página, há um artigo sobre Hitler. Quando o timing era favorável para defender a corrente da eugenia que pregava a superioridade branca, Lobato enalteceu a superioridade negra. O tema foi retomado por ele em 1936, na crônica “Eu Quero Ajudar o Brasil”, publicada em vários jornais.
Em setembro de 1945, um jornal negro enaltecia Lobato. O Alvorada noticiava que “o maior escritor do Brasil contemporâneo” havia ofertado exemplar de seu romance “O Presidente Negro” (1926) à biblioteca da Associação dos Negros Brasileiros. O texto destaca “o fato de o ilustre intelectual (...) ter também se ocupado dos negros. E o fez com aquele estilo inconfundível e brilhante, aquele bom humor e aquela liberdade de opinião que caracterizam sua obra”.
Como entender o fato de Lobato oferecer seu romance distópico sobre o extermínio de negros para a biblioteca? Como entender os elogios do jornal ao romance?
Talvez, tanto Lobato como a Associação dos Negros Brasileiros entendessem a distopia como advertência dos perigos de discursos racistas, e não como panfletagem desses discursos. Afinal, as distopias costumam ser lidas como advertências; daí H. G. Wells e George Orwell não serem rotulados de apologistas do autoritarismo ou do genocídio.
Lobato parece usar elementos de ensaios de Wells sobre os EUA para imaginar como seria o futuro se brancos permanecessem racistas. Ele faz o jogo do “e se”, tão fundamental para a literatura: e se um negro, líder virtuoso e grande estadista, viesse a ser presidente dos Estados Unidos? Ele conseguiria acabar com o racismo? A resposta do romance é um aterrador “não”.
“Acima da América está o sangue”, afirma o branco derrotado ao presidente negro recém-eleito. Os brancos ignoram as leis e exterminam os negros. Não há debate, pois os retóricos que alimentavam discussões infindáveis tinham sido eliminados, junto com criminosos natos, gramáticos e outros “causadores de perturbações”.
O nonsense de passagens como a de gramáticos condenados como “tarados” mina as ideias eugenistas descritas no romance. O narrador é um simplório pouco confiável: não entende de ciência, não viu o futuro e não presta muita atenção na narrativa de miss Jane, suposta testemunha dos fatos vindouros, porque deseja a moça.
Em outras mãos ou circunstâncias, o livro poderia ter saído ótimo. É um romance distópico ruim, mas não é panfleto em defesa do extermínio de negros. A discussão infindável talvez não avance porque muitas certezas são proclamadas a partir de poucos dados.
Rotular Lobato como racista é tão problemático como pintá-lo de antirracista. Na tese “Raça e Eugenia na Obra Geral de Monteiro Lobato”, José Wellington de Souza delimitou “ao menos cinco fases distintas de uso e definição de tais termos pelo autor”. As posições e discursos de Lobato sobre raça, racismo e eugenia mudaram muito ao longo de sua vida e de sua obra.
É tempo de as discussões sobre racismo e Lobato adquirirem mais profundidade e mais nuances, de se descolarem de julgamentos apressados sobre a vida e a obra do homem e se deslocarem para campos de estudo mais amplos sobre o racismo.
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