Pierpaolo Cruz Bottini
Em 1892, Rui Barbosa impetrou um habeas corpus no STF em favor de presos políticos que contestavam a legitimidade do governo de Floriano Peixoto. Na véspera da sessão, diz-se que o então marechal-presidente afirmou que, se o tribunal concedesse a liberdade aos presos, não se sabia quem daria habeas corpus aos ministros da corte, em clara ameaça aos seus integrantes.
A passagem do tempo deveria sedimentar os ânimos exaltados de uma República nascente, mas não parece ser este o caso do Brasil. Cento e vinte e seis anos depois, quando o mesmo Supremo pautou o julgamento sobre um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o general Eduardo Villas Bôas tuitou uma ameaça velada ao tribunal, que ora se descobre apresentava contornos muito mais ameaçadores em sua redação original.
Meses depois, um tom acima, um dos filhos do presidente da República afirmou que bastariam um soldado e um cabo para fechar o STF. E, na última semana, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), da base do governo, propalou ofensas e ameaças aos ministros da corte, chegando a instigar agressões físicas contra seus integrantes.
Em suma, passado mais de um século, o Executivo —às vezes via Forças Armadas— continua useiro e vezeiro em apontar suas armas reais ou simbólicas para a arena togada do outro lado da praça dos Três Poderes, na crença de que ameaças pesam na balança da Justiça. Emilia Viotti da Costa dizia que a história do STF talvez possa ser contada por meio dos momentos em que o Poder Executivo investiu contra sua autonomia e liberdade de decisão.
Em alguns episódios a corte foi subjugada. Mas nem sempre a toga cedeu à baioneta. Em 1893, o tribunal concedeu habeas corpus a parte dos envolvidos na Revolta da Armada, apesar de intensas pressões do governo federal para que não o fizesse. Durante a ditadura militar, em vários momentos a corte decidiu contra os interesses do Executivo, chegando o presidente do tribunal declarar: “Ai da revolução que aviltar a Justiça. Eu fecharei a casa e lhe entregarei a chave”. Em tempos recentes, a Suprema Corte barrou a escola sem partido e afirmou que as Forças Armadas não são o “poder moderador da República”.
A resistência às investidas autoritárias é parte da história do STF. Orozimbo Nonato dizia que “o tribunal sempre se esquivou, por um imperativo de decência e de fidelidade à sua vocação histórica, ao convite, às vezes tentador e mavioso, de subversão e das evasões da legalidade”.
Quando o Supremo Tribunal Federal mostra independência, garante aos magistrados de todo o país a tranquilidade para julgar de acordo com a lei, mesmo diante de pressões políticas. A postura e o exemplo são fundamentais para a consolidação de um Judiciário independente, que possa decidir sem medo de armas, de fake news, de ataques virtuais ou de ameaças de intervenção —ainda que veladas. Essa é a régua pela qual se mede o Estado de Direito.
O STF não pode temer reações políticas ou da opinião pública. Em suas mãos está o respeito à Constituição, aos direitos e garantias individuais. Sua defesa deve ser desassombrada, seja quem for a parte ou o réu, seu partido, ideologia ou imagem perante a sociedade civil.
Que as chaves do STF continuem nas mãos daqueles escolhidos para proteger o texto constitucional, e que arroubos armados sejam colocados em seu devido lugar. Que as ameaças de Floriano, o tuíte de Villas Bôas, a mensagem de Daniel Silveira e o cabo de Eduardo Bolsonaro constem apenas dos livros de folclore político —e não dos diários oficiais de uma nação que demanda estabilidade e segurança para sua maturidade institucional.
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