quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Fernando Schüler Rawls em tempo de barricadas, FSP

 


Imagine: você é convidado a decidir sobre os princípios que irão reger a sociedade. Direitos, liberdades, igualdade, o que for. Você conhece economia e as motivações humanas. Só não sabe quem é. Se é homem ou mulher, religioso ou ateu. Se é um tipo audacioso, como Elon Musk, ou avesso ao risco. Que princípios de justiça você escolheria?

Esse desafio atiçou a imaginação de gerações de intelectuais no último meio século. John Rawls o chamou de escolha sob o véu da ignorância. Ele está lá em sua obra-prima, "Uma Teoria da Justiça", de 1971, e que completa seu cinquentenário.

A resposta de Rawls tornou-se ponto de referência no debate liberal. Naquela situação de incerteza, diz, trataríamos de assegurar liberdades e oportunidades básicas para todos. E admitiríamos desigualdades econômicas, desde que elas produzissem maiores vantagens aos menos favorecidos ao longo do tempo.

Rawls formulou sua tese nos anos 1960, época dos direitos civis e da "grande sociedade", de Lyndon Johnson. Os anos pós-Rawls foram marcados pela explosão da riqueza no mundo globalizado, pela integração planetária produzida pela internet, pela redução da pobreza global ao custo de uma maior desigualdade.

Sua teoria prossegue válida? Muita gente acha que não.

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"Vivemos em um mundo de barricadas", leio de um autor cético, e não de apelos a um moderado consenso liberal. Charles Mills define como "bizarra" a idealização da "sociedade como empreendimento cooperativo para benefício mútuo". Espécie de "ignorância branca" sobre um mundo excludente a exigir soluções bastante mais radicais.

Há quem sustente o contrário, por muitas razões. Uma delas define sua teoria como um convite à humildade. Em um mundo marcado pelas cisões de identidades e guerra cultural, é ainda mais atual uma visão que nos lembra sobre os limites do contrato político.

Vai aí a primeira grande lição de Rawls: somos uma sociedade cindida por um conflito ético, em sentido amplo, e nesse terreno não há acordo possível.

Temas envolvendo religião e crenças morais sobre sexualidade ou o sentido da família surgem no espaço público com velocidade e intensidade inéditas. Eles não serão objeto de consenso. Somos uma grande sociedade aberta, não uma comunidade.

O acordo possível se dá no terreno da política. E nesse sentido o experimento de "desenraizamento" que ele nos propõe permanece válido.

Uma segunda lição diz respeito à justiça econômica e gira em torno de seu "principio da diferença".

Um trade-off: aceita-se a desigualdade econômica, dentro de certos parâmetros, desde que todos os botes subam com a maré. Isto é: o arranjo escolhido deve ser o melhor, dentre as alternativas viáveis, para os menos favorecidos.

Aqui é preciso evitar alguns equívocos de interpretação. Li em um artigo recente que Rawls aceitaria alguma "recompensa extra aos superprodutivos", mas vetaria coisas como um contrato milionário de Lionel Messi (fiquei imaginando por que não a fortuna de Jeff Bezos).

Completo equívoco. Sua teoria não diz respeito a esta ou aquela transação econômica. Não importa o salário de um jogador ou o resultado de uma empresa, desde que o arranjo econômico atenda ao critério ético. A contínua abertura de oportunidades aos desfavorecidos, e não uma teoria mesquinha sobre o quanto cada um pode ganhar. A justiça, dizia, não exige conformidade a qualquer "padrão observável" de igualdade.

Não acho que uma teoria pedindo que nos abstenhamos de julgar o mundo com base no "principio da inveja" e solicite respeito a um amplo leque de visões éticas, contraditórias entre si, possa ser particularmente popular em um mundo conflagrado como o nosso. Somos de um tempo muito pouco rawlsiano, nesse sentido.

O que me parece certo é que sua teoria prosseguirá sendo lida e discutida mesmo quando nossos rancores e desavenças já fizerem, há muito, parte do passado.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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