O dia que eu mais temia chegou: minha mulher está vacinada contra a Covid-19, eu não. Aliás, eu não sei quando estarei —fim do ano? Próximo ano? É indiferente. Ela, entrando em casa com uma coroa de rainha, foi buscar as malas e disse: “Meu bem, tente aproveitar a vida aqui em casa". "É isso que eu vou fazer lá fora. Adeus.”
Foi nesse momento que eu acordei, perturbado por meus sonhos de abandono. A minha senhora está vacinada, sim, mas num gesto de amor e sacrifício resolveu ficar na leprosaria.
Abençoada seja. Mas como negar que a humanidade caminha, cada vez mais, para dois planetas —o mundo dos imunes e o submundo dos vulneráveis?
Pensei no assunto quando lia sobre o programa israelense dos “crachás verdes”. Israel é caso de sucesso mundial na vacinação. E agora, para reabrir a economia e o país, exige que os cidadãos mostrem uma espécie de passaporte para provar que já foram vacinados (ou, em alternativa, que já tiveram o vírus e estão imunes). Sem passaporte, não há restaurantes, bares, academias ou sinagogas para ninguém.
Instintivamente, minha costela liberal reage com dor. E então relembro o famoso “princípio do dano”, popularizado por John Stuart Mill, e que funciona como um bom barômetro para as liberdades públicas. O Estado só deve interferir na liberdade dos indivíduos quando existe a possibilidade de dano para terceiros?
É um bom princípio, razão pela qual não me oponho ao uso obrigatório de máscaras: não é apenas a vida do sujeito que está em causa; são as vidas dos outros.
Mas as vacinas deveriam alterar esse cenário. Conferem proteção a quem as toma e, até ao momento, as variantes conhecidas do vírus parecem não cancelar essa proteção. A pergunta é inevitável: se a vacinação continuar a ser voluntária e eficaz, o ónus da responsabilidade não deve estar apenas nos indivíduos que decidem ou não tomá-la?
Infelizmente, não estou seguro sobre as premissas. Para começar, não sei até quando as mutações do vírus serão benevolentes. Sobretudo quando a resistência à vacinação pode criar as condições perfeitas para fortalecer o vírus. Nessas condições, a não vacinação pode representar um dano para terceiros.
Por outro lado, e por mais desconfortável que seja, a imagem de uma sociedade dividida entre imunes e vulneráveis, como sustentar que pessoas imunes devem continuar em prisão domiciliária?
E por que motivo as economias devem continuar fechadas quando uma parte da população pode começar a reverter essa ruína?
Esmagado pelas evidências, digo à minha mulher: “Não posso ser egoísta e prender você nessa masmorra". "Vai e viva!”
Ela me olha com preocupação psiquiátrica e, encolhendo os ombros, comenta apenas: “Não seja dramático e não se esqueça de usar a máscara quando sairmos". "Você ainda precisa, né?”
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