Com mais de 60 anos de carreira e formado pela Escola Paulista de Medicina, Duarte Vicente atua na zona norte
Angela Pinho
SÃO PAULO
Duarte Malva Vicente não é recém-formado nem cubano, tampouco se inscreveu no programa Mais Médicos. Aos 93 anos, com mais de 60 de carreira, trabalha todos os dias em um posto da periferia de São Paulo e não pensa em parar tão cedo.
Formado em uma das melhores faculdades do país, a Escola Paulista de Medicina, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Vicente integra a equipe de saúde da família da UBS Vila Terezinha, na região da Brasilândia, na zona norte da capital paulista. Entra às 7h e só sai depois das 16h.
Seu registro no CRM tem o número 1.526, ao passo que o documento dos recém-chegados à profissão já tem seis dígitos. Enquanto o país dos seus colegas mais novos discute como ocupar os postos dos cubanosdo programa Mais Médicos, o Brasil da juventude dele debatia a guerra.
Penicilina e transplante eram descobertas recentes quando Vicente, recém-saído do ensino secundário, foi convocado pelas Forças Armadas em meio à Segunda Guerra Mundial.
Deixou a casa onde morava no Jardim Paulistano, “perto do ponto final do bonde”, como lembra, para ir ao litoral. Não chegou ao ir ao combate. Cuidava das armas e vigiava o quartel.
Dispensado após a vitória dos Aliados em 1945, ele resolveu cursar medicina e acabou por se especializar em cirurgia de tórax — mas nos plantões fazia de tudo. Trabalhou anos no Hospital das Clínicas e no Complexo Hospitalar do Mandaqui, estadual, na zona norte, onde se estabeleceu.
Integrou a equipe que fez o primeiro transplante de fígado do país e atendeu milhares de pacientes. Aos 75 anos, foi obrigado a se aposentar do serviço público, mas não cogitou parar. A explicação é simples: “sinto falta de trabalho, não de ociosidade”, diz.
Foi administrar uma entidade de voluntariado para ajudar pacientes do Mandaqui e passou a atender como pneumologista em um convênio.
Foi quando uma colega lhe falou do posto de saúde da Vila Teresinha. Era 2005. Vicente gostou da ideia e foi contratado pela organização social que administra a unidade. Desde então, não saiu mais.
Além da rotina de atendimentos de segunda a sexta, faz cursos de atualização à noite e pelo menos uma vez por semana sobe e desce as ladeiras do bairro para visitar pacientes acamados.
“Já recebi alguns convites para trabalhar em outros lugares, mas não quis ir. Sabe por quê?” Pergunta e tira da gaveta uma broa de fubá dada de presente por um de seus pacientes. “É pelas amizades”, responde.
As amizades já estão na terceira geração. Certo dia, ele foi parado por uma menina perto da UBS. “O senhor fez o parto da minha mãe”, disse a garota. Algum tempo depois, ela engravidou, e foi Vicente quem fez o parto.
Em tempos de fácil acesso a exames e comunicação rápida, ele tenta praticar uma medicina à moda antiga. Não dispensa uma conversa demorada com o paciente.
Na última quarta-feira (28), a Folha acompanhou dois de seus atendimentos.
Um deles era o de Adão dos Santos, 85. O aposentado tem problema nos rins e faz diálise. Recentemente, começou a se sentir zonzo. “Recomendei que ele se deitasse quando isso acontece e tem melhorado. Nem tudo que resolve é remédio”, diz o médico.
Ele mede a pressão do paciente, verifica seu peso e apalpa o tornozelo. “Tem gente que manda foto pelo celular para a gente olhar e falar o que é. Às vezes a pessoa até já escolheu o remédio. Mas eu preciso ver a cor, sentir o cheiro. Como faz?”, indaga. “Hoje tem mais exame, mas o que fazer com o dado depende da nossa experiência”, afirma.
Depois de Adão, entra na sala o motorista de ônibus aposentado José Gomes dos Reis, 68. “O senhor José mora aqui perto e, com 50 anos de idade, já tinha hipertensão e problema de colesterol”, diz Vicente ao apresentá-lo à reportagem. “A mulher dele fica em cima para ele se cuidar. Às vezes, ele viajar para o interior de Minas e traz um café para mim.” José confirma.
Nem todos, no entanto, são como o motorista. Ali mesmo em sua sala no posto de saúde, Vicente já teve seu celular furtado duas vezes.
“A medicina avançou muito, mas ainda temos febre amarela, malária, dengue”, afirma ao final da conversa, para em seguida reformular a frase. “A medicina avançou bem, mas o homem precisa acompanhar.”
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