Na carta em que relata a chegada das caravelas portuguesas à América, Pero Vaz de Caminha escreve que “o arvoredo é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem, que não se pode calcular”. O escrivão da armada se referia à mata atlântica.
Os lusitanos tiraram do mato palmito, lenha e os braços de uma cruz. Comeram, se aqueceram e ouviram a missa. Foram aos confins da floresta para dilatar a fé e o império. Cinco séculos depois, não há mais mata.
“Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e seus Vestígios” (ed. Olhares, 344 págs.) documenta a destruição. Com gravuras, telas, desenhos, fotos e textos, o biólogo Ricardo Cardim expõe o furioso avanço da civilização sobre a selva.
Dos 150 milhões de hectares da mata nos dias de Caminha, restaram 12% —espalhados em 245 mil mirrados fragmentos. Estão desfigurados porque 70% desses caquinhos ficam a 250 metros de campos, sujeitos ao “efeito de borda”: ventos, estradas, fumaça, lixo, homens.
A mata atlântica formou um sistema mais complexo que seus congêneres no hemisfério Norte. Os invernos, breves e amenos, e as chuvas fartas fizeram com que ela tivesse mais espécimes vegetais e animais. Elas formaram uma teia interdependente, intrincada e tênue.
Por depender do balanceamento de zilhões de seres vivos diversos, a mata não teve como afrontar a expansão da espécie humana da era da dominação burguesa. É o que conta “A Ferro e Fogo”, o livro clássico de Warren Dean que historia o féretro da floresta.
“Remanescentes” dá concretude a esse processo biológico e mercantil. Ricardo Cardim foi a baús perdidos em fazendas, a arquivos e bibliotecas. Saiu a campo e fotografou o espólio da hecatombe vegetal. Seu fio de Ariadne visual —um achado— são os gigantes da mata.
Está no livro, em todo seu esplendor, o Jequitibá do Brejão, de Campinas. Com um tronco de 20 metros de circunferência, o notável jequitibá foi o mais alto da mata. Agora, a maior árvore paulista é a de Natal, no Ibirapuera, que se inaugura neste sábado.
O impulso à morte da mata veio de fora. O Brasil é o único país no mundo cujo nome deriva de uma mercadoria vegetal destinada ao mercado: o pau-brasil, do qual se tirava tintura vermelha. Desde então, a mata atlântica foi consumida para servir de combustível para o progresso.
A floresta veio abaixo para que se plantasse cana, café e capim para o gado. Virou lenha para usinas, locomotivas e navios. Foi matéria-prima da Southern Brazil Lumber and Colonization, de capital americano, a maior madeireira da América Latina do século 20.
Nas mesmas décadas, caçadores de São Paulo pagavam impostos anuais sobre a venda de 250 mil peles de animais. Somando a caça ilegal, estima-se que meio milhão de mamíferos da mata fossem mortos por ano.
Na década de 1970, perguntaram a Rainor Grecco, o madeireiro que derrubou boa parte da floresta do Espírito Santo, se ele pensava na consequência do que fazia. Ele respondeu: “A consequência é o lucro”.
“Remanescentes” tem papel cuchê, capa dura e custa R$ 150. Parece um desses livrões que se põe na sala para arrotar riqueza e requinte. Nada mais equivocado: ele exibe o que se passou, se passa e se passará. A Amazônia de amanhã será a mata atlântica de hoje. Seremos Cubatão.
DOIS ITALIANOS
Bernardo Bertolucci, morto aos 77 anos, era de Parma. Seus filmes averiguam como um homem sensível se machuca ao ser fiel a si mesmo. Mas o artista veraz não trai sua arte, mesmo quando a história o hostiliza ou ele, indivíduo, se desfaz. Caso de João Gilberto, de quem era amigo.
Quem os aproximou foi Gianni Amico, autor do roteiro de “O Leão de Sete Cabeças”, de Glauber Rocha. O italiano mandava seus filmes (em VHS) ao baiano de Juazeiro, do qual ouvia a música. Eram afins no afeto, no humor, na verve e na sensibilidade. A arte da amizade: bater papo, aprender, rir.
Fabrizio Fasano, que se foi aos 83, era de Milão. Veio cedo para São Paulo, foi estudar nos Estados Unidos, voltou a pedido do pai para cuidar dos negócios da família. Ficou milionário, perdeu tudo, recomeçou do zero, deu a volta por cima —sempre sem reclamar, com modéstia e fidalguia.
Não perdeu o sotaque e não falava alto. Cativava pela amável atenção que dedicava ao interlocutor. Vestia calça cinza, camisa azul, cashmere vinho. Sua sabedoria era suave: nunca se queixe e faça o melhor que puder. Deixa restaurantes e hotéis primorosos —finos e acolhedores como ele.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
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