quarta-feira, 25 de setembro de 2024

MALU BISCAIA - Viver com o meu filho suicida, FSP

 Malu Biscaia

Formada em biologia e hoje aposentada, tem 71 anos e é mãe de três filhos e avó de três netos; escritora amadora

"Você tem que ser forte", me diziam. "Eu tenho mais dois filhos e marido", eu me dizia. Passados dias de seu velório, noites de sono só quimicamente. Sonhos sobressaltados, acordo num único e intenso movimento e me sento na cama. "Pedro, não faça isso. Você tem a vida toda pela frente", argumentei. "Mãe, não dá mais. Não tem como voltar atrás. Não aguento continuar neste sofrimento."

Não era fantasmagórico, nem tinha roupa branca movediça própria dos fantasmas, nem mesmo aparência translúcida ou etérea como nos filmes de terror. Era muito real!

Ilustração de Catarina Pignato - Folhapress

"O que foi?", meu marido acorda assustado. "O Pedro. É como se estivesse falando comigo." Meu marido me abraça, deito-me mais um pouco. É impossível retomar o sono.

Durante um bom tempo, para levantar-me da cama, cantarolava mentalmente: "Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração...". Sem saber se pedia para a mãe de Jesus ou para a minha, falecida um ano antes, considerava que uma das duas pudesse me tirar da cama para enfrentar mais um dia sem ele.

Refletindo sobre aquele sonho tão real, parecia uma tentativa de comunicação de Pedro comigo, querendo justificar seu ato e fazer eu aceitá-lo como irremediável. Sua perda requer uma reconciliação com sua vida e seu trágico final. É preciso garantir, ou no mínimo tentar, que sua memória permaneça fiel à complexidade de toda vida humana, sem buscar obter conclusões ou diagnósticos fantasiosos. Não podemos nos resumir à tragédia de sua interrupção.

Dar voz aos mortos é extremamente perigoso na vida real. Em "Um Conto de Natal", de Charles Dickens, os fantasmas trazem mensagens capazes de mudar uma pessoa, transformando o velho Scrooge numa pessoa generosa e solidária. Inspirada nesse enredo, ouso apresentar a meu filho suicida fantasmas de seu passado, presente e futuro que teriam sido capazes de dissuadi-lo de seu último ato.

O fantasma do passado faria ele enxergar um bebê tranquilo, menino ativo, adolescente que adorava andar de patins. Família estruturada, pais presentes, estudos garantidos, saúde cuidada e rotina doméstica previsível, com direito a férias, viagens e diversões.

O fantasma do presente faria Pedro enxergar sua personalidade enérgica, vaidosa, cativante, inteligente e muito crítica, numa mente instável, própria de sua bipolaridade. Seu uso descontrolado de drogas. Faria ele reconhecer os muitos amigos que tinha, o irmão mais novo, companheiro de festas e amigos comuns. O caçula com quem era amoroso e divertido. Teria um olhar mais compreensivo com seus pais, muitas vezes exigentes, focados no trabalho para garantir o melhor para os filhos. Entenderia que expressões de afeto ficam muitas vezes bloqueadas pelas contingências da vida e são consequências do choque de gerações e fruto da educação recebida em seus lares de origem. O diálogo muitas vezes difícil e truncado bloqueou o entendimento e a compreensão com seus pais. Ele costumava dizer: "Posso reclamar de muitas coisas lá de casa, menos da comida".


Por último, o fantasma do futuro faria ele ver como tinha plenas condições de viver a vida que quisesse, desde que assumisse suas escolhas, sem se vitimizar, enfrentando desafios.

Ferida que nunca cicatriza, por ser uma perda violenta que contraria a ordem das gerações, vem acompanhada por um sentimento de fracasso, como se tivéssemos sido incapazes de transmitir a vontade de viver.

A morte habita um mundo onde as palavras não são possíveis. Assim, o subterfúgio de usar fantasmas para falar com Pedro foi uma forma de aceitação e reconforto, ainda que passados 17 anos de seu último ato. Sem tentar transpor essa linha perigosa de falar por ele, reconheço a imprevisibilidade humana e a condição de sua liberdade e livre-arbítrio ao cometer seu último ato.

Ruy Castro - O último da foto, FSP

 Como alguém se sentirá sendo o último remanescente de uma foto tirada há 66 anos, em 1958, reunindo 60 dos maiores nomes da sua especialidade, o jazz? Como terá sido, anos depois, observar casualmente a foto, constatar que a maioria daqueles amigos já desapareceu e passar a acompanhar a partida dos demais até que sobrem apenas dois —ele próprio e mais um? Foi o que aconteceu nesta segunda (23), com a morte, aos 95 anos, de Benny Golson, um dos grandes sax-tenores de sua geração, autor de dois standards, "I Remember Clifford" e "Whisper Not". Era o penúltimo. O único vivo agora é Sonny Rollins, este, sim, um gigante do tenor, aos 94 anos completados há poucos dias.

A foto, de Art Kane, feita para a edição de janeiro de 1959 da revista Esquire, chamou-se "A Great Day in Harlem" e é uma das imagens mais icônicas depois da Santa Ceia. Foi copiada e adaptada por fotógrafos de todos os países, cidades e bairros e teve sua história contada em dois filmes, o documentário homônimo de Jean Bach, em 1995, e "O Terminal" (2004), de Steven Spielberg. E é mesmo uma história quase absurda.

Como convencer os artistas mais livres e dispersivos do mundo, os jazzistas, a comparecer a determinado endereço em dia tal e num horário, 10 da manhã, em que nenhum deles se habituara a estar acordado? Pois aconteceu. O convite correu por Nova York e, no dia 12 de agosto de 1958, lá estavam, defronte ao nº 17 da rua 126 Leste, no Harlem, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Count Basie, Coleman Hawkins, Gerry Mulligan, Lester Young, Horace Silver, Art Blakey, Jimmy Rushing, Gene Krupa e muitos mais, velhos, moços, brancos, pretos e de todos os estilos. Louis, Duke, Miles, Billie e Ella faltaram, estavam em turnê.

Inúmeros deles não se viam havia décadas e tinham muito que se abraçar e conversar. Como fazer com que ficassem quietos para a Hasselblad de Kane? E os meninos da rua, que queriam aparecer na foto? E a polícia, que já não tinha como segurar o trânsito?

Mas a foto saiu e lá está, entre eles, o jovem Sonny Rollins. Continua firme, na ativa e, se hoje fizerem outra, ele estará presente.

Na foto 'Um Grande Dia no Harlem', ou 'Harlem, 1958', o fotógrafo Art Kane reuniu 57 grandes músicos de jazz numa escadaria no bairro de Nova York
'A Great Day in Harlem', histórica foto de Art Kane feita em 1958 para a edição de janeiro de 1959 da revista Esquire - Arquivo Art Kane/Reprodução

Candidatas (os): faz sentido perder quase 3 horas por dia no trânsito?, Jorge Abrahão, FSP

Quanto tempo você dedica por dia às suas relações afetivas com companheiros (as), filhas (os), parentes e amigas (os)? E para os cuidados com o corpo, aprendizado, cultura e lazer? Provavelmente bem menos do que as quase três horas gastas no trânsito pelos moradores e moradoras que utilizam transporte público em São Paulo.

Essas horas desperdiçadas todos os dias em ônibus, trens e metrô (2h47, para ser mais exato) começam com uma longa espera nos pontos e terminais, continuam em veículos lotados e terminam em uma longa viagem diária, de ida e volta, na qual é difícil utilizar o tempo para outras atividades. Em resumo, quem mora em São Paulo passa um mês por ano no trânsito.

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Passageiro fazem fila em estação de ônibus em São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress

Para quem tem condições e opta pelo conforto dos automóveis, o tempo gasto também é grande, de 2h28 por dia, na média.

É importante lembrar que a qualidade ruim do ar em São Paulo, que afeta a todos, tem a ver com uma frota de 13 mil ônibus movida a diesel. A partícula fina do diesel é a responsável por milhões de pessoas acometidas por doenças respiratórias, sendo que a transição para uma frota livre do combustível fóssil avança de forma absurdamente lenta: temos somente 380 (3%) ônibus movidos a energia elétrica.

As limitações de renda também se refletem na mobilidade: quatro em cada dez pessoas deixam de visitar parentes e amigos devido ao custo das passagens. Faltam pesquisas para fazer a relação entre ansiedade e falta de afetos.

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Este é o retrato da mobilidade em São Paulo, a maior e mais rica cidade da América do Sul, revelado na pesquisa lançada nesta última semana pela Rede Nossa São Paulo e realizada pelo Ipec.

Pouco mais da metade da população se utiliza de transporte coletivo (ônibus, metrô e trem) e quase um quarto prefere os automóveis.

No último ano houve um aumento na utilização de automóveis por aplicativo, de 3% para 5%, e a utilização de táxi ficou estável, com 2%.

Quanto à mobilidade ativa, quase 10% se locomovem exclusivamente a pé todos os dias, e somente 1% de bicicleta. A insegurança e a péssima condição das calçadas são responsáveis pelo reduzido número de pessoas que caminham e pedalam pela cidade. Sem esquecer de mencionar o absurdo da lei que deixa as calçadas sob responsabilidade dos proprietários dos imóveis, o que impede uma padronização de qualidade.

Em 2014, há exatos 10 anos, o tempo médio de deslocamento na cidade era praticamente o mesmo, o que prova a incapacidade da gestão pública em resolver o problema e priorizar o investimento na infraestrutura, pois falta coragem de tomar decisões que contrariem os interesses de empresas que dominam o transporte coletivo.

Neste mesmo período de dez anos de uma São Paulo engarrafada e imobilizada, Paris conseguiu reduzir drasticamente a utilização de automóveis, para só 4% da população, com a combinação de medidas restritivas e alternativas de mobilidade; triplicou a utilização de bicicletas e a locomoção a pé tornou-se o meio de locomoção.