quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Wilson Gomes - É possível debater com um pombo?, FSP

 Antes que começassem a voar cadeiras nos debates entre os candidatos a prefeito de São Paulo, já haviam voado os insultos, as acusações de envolvimento com o crime, os apelidos ofensivos e humilhantes e as provocações malcriadas. A violência física foi o desfecho de um longo processo de interação entre os candidatos, que as empresas de jornalismo insistem em chamar de "debates", mas que de debate civilizado mesmo teve muito pouco.

Diz-se que não houve apresentação de propostas nos vários rounds da rinha eleitoral paulistana, mas isso não é verdade. Vi, gravei e revi todos –por razões profissionais, não por alguma tara peculiar– e houve tantas propostas quanto em qualquer outro campeonato eleitoral. Talvez até mais do que a média, pois, em minha experiência, quanto mais fragmentada e feroz a disputa, mais propostas são despejadas nas campanhas.

Como elas não serão realmente examinadas, que ocasião melhor para prometer o impossível e garantir que todos os desejos e necessidades serão satisfeitos? No entanto, o que ficou na memória depois desses encontros –que, afinal, é o que realmente importa– foi o nível de agressividade e leviandade, que pareceu excessivo até para essa época em que todos os limites da civilidade já foram ultrapassados.

Curioso é que todos reclamam da baixaria, mas ninguém abre mão do espetáculo. As empresas de mídia não só acolheram e promoveram esses eventos como os multiplicaram. Ou nós achamos que tiro, porrada e bomba entre políticos não dão audiência? Na verdade, somos nós quem damos audiência, parando para ver o circo pegar fogo ao vivo. "Para que tanto desses debates, meu Deus?", pergunta meu coração socrático. Porém, meus olhos, grudados na tela, não perguntam nada.

O grotesco encanta. Lucram as empresas de jornalismo com a audiência e desfrutamos nós, os espectadores da briga de rua, mas também faturam os políticos envolvidos, pois gente do país inteiro parou para ver os candidatos a prefeito de São Paulo saírem no tapa, mesmo quando não deu a mínima para eventuais debates entre candidatos da própria cidade.

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E a democracia? Bem, a democracia devia estar em casa àquela hora, assistindo a doramas coreanos e comendo Bis, alheia a essas coisas que nada têm a ver com ela. "Afinal", pensa ela, "se os paulistanos preferirem Pablo Marçal", por exemplo, "bem merecem ser governados por ele". Não é esse o combinado? Na democracia, você escolhe e fica com o resultado, não adianta espernear depois.

Na ilustração multicolorida, o torso de um individuo que segura, erguendo na sua mão direita, um celular. Na tela do celular pronto para fazer uma selfie, se vê sobre fundo azul a pena de um pombo. O rostro do individuo está crispado, xingando de boca aberta. Encostado ao rostro, um cubo predominantemente lilás, nas caras do cubo, o reflexo do rostro crispado em linhas brancas. No cubo, um intrincado e nervoso rabisco amarelo que toma, em inúmeras linhas, todo o seu interior.  A ilustração não tem fundo.

Há muitas lições a serem tiradas dessa série de lutas na lama na "cidade mais rica do país", que nós, os de fora, descobrimos nos debates ser o epíteto obrigatório de São Paulo.

Primeiro, não é verdade que "não é isso o que o público quer ver nos debates", como me explicou um repórter nesta semana. Ora, sejamos realistas: esta eleição mostra que é exatamente isso que uma parte significativa do público quer ver nos debates, na política e na vida pública. Metade do Brasil estaria disposta a transferir seu domicílio eleitoral para São Paulo só para votar numa eleição quente, animada, de dedo nos olhos, rasteiras metafóricas e cadeiradas nem tanto.

O fato de que debates eleitorais não foram concebidos para esse tipo de confronto, e que outros públicos considerem deplorável esse padrão, não significa que a "marçalização" dos debates não tenha seu público, e que ele não seja imenso.

Segundo, muitos de nós, estudiosos da política, acreditávamos que chegaria o momento em que a extrema direita, como qualquer movimento radical, cansaria o eleitor. Afinal, um sistema que exige um nível constante de indignação, fúria e antagonismo tende a se tornar extenuante. No entanto, o radicalismo político não perdeu fôlego e, se há algo que ameaça a sua continuidade, é o surgimento de desafiantes internos ao próprio sistema. Marçal é uma nova extração de radicalismo, que desafia o establishment bolsonarista no seu próprio terreno.

Terceiro, vimos que, em uma sociedade radicalizada e polarizada, uma candidatura que faz o seu jogo sem dar a mínima para os combinados acerca dos propósitos de campanhas e debates consegue desestabilizar todo o conjunto. Assistir a Marçal nos debates era como ver, ao vivo, a ilustração perfeita da alegoria do "pombo enxadrista", popular em fóruns da extrema direita.

Debater com ele sobre propostas para a prefeitura é como tentar jogar xadrez com um pombo: o bicho derruba as peças, defeca no tabuleiro e volta todo contente para o pombal para se gabar de sua "vitória".

LUIZ GUILHERME PIVA - O tradicional e o moderno na economia e na política, FSP

 Luiz Guilherme Piva

Economista (UFJF), mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

Chegamos ao futuro em que todos são anônimos só por 15 minutos. Mas são gerações muito diferentes convivendo e se expondo nas redes: as tradicionais e as modernas, cada uma com seu "tempo interior" não cronológico (Mannheim, a partir de Pinder) e sua comunhão de percepções e demandas. Uma "contemporaneidade dos não coetâneos" (Ernst Bloch), entrelaçados sobre o fosso que as mudanças cavam entre suas visões de mundo.

Germani e Di Tella usaram essa ideia nas rupturas dos anos 1930: industrialização, urbanização e comunicação de massa (rádio) geraram, ao lado de setores rurais, outros setores sociais e seu novo tempo, sua "revolução de aspirações" e sua percepção de "incongruência de status", dada a incapacidade institucional de atendê-las. Eram, fundamentalmente, os trabalhadores fabris (e a burguesia). Para os autores, o populismo autoritário latino-americano foi a incorporação estatal das camadas urbanas, em pacto das elites modernas (riquezas) com as antigas (verbas e posições).

Na ilustração de Marcelo Martinez, um close em um relógio de pulso com uma enorme quantidade de ponteiros
Ilustração de Marcelo Martinez - Folhapress

Esse tema se enlaçou com o do desenvolvimento. A literatura a respeito é vasta e tem ao menos dois cortes importantes: o de Cardoso e Faletto, que articulam "dependência e desenvolvimento" —e atraso—pela aliança entre burguesias interna e externa, e a de Oliveira, com a "crítica à razão dualista", pela qual os setores tradicionais eram funcionais para os dinâmicos, fornecendo-lhes mão de obra barata e recursos das exportações primárias para a importação de bens de capital e de consumo —e recebendo quinhões de orçamento e mando. São teses centrais para entender o crescimento e a crise desde os anos 1930 até a ditadura militar no Brasil.

Até que aí morreu Tancredo Neves.

A articulação da dependência e do desenvolvimento e dos setores modernos e tradicionais se manteve na democratização (mas com as tensões do baixo crescimento econômico), elegeu e modelou governos e, embora com avanços, manteve o país com lacunas na economia, na política e nas relações sociais.

Eis que novas rupturas, comparáveis às dos anos 1930, ocorrem neste início de século 21 na produção, na tecnologia, nos grupos sociais, nos mundos interiores e na revolução de aspirações de novos setores – completamente distintos dos patrões e operários arquetípicos da peça "Eles Não Usam Black-Tie" (Guarnieri). A incapacidade institucional de atender às demandas novas e antigas (abraçadas sobre o fosso) gera "incongruência de status" nos setores modernos —que reclamam nas timelines ("Eles Só Fazem Brainstormings")– e rancor nos tradicionais –excluídos do consumo ("Eles Não Vão à Black Friday")–, ensejando talvez os recentes populismos autoritários.

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Mas cabe ver que os atuais contemporâneos não coetâneos, com seus novos mundos interiores, seguem estreitamente articulados, se autoalimentam (riquezas e mandos), produzem desenvolvimentos desiguais e continuam moldando governos, sustentando-os e ameaçando-os.

Financeirização, fome, internacionalização, clientelismo, tecnologia, fisiologismo, juntos, mantêm seu poder estrutural e formam uma mesma realidade —na qual nos movemos, para a frente e para trás, como numa longa rua de arquiteturas diversas, mas conjugadas, e numeração desordenada, mas lógica.

Uma espécie de avenida "Faria Lira".

Hélio Schwartsman Sem edição, FSP

 Para que servem debates entre candidatos a cargos políticos? Na visão clássica ingênua, seria uma oportunidade para os postulantes apresentarem suas propostas. O eleitor poderia então compará-las e decidir quem merece seu voto.

No mundo real, esse esquema nunca funcionou muito bem. São raríssimos os cidadãos que definem seu sufrágio de modo puramente racional a partir da comparação de propostas. Na prática, o que mais pesa são dinâmicas emocionais, como preferências prévias consolidadas, influência de pessoas próximas e simpatias e antipatias instantâneas, não raro com base em elementos que deveriam ser irrelevantes para a política, a exemplo da aparência.

Montagem mostra os candidatos à Prefeitura de São Paulo José Luiz Datena (PSDB) e Pablo Marçal (PRTB) durante debate na Band - Bruno Santos/Folhapress

Um assustador estudo americano mostrou que voluntários conseguiam apontar com 68% de sucesso o vencedor de disputas para o Senado apenas olhando por um segundo para fotos dos concorrentes e indicando aquele com aparência mais "senatorial".

Ainda que não pelas razões clássicas, debates têm utilidade na arena pública. Eles colocam os candidatos em situações de mundo real não inteiramente controladas por seus marqueteiros. É uma oportunidade para o eleitor vislumbrar o postulante despido das intervenções editoriais que normalmente o acompanham.

Nesse contexto, os debates entre candidatos à prefeitura paulistana cumpriram seu papel, apesar ou talvez até por causa dos seguidos episódios de violência que os marcaram.

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José Luiz Datenaautor da cadeirada em Pablo Marçal, mostrou a todos o seu despreparo para exercer o cargo. O recurso à força física, afinal, pode ser visto como uma espécie de negação da política, que existe justamente para prevenir a violência na disputa do poder.

Já as incessantes provocações de Marçal contra tudo e contra todos e sua incapacidade aparentemente atávica de seguir as regras acordadas, que ficaram patentes nos encontros, ajudaram a fazer com que sua rejeição atingisse níveis que praticamente o inviabilizam como candidato.

Não é porque o voto não é racional que o eleitorado sempre erra, embora erre muito.