quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Uma rapsódia em quatro atos, MEIO

 meio_separador

Por Christian Lynch

Muita coisa aconteceu de um mês para cá – tanta, que o leitor e o próprio colunista, desnorteados, correm de um lado para o outro para entendê-las: reformulação das regras do orçamento secreto, o fenômeno Pablo Marçal, o STF transformado em câmara de mediação, a decisão de Moraes de suspender o X. Aflito, o colunista tentará reduzir a própria ansiedade – e, por tabela, a do leitor – examinando o quadro como um todo e cada elemento separadamente: governo, oposição, Supremo Tribunal, suspensão do “X”. A análise pode destoar do senso comum e pode, claro, estar errada. Mas, se ela servir para reduzir a ansiedade do colunista, este se dará por satisfeito.

1. Saindo das cordas? A bonança relativa do governo no momento atual

O governo Lula enfrentou várias dificuldades desde o início de 2023. Internamente, foi criticado pela instabilidade econômica, com uma gestão fiscal vista como incerta, e pela falta de uma base sólida no Congresso, onde o Centrão buscava ampliar seu poder sobre o Executivo. Além disso, a política externa do governo foi alvo de críticas pela sua postura em relação à guerra na Ucrânia e ao conflito em Gaza. Para se equilibrar, Lula renunciou a várias agendas mais à esquerda para obter maior estabilidade política. Isso incluiu a adoção de uma postura mais moderada em temas como reformas econômicas e políticas sociais. Para garantir a governabilidade, o governo fez concessões significativas, como a manutenção de uma política fiscal mais rígida e a moderação em pautas ambientais e trabalhistas, o que gerou críticas de setores progressistas que esperavam uma agenda mais alinhada às promessas de campanha. Preferiu adotar uma estratégia de cunho mais social-democrata, dentro das margens disponíveis, voltada para o crescimento econômico.

Após um ano e meio de governo, Lula parece colher alguns frutos de sua estratégia, com a economia superando as expectativas iniciais. O crescimento do PIB foi revisado para cima, e as taxas de desemprego têm caído, indicando uma recuperação mais robusta do mercado de trabalho. Como resultado, a popularidade do governo mostra sinais de estabilização, com cerca de 53% dos entrevistados avaliando-o como ótimo ou bom – um patamar bastante apreciável para os atuais padrões internacionais. O governo também fez progressos na contenção do uso de recursos orçamentários pelo Congresso, graças ao “judiciarismo de coalizão”. Liderado pelo ministro Flávio Dino, o STF decidiu limitar o uso das emendas de relator, conhecidas como “orçamento secreto”, impondo regras mais rígidas de transparência e controle. Após as reações iniciais, líderes do Congresso, como Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, chegaram a um acordo com o STF para implementar essas mudanças, o que ajudou a reduzir as tensões entre os poderes. Discretamente, o governo parece ter saído das cordas e do noticiário negativo.

2. De furacão a vendaval: domesticação e declínio do extremismo golpista

É dever do sistema democrático reprimir quem tente destruí-lo. Como advertia Joaquim Nabuco, instituições que não se defendem, morrem. Contra o golpismo de Bolsonaro, o sistema lançou mão de todos os recursos legais para puni-lo e desestimulá-lo a seguir sua carreira. Declarado inelegível e pressionado com a possibilidades de prisão, Bolsonaro domesticou-se para tentar, pelas vias regulares, preservar seu ascendente como líder da direita, necessário para obter uma possível anistia. Ao mesmo tempo, a moderação de Lula e a ênfase no crescimento econômico fizeram recuar parte da guerra cultural antes onipresente no debate público.

Como resultado, a direita perdeu parte do ímpeto. Não perdeu hegemonia, nem deixou de sonhar – parte dela, ao menos – com um populista radical que garanta os privilégios ameaçados – desde os traders inescrupulosos do mercado financeiro até os patrões que não querem pagar direitos, impostos ou multas; ou gente que não tolera a ascensão de pobres, pretos, mulheres, ou o pluralismo religioso. Ocorre que, representada desde 2018 em todos os níveis institucionais, fruindo das delícias do sistema, parte da tração golpista de perdeu pela ação combinada da repressão institucional e acomodação ao poder. Em outras palavras, parte da direita radical entrou na rotina.

fenômeno Pablo Marçal pode ser lido – de forma contrária ao senso comum – como sintoma do declínio do extremismo. É tanto uma reação do eleitorado radical à domesticação (identificada no insosso Ricardo Nunes) como expressão dela. Embora também seja populista, mitômano e lacrador, cuja ladainha do pobre solitário em luta contra o sistema de novo contrasta com extensa ficha criminal, os elementos ideológicos do bolsonarismo nele aparecem repaginados e redistribuídos em proporções diferentes. O individualismo libertarianiano prevalece sobre o reacionário. Pablo se diz evangélico, mas não se veem pastores, nem igrejas. Deus se limita a sancionar seu êxito empreendedor. O perfil patriarcal e militarista de Bolsonaro também está ausente, tanto quanto a utopia reacionária que evoca as belezas da ditadura e da tortura. Em resumo: ausência de golpismo.

Marçal rebaixa o nível moral do eleitor para que o faça chegar ao seu patamar, já que 'ninguém é santo'.

Outra diferença é que o coach se apresenta aos moderados como um “populista instrumental”, ou seja, um moderado que se faz de radical para obter o voto dos “idiotas”. Da mesma forma, para reduzir a resistência diante de seu prontuário criminal, Marçal rebaixa o nível moral do eleitor para que o faça chegar ao seu patamar, já que “ninguém é santo”. Ele socializa os custos de seus crimes (“quem nunca?”), se faz de vítima (“não tive outro jeito”) e de ignorante (“não sabia”). Tenta, enfim, convencer o eleitorado de que todo mundo tem dentro de si um Pablo Marçal, atual ou potencial. Velha tática, conhecida desde que Gustave Le Bon estendeu também aos conservadores as mumunhas do populismo em sua Psicologia das Multidões (1896).

É cedo para prognosticar o futuro de Marçal. O fato é que Bolsonaro não o controla, e hesitou entre combatê-lo como seu concorrente à liderança da direita – de que precisa em sua busca pela anistia – ou aceitar a condição que o próprio Marçal lhe quer impor de seu herdeiro. Depois de alguns dias de indecisão e briga, o capitão achou melhor canalizar a empolgação para si para não ser visto como derrotado em São Paulo – já que será derrotado no Rio. O essencial para ele, no momento, é mobilizar a direita com um grande comício no dia 7 que, pedindo o impeachment de Moraes, sirva de pressão para mandar arquivar algum processo contra ele. Se puder contar com Marçal, tanto melhor. Quanto a Nunes, não será a primeira nem última vez que largará um aliado na estrada.

3. De “bastião da democracia” a “Conselho de Estado”: as metamorfoses do Supremo

Depois de duas décadas como “vanguarda iluminista”, com a emergência da nova direita e dos conflitos intestinos provocados pela Lava Jato, o descrédito do Supremo Tribunal chegou a tal ponto que no final de 2018 se disse que, para fechá-lo, bastavam um cabo e um soldado. O golpismo de Bolsonaro deu-lhe, porém, a chance de se reinventar como “bastião da democracia”. O ministro Alexandre de Moraes encarnou esse perfil, ao ser encarregado pela condução dos três inquéritos abertos quando a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal estavam capturados pelo bolsonarismo: 1) o das Fake News, que investiga a disseminação de desinformação e ataques contra ministros do STF (2019); 2) o das Milícias Digitais, que investiga a atuação de grupos organizados que utilizavam as redes para propagar a desinformação e atacar as instituições (2021) e 3) o dos Atos Antidemocráticos, dedicado a investigar a trama e os responsáveis pela Intentona Reacionária de 8 de janeiro (2023). Embora o Supremo tenha validado a constitucionalidade dos inquéritos e as decisões de Moraes, o declínio do extremismo golpista tem reduzido o apoio público aos inquéritos, mantidos em sigilo e cujo andamento se arrasta diante das sucessivas prorrogações dos prazos da investigação.

O Supremo Tribunal Federal parece apostar agora para legitimar-se no exercício de uma estranha função de 'Conselho de Estado do Império'

Para contornar as críticas do Congresso, agastado com o “ativismo” e o “judiciarismo de coalizão”, o Supremo parece apostar agora para legitimar-se no exercício de uma estranha função de “Conselho de Estado do Império”, reunindo os notáveis da república para negociar o implemento das próprias decisões e assegurar a resolução pacífica dos conflitos entre os poderes. É como se, acima dele enquanto tribunal constitucional, estivesse este “conselho de Estado” extraconstitucional cujo pleno parece composto de 15 integrantes: os onze ministros, mais os presidentes da República, da Câmara e do Senado, e o Procurador Geral da República. Também a exemplo do Império, o “conselho” parece também funcionar por seções dependendo da menor magnitude do assunto sub judice: terras indígenas, orçamento secreto, previdência social. No lugar do presidente da República, convida-se o ministro da Casa Civil, da AGU; pode ser chamado também o presidente do TCU. Tudo se pode negociar. O cumprimento das próprias decisões parece subordinado ao objetivo superior de dissipar as tensões com os outros poderes, que ameaçam a posição do Supremo como “poder moderador” – se não mais na chave ativa de “vanguarda iluminista”, noutra, mais passiva, de “câmara da conciliação”. O problema é que, para que este novo perfil surta seus benfazejos efeitos, é preciso transitar do anterior, o de “bastião antigolpista”. Movimento atrapalhado pela prorrogação indefinida dos inquéritos de Moraes.

4. O X da questão: a direita contra Moraes

A relativa bonança do governo Lula, somada ao declínio do golpismo na extrema direita, precipitou o ressurgimento das demandas de um centro direito ou direita que, tendo sido lavajatista, não se aliou, porém, a Bolsonaro. Ansiosos por se livrarem da companhia de Lula depois da derrota do capitão, foram obrigados a seguir junto dele a contragosto devido à tentativa de golpe de Estado. Com a aparente trégua na polarização, voltaram à carga. As queixas são várias. Mas o alvo principal é o Supremo Tribunal, seja por conta do “judiciarismo de coalizão”, pela pretensão de se arvorar em Conselho de Estado ou pela suposta ilegalidade dos inquéritos conduzidos por Moraes. A campanha ganhou “momento” diante da decisão do ministro de suspender a plataforma “X” (antigo Twitter) pela recusa de seu proprietário, o bilionário Elon Musk, a indicar um representante legal de sua empresa para receber citações e intimações judiciais.

Como todos sabem, o X é uma multinacional que por meio de um libertarianismo anárquico, ignora a soberania jurídica dos Estados-Nação em nome da liberdade irrestrita de expressão. Essa esfarrapada bandeira lhe serve para atiçar a Internacional Reacionária e impede o avanço do debate sobre a regulação das redes nos Parlamentos, jogando no fogo os tribunais constitucionais obrigados a agir em seu lugar. Engana-se quem acha que o problema de fundo é o Moraes; Musk faz a mesma coisa em toda a parte onde encontra obstáculos e arranja tretas “libertárias” em favor do seu imperialismo informacional. Como o respeito às suas decisões é a pedra toque da autoridade de qualquer tribunal, qualquer outro juiz teria agido da mesma forma. Natural e inevitável que a extrema-direita aproveitasse o incidente para mobilizar eleitores para seu comício de 7 de setembro, no qual será pedido o impeachment de Moraes. Nem por isso se deve deixar de chamar a atenção para o perigo de atacar o Supremo como órgão politiqueiro, cujos integrantes se moveriam por táticas, dribles ou coisas semelhantes.

Como explicado por Hans Kelsen em obra velha, quanto mais elevado um tribunal, mais lida com questões constitucionais que, forçosamente, são políticas. Também por isso outro jurista, Konrad Hesse, reconhecia em A força normativa da Constituição que os juízes constitucionais agiam politicamente. Agir politicamente, aqui, não significa, porém, agir partidário ou arbitrário. Significa que a lei e a natureza das coisas conferem inevitavelmente ao juiz certa margem discricionária para interpretar a lei e decidir conforme seus sentimentos. Erros, faltas ou excessos decorrentes de seu mau uso encontram remédio no recurso ao colegiado. A responsabilidade impõe não confundir o exercício legal da margem de discricionariedade inerente à atividade jurisdicional em expressão de politicagem ou má fé. Do contrário se apaga a distinção entre política e direito, a legitimidade dos tribunais e, com ela, a democracia. Foi com argumentos semelhantes – o de que a vontade da maioria deve se impor contra a politicagem judiciária – que se aprovou há poucas semanas no México uma reforma que castrou a Corte Suprema e a colocou na dependência do governo.

Como já sugeri antes, o STF, por óbvio, também não está isento de erros e precisa contribuir para reduzir os riscos da reação, atacando suas conhecidas desfuncionalidades. Felizmente, na semana passada, o presidente daquela Corte, ministro Luís Roberto Barroso, indicou que o fim do inquérito das fake news está próximo; que a Procuradoria-Geral da República já estaria recebendo o material para decidir sobre possíveis arquivamentos ou denúncias. Além disso, há sinais de que o inquérito das milícias digitais também pode ser encerrado em breve. Antes tarde do que nunca. Quanto antes, melhor.

Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ


Wilson Gomes - Marçalizaram o debate eleitoral na cidade de São Paulo, FSP

 Durante os anos em que os cidadãos recorriam majoritariamente à televisão para obter informações políticas essenciais às suas decisões eleitorais, três formatos principais foram desenvolvidos e explorados para que os candidatos pudessem se apresentar diretamente ao público: debates televisivos, horário de propaganda eleitoral gratuita e entrevistas diretas, sem edição.

Esses três formatos representam diferentes maneiras de lidar com a tensão entre jornalismo e campanhas eleitorais. Na entrevista direta, o jornalismo tem o controle, propondo as perguntas, estabelecendo o tom da conversa e regulando o tempo das respostas. Na propaganda eleitoral, o controle é totalmente das campanhas, exceto pelos limites legais. Já os debates eleitorais são espaços de negociação entre os interesses em disputa, onde o equilíbrio de forças entre jornalismo e campanha varia consideravelmente de acordo com o país, a época e a emissora.

Quando o jornalismo se impõe —com maior controle sobre os temas, regras rígidas de comportamento e sistemas de checagem em tempo real— as campanhas reclamam que os debates são "engessados". Por outro lado, quando as campanhas conseguem impor maior liberdade e flexibilidade, é a vez de os jornalistas e a opinião pública reclamarem que os candidatos desvirtuaram os debates, usaram deliberadamente o espaço para performances e mentiras, "baixaram o nível" e não informaram o eleitor.

Embora a era da televisão tenha ficado para trás, a era digital não facilitou as coisas.

Primeiro, porque a maioria das pessoas não depende mais dos debates para conhecer os candidatos. Está tudo online, em vídeos, entrevistas, reportagens de jornais e posts. E tudo o que está online pode ser movimentado digitalmente para fins de propaganda. Quando as pessoas se expõem ao debate, já têm uma opinião formada sobre as candidaturas que lhes interessam para aderir ou odiar.

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Segundo, porque é também uma era de extrema politização, sinônimo de radicalização e polarização. As pessoas sempre têm lado, sobre qualquer questão, decidido por antagonismo ao "outro lado". Quem assiste a um debate eleitoral não chega aberto a formar uma opinião nova ou a mudar de preferência a partir do que vai ver, como crê a mitologia democrática; veio para confirmar que o outro lado realmente não presta e para ver seu candidato dar uma surra nele.

Um homem submerso até a cintura nas águas de um esgoto desenhado em bico de pena preto e branco. Ele veste terno e camisa com o colarinho desabotoado. No lugar da cabeça e pescoço, há o cotovelo de um largo cano de esgoto. Dali, jorram detritos, podres, pintados em amarelo esverdeado, dá para ver a língua do homem, que parece vomitar todo o que tem dentro. No fundo, desfocado, um muro de contenção de um piscinão.
Ariel Severino/Folhapress

O último debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, promovido pela Gazeta e pelo MyNews, ilustra bem essa realidade. Embora o jornalismo tenha se esforçado para estruturar a interação entre os candidatos e impor uma pauta de questões substantivas, os jornais do dia seguinte destacaram que o debate havia se transformado em uma "luta na lama" sem precedentes, porque os blocos em que os políticos interagiram foi um vergonhoso ringue de insultos, palavrões, provocações e trocas de acusações.

Marçal tem absoluta autoconsciência desse perfil de assistência aos debates. Disse-o com toda clareza: "Eu gosto de baixaria, eu gosto do que vocês estão fazendo aqui". Para ele é claro que "aqui não é um jogo de quem tem as melhores propostas", mas para ver quem mais aguenta porrada. "Isto aqui é só teatro".

Foi de fato nesse modelo que o debate transcorreu. De uma parte, a mediadora, os jornalistas escalados para perguntar e, justiça seja feita, Tabata Amaral, que não quis jogar o jogo, tentando crer que do outro lado da tela tinha um eleitor que precisava ver um debate de ideias, propostas e personalidades para tomar uma decisão eleitoral.

Na outra frente, Marçal estava ali para gerar os tais cortes —das frases de efeito, dos apelidos ofensivos, das suas mímicas e da fúria provocada nos outros candidatos— para a campanha de verdade, a digital, pois entendeu que o público já escolheu um lado e ele precisa apenas reforçar as deixas que as pessoas usam para aderir ou odiar.

Juntaram-se a ele Nunes, Datena e Boulos, que praticamente reduziram o debate a uma sucessão de acusações recíprocas, palavrões e apelidos depreciativos.

Se você acreditar no que esses debatedores disseram uns dos outros, decerto se terá convencido de que praticamente apenas bandidos se candidataram neste ano. Suas opções são um "ladrãozinho de creche", "um invasor sem-vergonha", "um golpista do Pix e ladrão de velhinhas" e um "gagá comedor de açúcar".

Enquanto isso, Tabata e quem ainda estava lúcido nessa cidade naquela noite imploravam em desespero pelo que Denise Toledo, a mediadora, verbalizou quase como súplica: "Por favor, respeitem um ao outro".

Tarde demais. Marçalizaram o debate eleitoral.


A diáspora científica brasileira: enfrentando o êxodo de talentos, FSP

 O debate sobre a diáspora científica, fenômeno em que profissionais altamente qualificados deixam o país em busca de melhores condições de pesquisa e de trabalho, tem se intensificado no Brasil nos últimos anos. Esse movimento, cujo agravamento se dá em contextos como a ditadura militar e os recentes governos anticiência, reflete características conjunturais, mas também expõe uma série de desafios estruturais que o Brasil enfrenta em sua política de Ciência, Tecnologia e Inovação.

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SoU_Ciência - Meyrele Nascimento

Entre as razões mais comuns para a dispersão de cientistas, destacam-se a escassez de recursos para pesquisa, a falta de oportunidades de carreira de longo prazo no Brasil e a busca por ambientes acadêmicos mais favoráveis. O cenário de subinvestimento em ciência e tecnologia, que se agravou a partir de 2016 com sucessivos cortes orçamentários, é um dos grandes responsáveis por esse quadro, assim como a necessidade de ampla e rápida recuperação da infraestrutura de pesquisa. A precarização das universidades públicas e o congelamento do valor e do número de bolsas de pós-graduação e pós-doutorado criaram um ambiente menos favorável para o desenvolvimento científico no país desde então, conforme aponta o Painel Financiamento da C&T e das Universidades Federais do Centro de Estudos SoU_Ciência.

Um levantamento inédito coordenado pelo GEOPI/Unicamp mostra que mais de 70% dos cientistas brasileiros que se encontram no exterior não têm previsão de retorno ao país. A maioria desses profissionais saiu do Brasil após 2019, motivados por ofertas de trabalho mais atrativas e melhores condições de financiamento em suas áreas de pesquisa. Esses dados sugerem que, para muitos, o retorno ao Brasil não é uma opção viável, o que desafia a eficácia de programas de repatriação.

O Programa Conhecimento Brasil, uma iniciativa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Financiadora de Estudos e Projetos do Governo Federal (Finep), é uma das tentativas de repatriar cientistas e reverter o êxodo de acadêmicos. Com um orçamento de 800 milhões de reais, o programa promete bolsas e recursos para atrair de volta esses pesquisadores.

No entanto, a recepção na comunidade científica é mista, como apontado durante a sessão "Diáspora científica: caminhos para a repatriação e retenção de cérebros", organizada pelo Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), coordenada por Renato Cordeiro, tendo como palestrantes a coordenadora geral do SoU_Ciência Soraya Smaili, o professor emérito Luiz Davidovich (UFRJ/ABC) e a professora Mercedes Bustamante (UnB), e como debatedores Aldo Zarbin (UFPR), Ana Gazzola (UFMG), Herton Escobar, repórter do Jornal da USP, Luiz Carlos Dias (Unicamp), Marcus Oliveira (UFRJ), Maria Angélica Minhoto (SoU_Ciência/Unifesp), Samuel Goldenberg (Fiocruz). A proposta pode ser atrativa para jovens pesquisadores em início de carreira, mas dificilmente conseguirá trazer de volta aqueles já estabelecidos em outra nação. As bolsas oferecidas, embora superiores às disponíveis no Brasil, ainda são insuficientes para competir com os salários e as condições de trabalho de países desenvolvidos.

Outra vertente levantada no debate, igualmente preocupante sobre essa situação, revela que a partida de talentos já inicia durante a graduação e que há um aumento significativo na privatização da educação brasileira. Dados do Painel Expansão do Ensino Superior Privado no Brasil, do SoU_Ciência, mostram um crescimento de matrículas em faculdades, centros universitários e universidades privadas — muitas dessas instituições pertencentes a grandes grupos internacionais — ocasionando uma estagnação ou queda no número de matrículas em públicas. Como mais de 81% das pesquisas são realizadas nas instituições públicas, essa diminuição afeta diretamente nossa produção científica.

A repatriação ou a simples internacionalização não devem ser vistas como as únicas soluções. Em vez disso, devemos considerar estratégias como a "circulação de cérebros", uma abordagem mais moderna e dinâmica que reconheça a mobilidade dos cientistas como parte integral do sistema científico global. A construção de redes de cooperação e parcerias internacionais pode permitir que esses cientistas continuem a contribuir para a ciência brasileira, mesmo estando fisicamente em outro país.

A saída de cientistas talentosos ocasiona, sem dúvida, uma perda significativa de capital humano e intelectual, o que compromete a capacidade do país de inovar, desenvolver novas tecnologias e resolver problemas complexos em áreas estratégicas como saúde, energia, meio ambiente e educação. Além disso, a "fuga de cérebros" prejudica a formação de novas gerações de cientistas, já que a diminuição de mentores experientes nas universidades brasileiras pode impactar também a qualidade do ensino e da pesquisa.

Diante desse cenário, é urgente que o Brasil adote uma estratégia robusta de mitigação do problema. Esse planejamento deve incluir a recuperação dos investimentos em ciência e tecnologia e a criação de mecanismos e políticas públicas para valorizar e reter talentos no país, assim como para valorizar as instituições de ensino superior e aqueles que a compõem, com políticas de permanência estudantil e reajustes salariais de docentes e técnicos administrativos.

Fica evidente, portanto, que a diáspora na ciência brasileira não é um fenômeno isolado, mas um sintoma de problemas mais amplos na forma como o país valoriza e investe em ciência. Reverter essa tendência exige uma mudança de paradigma, em que as universidades (estaduais como a USP e Unicamp ou Federais como a Unifesp, UFMG e UFRJ) e institutos de pesquisas (como Burantan, Embrapa e Fiocruz) públicos sejam consolidados como os centros de excelência em pesquisa que são e que a ciência seja vista como um pilar fundamental para o desenvolvimento sustentável e a soberania nacional. Somente com uma política sólida e de longo prazo, que priorize a formação de qualidade desde a educação básica até o nível superior e que ofereça condições de retenção de cientistas, o Brasil poderá reverter essa "fuga de cérebros" e garantir um futuro mais próspero e inovador para as próximas gerações.

Soraya Smaili , Maria Angélica Minhoto , Pedro Arantes , Tamires Tavares e Renato Sergio Balão Cordeiro