sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Rômulo Garzillo e Laura de Azevedo Marques - Segurança pública vai muito além de conveniências eleitorais - FSP

 

Rômulo Garzillo

Advogado criminalista, é mestre (PUC-SP) e doutorando em direito do Estado (USP)

Laura de Azevedo Marques

Advogada criminalista, é especialista em processo penal (IBCCrim) e integrante da Comissão Especial de Política Criminal da OAB-SP

A busca por soluções à criminalidade no Brasil pressupõe seu reconhecimento como um fenômeno sistêmico e de múltiplas causas. Por essa razão, a segurança pública não deve ser tratada como resultado de um pânico moral conservador, tampouco deve ser combatida com violência policial e demagogia.

Qualquer dessas alternativas é, ao mesmo tempo, um erro e um dano às populações periféricas, aos jovens e às mulheres. O tema merece uma abordagem muito mais ampla e complexa. É necessário superar a velha ideia de que segurança pública é um problema dos estados e restrito à atuação das polícias militares.

Políciais fazem operação contra o tráfico de drogas na Favela do Moinho, na região central de São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, vem desenhando um projeto de emenda constitucional (PEC) com vistas a aprimorar o arcabouço institucional de segurança do país. O ponto fulcral da proposta está voltado para a nacionalização dos mecanismos de combate à criminalidade, centralizando-os nas mãos da União.

Dentre as medidas, chama atenção a constitucionalização do Sistema de Segurança Pública (Susp), que atualmente possui status de lei ordinária (lei 13.675/2018). Aprovado no governo Michel Temer —e abandonado por Jair Bolsonaro—, o Susp tem como finalidade unificar a institucionalidade da segurança pública, centralizando informações, metas e estratégias investigativas em nível nacional pelo Orçamento próprio da União.

É fundamental que o Susp seja inserido no escopo da Constituição Federal, a partir de uma PEC. Desse modo, sua inclusão no texto constitucional lhe proporcionaria maior força jurídica para produzir efeitos concretos na sociedade.

A Constituição prevê que a segurança pública é "dever do Estado" e "responsabilidade de todos" (art. 144), o que inclui a União, notadamente em temas de ordem nacional que ultrapassam o espectro regional dos estados.

É o caso tanto do crime organizado (que se desdobra num verdadeiro empreendimento internacional), como da violência às mulheres (que abrange todos os rincões do país). O combate a ambos exige um grande pacto multissetorial entre todos os entes federativos: União, estados, municípios e Distrito Federal.

Devemos ainda levar em conta o sucesso de outros sistemas nacionalizados de políticas públicas, já previstos na Constituição, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e, mais recentemente, o Sistema Nacional de Educação (SNE).

A aprovação da PEC da Segurança Pública pode ser considerada a "bala de prata" no efetivo combate à violência. Sobretudo porque o projeto não trata a "criminalidade" como a simples soma de ações criminosas, mas como um sofisticado sistema que, a um só tempo, é difuso e organizado. A ideia central está em alinhar visão sistêmica, políticas coordenadas e uma gama de ações de prevenção e repressão. É um erro deixar o combate à violência se pautar pelo interesse eleitoral de agentes locais ou investir em repressão policial como estratégia para conquistar eleitores.

A tarefa não é simples. De largada, há a resistência das bancadas mais conservadoras no Congresso. Há ainda desconfiança dos governadores em aceitar a centralização das políticas junto à União, já que muitos veem a medida como supressão de suas próprias competências, o que não é correto.

Se é certo que o cidadão se ressente mais do roubo do seu telefone celular nas ruas, também é necessário entender que essa violência é respaldada por uma indústria organizada que, de uma só vez, recebe os aparelhos, quebra as senhas, desvia os recursos da vítima, circula-os por mecanismos de lavagem e, por fim, desova os aparelhos no mercado de receptadores ou os emprega em outras atividades criminosas. O mesmo ocorre com a cadeia do tráfico de drogas.

Coibir o roubo ou a venda de entorpecentes é tarefa diária. Evitar o crime é desejável, porém, quebrar a cadeia criminosa é pressuposto essencial. Isso só se consegue com articulação federativa, abordagem sistêmica e cooperação internacional. No atual estágio, informação, inteligência e ações integradas são mais eficientes que armas e munição no combate ao crime. A menos que o objetivo seja acumular cadáveres e votos.

É duro ser ditador, Helio Schwartsman, FSP

 É difícil a vida de ditadores. A sugestão da revista britânica The Economist de oferecer asilo político a Nicolás Maduro para que ele deixe o poder sem provocar um banho de sangue, embora faça sentido teórico, pode não ser tão fácil de implementar.

A principal razão para isso é que ditadores não podem confiar em democracias. Vamos supor que, seguindo as recomendações do hebdomadário, o governo Lula conceda asilo a Maduro. O venezuelano até poderia dar-se bem inicialmente, usufruindo de luxuosa aposentadoria, mas teria de viver sob eterna desconfiança.

O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, discursa na Suprema Corte de Justiça, em Caracas - Leonardo Fernandez/Reuters - Leonardo Fernandez Viloria/REUTERS

O que acontece na hipótese de os ventos políticos no Brasil mudarem, algo comum em democracias? A eleição de um governo de direita implicaria a revogação do asilo e extradição?

E a alternância não é o único risco. Democracias também são caracterizadas pela repartição dos Poderes.

O Judiciário não necessariamente segue a decisão política do Executivo de conceder asilo. Se os juízes entenderem que violações a direitos humanos perpetradas pelo ex-ditador configuram crimes contra a humanidade, não cabe o asilo político, nos termos do Estatuto de Roma, de 1998.

Já que ex-tiranos não podem confiar em democracias, podem contar com outros regimes autoritários na hora de negociar um exílio dourado? Numa primeira análise, sim. Afinal, o que caracteriza uma ditadura é que nela a palavra do ditador é lei. Nenhum juiz irá desautorizá-lo. Também é incomum que ditaduras promovam eleições limpas que possibilitem a alternância de poder. A crise venezuelana é justamente o resultado de uma tentativa de fraudar um pleito.

Numa segunda análise, porém —e aí há mais um paradoxo—, ex-tiranos tampouco podem confiar muito em outras tiranias, pela simples razão de que elas são intrinsecamente instáveis, do que a própria Venezuela dá exemplo.

Tragicamente, o caminho menos incerto para ditadores é jamais desistir do poder e sempre dobrar a aposta.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Crise na Venezuela: populismo autoritário e os ecos do passado, Christian Lynch, MEIO

 A crise na Venezuela, um dos mais agudos exemplos de populismo autoritário na América Latina, desperta a necessidade de uma análise criteriosa. A proclamada vitória de Maduro foi marcada por flagrantes irregularidades. Em regimes autocráticos com indicadores sociais e econômicos catastróficos, a reeleição de Maduro é marcada pela fraude eleitoral. A “democracia” de Maduro se caracteriza pela aparelhagem das instituições, desde o judiciário até a justiça eleitoral. Ele desfechou um golpe de Estado, ameaçando encarcerar todos os que o contestassem. Autocratas, cientes dos custos de uma derrota, preferem fraudar eleições e coagir a oposição para se manter no poder. Esse modus operandi é similar ao golpismo observado no bolsonarismo no Brasil e no regime de Putin na Rússia. A diferença é que Bolsonaro não teve tempo suficiente para capturar o Estado como o chavismo-madurismo fez na Venezuela.

A tese de que não houve fraude na Venezuela, ou de que houve fraude de ambos os lados, ficando elas por elas, é risível. A fraude perpetrada por quem detém recursos tecnológicos e coercitivos — o chavismo está no poder há 25 anos — não se compara àquela possível por uma oposição desprovida dos mesmos recursos. Em um contexto de severa privação econômica e social, com emigração massiva, é improvável que a população votasse para perpetuar sua própria miséria. A justiça eleitoral declarou sua vitória sem revelar resultados finais, sem compartilhar atas com a oposição, sem publicar dados online e sem respeitar prazos para contestações. Esse comportamento não é de um vencedor confiante, mas de um derrotado inconformado. Maduro evita mostrar as atas eleitorais, pois nelas se evidenciaria sua derrota, enquanto tenta ganhar tempo para fabricar documentos falsos. Ele precisa inclusive dessa “vitória” formal para manter uma posição de força e negociar uma saída do poder, evitando punições pelos crimes cometidos.

A retórica nacionalista transforma a liberdade do “povo”, identificada com seu líder, na única que importa.

Utilizar a luta contra o imperialismo como justificativa para preservar ditaduras militares cleptocráticas, como faz Maduro, é uma tática antiga. A retórica nacionalista transforma a liberdade do “povo”, identificada com seu líder, na única que importa. A defesa do “povo” contra o estrangeiro justifica a repressão interna e a violação das liberdades que asseguram a democracia. A alternância no poder se torna impossível, sob a alegação de que a oposição instauraria uma ditadura favorável ao imperialismo americano. Nesse contexto, as garantias individuais se tornam privilégios dos acólitos do líder anti-imperialista. Internacionalmente, essa lógica justifica alianças com potências autocráticas concorrentes, que prometem sustentar a ditadura amiga. Enquanto isso, o povo sofre, e a emigração se torna a única alternativa de sobrevivência. A linguagem nacionalista de extrema esquerda, que justifica a expulsão do corpo diplomático de vários países latino-americanos como servos do imperialismo americano, vem diretamente dos anos 1950.

Há vinte e tantos anos, havia um foro informal da esquerda sul-americana que incluía líderes como Chávez, Lula, Kirchner e Morales. Naquela época, havia uma solidariedade continental entre os governos de esquerda, apesar das diferenças de cada país. Respeitava-se a imagem heróica de Fidel em Cuba, embora Lula nunca tenha sido autoritário nem comunista. Chávez parecia um campeão popular de um novo socialismo democrático. Esse mundo de vinte anos atrás desapareceu. Maduro se tornou um ditador, e a Venezuela, uma questão crítica para a política externa e interna brasileira. A opinião pública no Brasil se voltou contra o presidente venezuelano. Em sua luta pela sobrevivência, demonstrou estar disposto a romper relações com qualquer crítico, interessando-se por Lula apenas para legitimar sua ditadura. Maduro se tornou tóxico, e Lula não pode mais manter a mesma posição de outrora. A situação mudou. Não podemos mais passar pano para a ditadura venezuelana.

Por intermédio da diplomacia de Celso Amorim e Mauro Vieira, o Brasil ganhou a confiança – ou ao menos o respeito – da oposição venezuelana. Isso mostra que o governo brasileiro não respalda mais a ditadura de Maduro como antes, ajudando a deslegitimar o regime. Mas o Brasil, como potência hegemônica da América do Sul, também não pode romper com a Venezuela. A Constituição brasileira obriga a respeitar a autodeterminação dos povos. Para influir, é necessário manter laços, mas sem passar pano para autoritarismos. Nesse sentido, é incompreensível a tolerância do PT com regimes autoritários de esquerda fora do Brasil, quando na prática sempre agiu como um partido democrático. Em seus 45 anos de história, participou de nove eleições presidenciais, vencendo cinco e perdendo quatro. Esteve em todos os segundos turnos desde 1989. Quem questionou resultados eleitorais foram o PSDB de Aécio e o PL de Bolsonaro.

A eleição na Venezuela pode servir de divisor de águas sobre a verdadeira natureza dos movimentos de esquerda na América Latina.

Para Lula, a situação é uma sinuca de bico. Ele tenta equilibrar-se entre as alas moderada e radical do PT. Governando com a ala moderada, Lula deixa figuras como Gleisi Hoffmann representarem a ala radical, mantendo a base unida com declarações que agradam a todos. Enquanto Lula estiver no comando, ele continuará a manter os radicais dentro do PT. Mas a grande questão é: quem administrará o conflito partidário quando Lula não estiver mais por aqui? A eleição na Venezuela pode servir de divisor de águas sobre a verdadeira natureza dos movimentos de esquerda na América Latina. De um lado, temos o socialismo comprometido com a democracia liberal, que busca reformar as estruturas existentes dentro de um quadro democrático. Do outro, encontramos os extremistas ou “revolucionários”, que ocupam uma posição na esquerda equivalente à dos “reacionários” na direita. Ambos os extremos rejeitam a democracia consagrada por constituições democráticas, exigindo um regime autoritário para alcançar seus objetivos.

A gestão desse equilíbrio interno será crucial para o futuro do partido e da democracia brasileira. Ao mesmo tempo, a crise venezuelana ilustra os perigos do populismo autoritário e reforça a necessidade de vigilância constante na defesa da democracia. Ver bolsonaristas que pediram golpe de estado todo santo dia quando estavam no poder e, agora, denunciam a fraude eleitoral na Venezuela, é de matar. Mas, ver quem denunciava o golpe de Bolsonaro e, agora, defende o Maduro com unhas e dentes, se não é de matar, é de morrer.

Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

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