A crise na Venezuela, um dos mais agudos exemplos de populismo autoritário na América Latina, desperta a necessidade de uma análise criteriosa. A proclamada vitória de Maduro foi marcada por flagrantes irregularidades. Em regimes autocráticos com indicadores sociais e econômicos catastróficos, a reeleição de Maduro é marcada pela fraude eleitoral. A “democracia” de Maduro se caracteriza pela aparelhagem das instituições, desde o judiciário até a justiça eleitoral. Ele desfechou um golpe de Estado, ameaçando encarcerar todos os que o contestassem. Autocratas, cientes dos custos de uma derrota, preferem fraudar eleições e coagir a oposição para se manter no poder. Esse modus operandi é similar ao golpismo observado no bolsonarismo no Brasil e no regime de Putin na Rússia. A diferença é que Bolsonaro não teve tempo suficiente para capturar o Estado como o chavismo-madurismo fez na Venezuela.
A tese de que não houve fraude na Venezuela, ou de que houve fraude de ambos os lados, ficando elas por elas, é risível. A fraude perpetrada por quem detém recursos tecnológicos e coercitivos — o chavismo está no poder há 25 anos — não se compara àquela possível por uma oposição desprovida dos mesmos recursos. Em um contexto de severa privação econômica e social, com emigração massiva, é improvável que a população votasse para perpetuar sua própria miséria. A justiça eleitoral declarou sua vitória sem revelar resultados finais, sem compartilhar atas com a oposição, sem publicar dados online e sem respeitar prazos para contestações. Esse comportamento não é de um vencedor confiante, mas de um derrotado inconformado. Maduro evita mostrar as atas eleitorais, pois nelas se evidenciaria sua derrota, enquanto tenta ganhar tempo para fabricar documentos falsos. Ele precisa inclusive dessa “vitória” formal para manter uma posição de força e negociar uma saída do poder, evitando punições pelos crimes cometidos.
A retórica nacionalista transforma a liberdade do “povo”, identificada com seu líder, na única que importa.
Utilizar a luta contra o imperialismo como justificativa para preservar ditaduras militares cleptocráticas, como faz Maduro, é uma tática antiga. A retórica nacionalista transforma a liberdade do “povo”, identificada com seu líder, na única que importa. A defesa do “povo” contra o estrangeiro justifica a repressão interna e a violação das liberdades que asseguram a democracia. A alternância no poder se torna impossível, sob a alegação de que a oposição instauraria uma ditadura favorável ao imperialismo americano. Nesse contexto, as garantias individuais se tornam privilégios dos acólitos do líder anti-imperialista. Internacionalmente, essa lógica justifica alianças com potências autocráticas concorrentes, que prometem sustentar a ditadura amiga. Enquanto isso, o povo sofre, e a emigração se torna a única alternativa de sobrevivência. A linguagem nacionalista de extrema esquerda, que justifica a expulsão do corpo diplomático de vários países latino-americanos como servos do imperialismo americano, vem diretamente dos anos 1950.
Há vinte e tantos anos, havia um foro informal da esquerda sul-americana que incluía líderes como Chávez, Lula, Kirchner e Morales. Naquela época, havia uma solidariedade continental entre os governos de esquerda, apesar das diferenças de cada país. Respeitava-se a imagem heróica de Fidel em Cuba, embora Lula nunca tenha sido autoritário nem comunista. Chávez parecia um campeão popular de um novo socialismo democrático. Esse mundo de vinte anos atrás desapareceu. Maduro se tornou um ditador, e a Venezuela, uma questão crítica para a política externa e interna brasileira. A opinião pública no Brasil se voltou contra o presidente venezuelano. Em sua luta pela sobrevivência, demonstrou estar disposto a romper relações com qualquer crítico, interessando-se por Lula apenas para legitimar sua ditadura. Maduro se tornou tóxico, e Lula não pode mais manter a mesma posição de outrora. A situação mudou. Não podemos mais passar pano para a ditadura venezuelana.
Por intermédio da diplomacia de Celso Amorim e Mauro Vieira, o Brasil ganhou a confiança – ou ao menos o respeito – da oposição venezuelana. Isso mostra que o governo brasileiro não respalda mais a ditadura de Maduro como antes, ajudando a deslegitimar o regime. Mas o Brasil, como potência hegemônica da América do Sul, também não pode romper com a Venezuela. A Constituição brasileira obriga a respeitar a autodeterminação dos povos. Para influir, é necessário manter laços, mas sem passar pano para autoritarismos. Nesse sentido, é incompreensível a tolerância do PT com regimes autoritários de esquerda fora do Brasil, quando na prática sempre agiu como um partido democrático. Em seus 45 anos de história, participou de nove eleições presidenciais, vencendo cinco e perdendo quatro. Esteve em todos os segundos turnos desde 1989. Quem questionou resultados eleitorais foram o PSDB de Aécio e o PL de Bolsonaro.
A eleição na Venezuela pode servir de divisor de águas sobre a verdadeira natureza dos movimentos de esquerda na América Latina.
Para Lula, a situação é uma sinuca de bico. Ele tenta equilibrar-se entre as alas moderada e radical do PT. Governando com a ala moderada, Lula deixa figuras como Gleisi Hoffmann representarem a ala radical, mantendo a base unida com declarações que agradam a todos. Enquanto Lula estiver no comando, ele continuará a manter os radicais dentro do PT. Mas a grande questão é: quem administrará o conflito partidário quando Lula não estiver mais por aqui? A eleição na Venezuela pode servir de divisor de águas sobre a verdadeira natureza dos movimentos de esquerda na América Latina. De um lado, temos o socialismo comprometido com a democracia liberal, que busca reformar as estruturas existentes dentro de um quadro democrático. Do outro, encontramos os extremistas ou “revolucionários”, que ocupam uma posição na esquerda equivalente à dos “reacionários” na direita. Ambos os extremos rejeitam a democracia consagrada por constituições democráticas, exigindo um regime autoritário para alcançar seus objetivos.
A gestão desse equilíbrio interno será crucial para o futuro do partido e da democracia brasileira. Ao mesmo tempo, a crise venezuelana ilustra os perigos do populismo autoritário e reforça a necessidade de vigilância constante na defesa da democracia. Ver bolsonaristas que pediram golpe de estado todo santo dia quando estavam no poder e, agora, denunciam a fraude eleitoral na Venezuela, é de matar. Mas, ver quem denunciava o golpe de Bolsonaro e, agora, defende o Maduro com unhas e dentes, se não é de matar, é de morrer.
Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ |
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